Sombras escrita por Yukitsuki Shion


Capítulo 3
Capítulo III - Detalhe perdido


Notas iniciais do capítulo

Correntes. Uma cadeia de elos que prende dois objetos, duas pessoas. Tortura, punição... redenção, liberdade. Qual a sua visão sobre tudo isso?



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Se havia uma chance, eu precisava lutar por ela; se havia uma chance de reencontrá-lo depois de tudo que aconteceu, eu precisava vencer a batalha. Em alguns momentos, a razão deixa de funcionar... nesses momentos, a melhor escolha é fechar os olhos para a realidade, seguir apenas a intuição.

Paro, respiro fundo e tento conter a descarga de adrenalina que percorre todo meu corpo, deixando-o em um estado alerta. Ou seus instintos, nossos instintos. Alguma vez eles falharam?  Meu amado hóspede se faz ouvir entre um turbilhão de pensamentos, ajeitando-se e contorcendo-se dentro de mim, como uma serpente que se prepara para atacar sua presa indefesa. Suas unhas passam devagar por minha pele, como se ele estivesse a se espreguiçar, despertando de um sono quem sabe milenar? – Tem razão, meu caro. Eles nunca falharam. – Engoli em seco e olhei ao redor, contendo o despontar dos caninos enquanto os instintos afloravam, pouco a pouco. Encontrada a direção que eu precisava seguir, era necessário uma retratação antes de continuar. Não faço a menor ideia de como os demônios são enviados a cada um de seus receptáculos, mas eu havia recebido um extremamente orgulhoso, prepotente de suas habilidades. – Se algum dia houve falha, a culpa foi minha. Nós dois sabemos disso, Uske. ­– A criatura parecia rir, deliciar-se com o prazer da minha confissão. Eu não tinha tempo para isso, não agora. Não quando ele estava tão perto de mim. Meus passos aumentavam de velocidade à medida que eu prosseguia pela rua vazia, até que eu começasse a correr pela mesma, a névoa se espalhando ao meu redor e me ofuscando do restante do mundo. Eles sentiriam apenas a corrente de vento passando, talvez um mau augúrio. Nada mais, nada menos. Em alguns instantes, chego ao jardim onde até então ele estava, segundo a vendedora de maçãs. Permito que meus olhos desfrutem da beleza do lugar, serena e transcendental. Era o tipo de lugar que ele gostava, lembrava muito os jardins de L’Espoir, não havia dúvidas quanto a isso. As rosas brancas cobriam a maior parte dos canteiros, um perfume adocicado sendo exalado pelo ar. Fecho os olhos não sei quantas vezes, tentando parar as lágrimas prestes a escorrer, não podia me permitir isso. O silêncio cobria todo o jardim como um manto protetor, nem mesmo as folhas ousavam quebrar uma melodia tão solene, absoluta. É então que ouço um guizo, um estalido metálico que desafia toda a ordem vigente e se faz ouvir em todas as direções. Os olhos rapidamente localizam o objeto, enquanto caminho em direção a ele, me perguntando para o que devo estar preparado.

[...] A cada momento eu me perguntava se havia feito a escolha certa, se deveria mesmo ter interferido e salvado um simples servo. Era óbvio que sim, por que então eu ainda hesitava? Já estávamos a algumas dezenas de metros de distância dos pajens, quando eu parei para respirar um pouco. Meu corpo doía de uma maneira estranha, como se eu tivesse sofrido tudo que ele sofreu, como se aqueles ferimentos fossem meus. O demônio logo voltou a rondar minha mente, insuflando pensamentos sujos e ao mesmo tempo irônicos, era algo natural para ele. Eu havia aprendido a ordem natural das coisas, era simples: eles precisavam de corpos para viver, nós precisávamos de uma existência diferente da maioria. Dois caminhos se uniam, um laço era feito; em troca de uma coisa, cedia-se outra, um acordo irreversível... desde que houvesse um bom motivo para prosseguir nele. O garoto, praticamente inconsciente pelos ferimentos, não conseguia mais acompanhar meus passos. Tossiu algumas vezes e poças de sangue começaram a se formar no caminho, uma delas caindo sobre meu ombro, sujando o tecido branco. Afastei seu braço de perto do meu corpo e apoiei seu corpo no chão, as costas em contato com uma das árvores do pomar. – Eu volto logo, vai ficar tudo bem... – Eu não conseguia acreditar nas minhas palavras, mas precisava que ele acreditasse. Ele não podia morrer, de maneira nenhuma. Eu precisava dele vivo, por algum motivo que ia além da razão normal, algo que eu não conseguia entender. Faltava menos de uma semana para a próxima lua e até lá eu precisava ter encontrado uma companheira, antes de fugir para muito longe, Inglaterra talvez. Fui até o lago mais próximo em busca de um pouco de água, por sorte haviam alguns outros servos ali e facilmente consegui uma tigela com eles, enchendo-a até a borda. Em poucos minutos, eu estava de volta, o garoto parecia pior a cada momento. – Vamos... vamos... não pode morrer... por favor. – Por que eu estava me desesperando tanto assim? Desde quando havia um lado tão humano em mim? Arranquei uma parte da gola da camisa que estava usando e molhei na água, começando a limpar o sangue seco em seu rosto. Aos poucos, os ferimentos iam aparecendo. À exceção de dois mais profundos, o restante dos cortes era superficial, em menos de um dia estariam cicatrizados. Limpar o rosto dele significava mais que tirar o sangue e a poeira; era como lapidar um cristal bruto, cada traço de uma beleza tão gentil e sensível... isso contrariava completamente o tipo de violência que ele havia sofrido, mas também justificava o desejo dos rapazes por ele. Afastei esse pensamento da cabeça e por fim cheguei à sua boca, retirando o sangue acumulado sobre o lábio partido. Havia um corte na fronte também, cujo sangramento fora facilmente estancado e então me senti mais tranquilo. Deixei meu corpo cair sobre a grama por alguns instantes e respirei mais aliviado, enquanto pensava no próximo passo. Ele parecia recobrar a consciência por lapsos, meros instantes. Peguei a tigela e levei até sua boca, inclinando seu rosto devagar para que bebesse um pouco. – Já está melhor... e mais seguro. – Eu não percebia, mas minha curiosidade estava em algo completamente inacessível para mim: os olhos dele. Eu precisava descobrir como eram aqueles olhos, entender a maneira como ele via o mundo. Um sorriso se desenhou em meu rosto até então completamente frio, o que me fez recuar um pouco. Eu ainda estava vivo; mais que isso, eu estava sendo útil a alguém, nunca pude imaginar que isso fosse tão bom assim. Larguei a tigela por ali mesmo e peguei seu corpo no colo, com um pouco de dificuldade. O sol ainda não estava a meio caminho do pico, então seria seguro voltar pelo mesmo caminho, não haveria ninguém para notar. [...]

Havia uma rosa branca solitária no jardim. Uma rosa cercada por um canteiro de espinhos, excluída e isolada de todo o restante. E no caule dela, havia uma fita vermelha, presa gentilmente a um guizo e um cartão, por um laço bem feito. Desamarro a mesma, deixando que seja levada pelo vento frio da noite, até cair a alguns metros de mim. O cartão era simples, um pedaço de papel branco finamente cortado, com as bordas ovaladas e um perfume de maçãs: era ele.

Mais sorte da próxima vez...

Você tirou tudo que eu tinha.


Eu havia perdido, fora derrotado em meu próprio jogo. Nem mesmo os instintos de Uske puderam me ajudar, ele não seria encontrado se não quisesse. Embora a dor daquelas palavras fosse me corroer para sempre, eu era obrigado a admitir que a culpa era minha, por tudo. Se não fosse eu, ele poderia ter vivido como um humano, morrido como um humano. Guardo seu bilhete em meu bolso e sigo pelo mesmo caminho por onde vim, sempre haveria maçãs me esperando, mesmo que não fossem tão doces quanto ele.

Porém, se eu tivesse segurado aquela fita por um momento apenas, tudo teria sido diferente. Ela estava lá, com o guizo na ponta e uma mensagem em letras douradas.

Mas me deu o mundo em troca.

Obrigado.


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