Sombras escrita por Yukitsuki Shion


Capítulo 2
Capítulo II - Encontro


Notas iniciais do capítulo

Na trama onde passado e presente parecem uma só coisa, somos apresentados a mais um personagem dessa história. Que tal analisarmos essa trama de um outro ponto de vista? Quem sabe quais são os motivos de alguém além desse próprio alguém?



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A natureza busca contrariar a causa de qualquer desequilíbrio. Não existe o caos, tudo segue em perfeita harmonia, os distúrbios tendem a ser eliminados. Se existe algum princípio criador, ele é apenas a regularidade e a constância. O mundo nunca vai mudar.

Por meus olhos, tudo isso passa como uma verdade enfadonha e cansativa, não existe mais a surpresa. Passei por tantas mudanças durante minha existência para no fim perceber que nenhuma delas aconteceu de fato. Na realidade, o mundo anda em círculos: não importa como ou porquê, as coisas sempre voltam a ser como eram antes, custe o tempo que custar.

Dizem que a história é uma linha contínua, dinâmica. Tudo é novo, admirável mundo novo! Quando penso na minha história, discordo de tudo isso. Jamais tive uma linha do tempo, tudo o que tive até hoje foram quadros. Imagens estáticas, o que eu era. Nunca tive a decisão de escolher ser algo, deixei apenas que meu corpo fosse impelido à frente no transcorrer de uma sucessão infinita de dias e noites. Em cada um desses momentos, uma luta desesperada para me prender a algo ou alguém, para quem eu pudesse ter alguma utilidade.

É inverno e tudo ao meu redor está frio e silencioso. Os fios escuros do cabelo escorrem graciosamente pelo rosto pálido e emolduram os olhos verdes tranquilos, como se fossem os próprios elísios. A pele é pálida e não se encontra nela rubor algum, nem mesmo uma marca. As roupas leves cobrem meu corpo e apenas o longo cachecol negro parece serpentear ao redor do meu pescoço. A praça de L’Étoile já está vazia. Olho para as doze ruas à minha volta e não parece haver ninguém, em nenhuma delas. Mãos nos bolsos e olhos fechados, deixo meus pés me levarem a qualquer lugar. Não estou perdido, apenas vagando. Em uma das galerias da cidade luz, encontro uma jovem. Traços gentis, pele levemente corada e uma cesta de maçãs. Tão brilhantes quanto verdadeiros rubis, suas maçãs são como gotas de sangue sobre um tecido de seda branco. Um sorriso varre meu rosto, a jovem reúne em si tudo que me impeliu a viver até hoje: o sangue e as maçãs. O primeiro me deu vida, o outro me deu um motivo a viver. O demônio em mim começa a se agitar enquanto os caninos começam a despontar, pressionando a pele quente e úmida. “Acalme-se meu pequeno demônio... Em breve irei recompensá-lo por toda a paciência. Agora guarde as garras, não é aquele que você quer. Não é ela quem eu quero.”

“[...] Depois que o suserano chegou às nossas terras, as coisas tornaram-se mais tranquilas. As revoltas diminuíram e era seguro voltar a andar pelos jardins. Apesar de tudo, eu tinha medo. Meu pai tornou-se vassalo com a morte de meu avô. Com a morte de meu pai, eu seria o próximo na sucessão. A cada dia, uma angústia maior crescia em mim. A cada dia, eu caminhava para meu irrefutável fim. Não havia como escapar disso. Antes dela eu estava vivo; mas tudo dentro de mim era morto. Depois dela eu estava morto; e estranhamente mais vivo. Seria questão de tempo antes que eu precisasse fugir, simular minha morte e apagar meus traços. Ultimamente isso me preocupava muito, as pessoas começavam a comentar. “Vejam o filho do conde.. o tempo é tão gentil com ele... Não é gentileza, dizem que ele é doente. Outros dizem quem é feitiçaria, ele entregou a alma.”

Deitei sobre os lençóis brancos e afundei a cabeça no travesseiro. Eu precisava encontrar uma saída para esses rumores, especialmente o último deles. Se continuasse se espalhando, minha vida correria risco. – Vida? Creio que já tenha lhe explicado sobre isso, infante. Você não está vivo. – Ela adentrou o quarto com o mesmo sorriso enigmático e os cabelos brancos como a neve. Chegou não sabemos de onde, nem para onde irá. Não sei porquê veio, ou o que poderia ganhar comigo. – Sabe sim. Eu vim por você, não negue isso. – Fui até uma das cadeiras enquanto Fleur fechava a janela e sentava-se pacientemente sobre minha cama. Por mais que eu buscasse alguma imperfeição em seus traços, não encontraria nada. Nada além de um rosto angelical e uma expressão complacente. – Não quero falar sobre isso. Em breve estarei partindo, deveria fazer o mesmo. Antes que a próxima lua crescente surja, nossos caminhos irão se separar. – O sussurro começou a se espalhar por todo o quarto, entorpecendo meus sentidos. As pálpebras estavam pesadas e meu corpo foi impelido até a cama. Não me lembro de mais nada, a não ser das palavras perturbadoras antes das sombras me envolverem. – Já tenho o que preciso. Em breve também terá, meu jovem.

Passos. Um som gentil se propagava pelo chão de pedra, sem ferir meus ouvidos ou marcar cada peça do castelo com a rudeza e agressividade dos soldados e guerreiros que se espalhavam como baratas pelo lugar. Eu não me lembrava de mais nada da noite anterior, não sabia sequer como havia dormido ou se havia sonhado. Apenas me sentia bem, estranhamente bem. Levantei da cama a passos calmos e fui até a frente do grande espelho, despindo a longa camisola branca e olhando para o corpo que ela encobria até então. Eu não tinha o corpo dos outros jovens, não era forte como eles. Por outro lado, não era completamente fraco, era harmonioso e com um corpo bem desenhado, demonstrando alguns traços frágeis. Deixo uma das mãos percorrerem a linha do pescoço até meus olhos se fecharem com a pequena pontada de dor que sinto. Inclino meu corpo um pouco para a esquerda, deixando à mostra a marca já cicatrizada de onde Fleur havia cravado seus dentes a alguns dias atrás. Ninguém percebera o que havia ocorrido comigo; do mesmo modo, ninguém perceberia a marca ou as consequências dela. As roupas foram colocadas uma após a outra, deixando de lado apenas o colete que ficava por cima da camisa branca, bem simples. Não precisaria disso, afinal não sairia do castelo para lugar nenhum. Apesar de sentir mais fome por sangue, eu ainda precisava me alimentar de comida “humana”. Até que toda a humanidade morresse dentro de mim, quando eu transformasse alguém também. – Usar e ser usado, então somos apenas peças em um tabuleiro... Até quando isso continuará? – Desarrumei um pouco a franja, deixando que cobrisse um pouco do rosto e escondesse a expressão saudável que eu tinha, ainda precisava que acreditassem em minha doença. Dessa maneira, saio do quarto em direção à grande cozinha do castelo, onde com certeza encontraria alguma coisa. Ou alguém... Olho ao redor para ouvir de onde havia saído aquele murmúrio, mas não há ninguém, em lugar nenhum. Aos poucos, uma onda de calor começa a se espalhar por meu corpo e eu entendo quem é. Em um gesto quase mecânico, abraço meu próprio corpo, na região da barriga. Fecho os olhos e respiro com calma. – Não pode agir assim, ainda não... Suspeitariam de nós, e esse seria nosso fim. Antes mesmo de começarmos. Você deseja isso? Eu também não. – Aos poucos me desfaço desse abraço e desço as escadas com pressa, sentindo um cheiro diferente se espalhar. Não era metal nem sujeira, como os porcos que andavam por todo o lugar. Era limpo, vivo, puro. Por fim, meus olhos conseguem acompanhar o olfato e então eu o encontro: um rapaz da mesma idade que eu, aparentemente. Não parecia ser um nobre, apenas um servo qualquer, talvez um escravo. Isso dificultaria muito meu trabalho, pelo menos no começo. Espero todos saírem e vou até a mesa central, escolhendo uma maçã qualquer da cesta que ele havia trazido mais cedo. Uma mordida produz uma explosão de sensações em minha boca, talvez porque ali exista mais que uma maçã, existe uma parte da energia dele, algo que me deixe mais... excitado.

Se eu não fizesse isso agora, não haveria uma segunda chance. Talvez ele morresse antes disso, ou fugisse. Eram tempos difíceis. O tempo entre a ideia e a decisão foi mínimo, questão de segundos. Passei pela porta lateral do castelo às pressas e me dirigi aos campos comuns. Era o único lugar para onde ele poderia ter ido. Não me importava mais se descobrissem que minha doença era uma farsa; eu mesmo era uma farsa, por completo. E, se por algum motivo, ele poderia ser algo real para mim, não deixaria isso escapar. Tudo que eu podia ver ao meu redor eram borrões e imagens distorcidas, tamanha era a pressa que eu tinha em alcança-lo. Diminua a visão, amplie os outros sentidos: era o que Fleur sempre me dizia. Concentro tudo que tenho no olfato e no cheiro de maçãs, parando bruscamente quando ouço um baque seco em uma das árvores. Algo gemeu e pareceu cair com força no chão, enquanto algumas risadas e ameaças começam a se espalhar pelo ar à volta.

– Onde pensa que vai com tanta pressa, seu animal? – As vozes vinham de alguns dos jovens aspirantes a cavaleiros, que pareciam se divertir às custas do garoto.­ – Eeeh... Vocês só servem para trabalhar, escória. E para serem humilhados, não importa como, ou onde.­ – Outro deles falou, enquanto tomava certa distância e desferia um chute na barriga do garoto, que cuspiu uma boa quantidade de sangue depois disso. Pareciam haver quatro deles ali, um mais velho que os outros possuía uma espada. Aquilo não iria terminar bem, eu tinha certeza. Mas não podia apenas ir lá e retirar o camponês das mãos deles. Eu precisava de um motivo, ou o que ele sofreria depois seria infinitamente pior. O desespero começa a tomar conta de mim. O demônio interior parece se divertir com minha agonia, o medo ainda é o alimento que ele mais aprecia. As agressões continuam, cada vez mais violentas, enquanto um dos rapazes o segura para que os outros possam desferir socos e chutes contra ele, uma situação completamente injusta. Por minutos que parecem intermináveis, luto comigo mesmo em busca de uma solução, mas nada parece vir. – Agora vamos nos divertir um pouco. Você vai servir a cada um de nós, animal sujo... vamos gastar um tempo com essa vadia, rapazes. – Meus olhos se abriram de maneira súbita, as mãos cerradas em punho enquanto eles começavam a despir algumas partes da armadura, jogando o garoto no chão mais uma vez. Eu não podia deixar que fizessem isso, mesmo que não houvesse um motivo. Quando um deles se aproximou mais, eu não tive outra reação. Não tinha uma explicação, mas me aproximei a passos rápidos, com uma expressão de desprezo e repulsa, que escondiam com sucesso todo o ódio e raiva que eu sentia deles. – O que pensam que vão fazer com ele? Quem permitiu isso? – Cruzo os braços e paro a uma distância razoável, enquanto os dois mais velhos se levantam rapidamente e fecham as calças. Provavelmente me conhecem, parecem ter mais tempo no castelo que os outros dois, pajens imundos. – Maldito, quem pensa que é para destruir nossa diversão? Arrume outro para você, eles estão por todo lugar!!! – O mais novo levantou aos gritos, enquanto pegava uma pedra e vinha em minha direção, visivelmente frustrado. Não me movo, sei que ele não fará isso. Minha suposição é confirmada quando os dois mais velhos o seguram e tomam sua pedra, jogando-o longe, perto do outro rapaz. – Lamentamos pelo comportamento dele, Alteza. Não vai se repetir. – Quando estes falaram assim, os outros perceberam a real situação. O medo que cobriu seus rostos foi a melhor recompensa – quase a melhor – pois eles sabiam o que lhes esperava depois. Alguns minutos depois, eles se levantam, até que o mais velho volta a falar. – Não sabíamos que iria se importar com... com isso. Nenhum dos outros se importa com os servos do feudo. – Reviro os olhos e começo a analisar os rostos de um por um, guardando cada um deles. Vou até o garoto no chão e o levanto com um pouco de indiferença, vendo os machucados e as marcas de agressão. Eu teria muito trabalho para consertar tudo isso, mas com um pouco de sorte acabaria tudo bem. Apoio um de seus braços sobre meu ombro e o levanto, nada que alterasse meu equilíbrio. – Não me importo com nada que vocês façam, são uma escória pior que os servos. Mas a partir do momento que brincam com aquilo que me pertence... - Deixei que essas palavras saíssem com um sorriso malicioso, como se deixasse aberta a questão de o que aquilo significava. – ... a situação muda de foco. Nunca mais se aproximem dele, ou terão problemas comigo. – Solto as últimas palavras rispidamente, enquanto pego o mesmo caminho entre as árvores e volto para o castelo, carregando o jovem ao meu lado. [...]”

A jovem percebe minha aproximação. Talvez imagine que sou apenas outro turista, interessado em comprar alguma coisa que os nativos da velha ilha possam me oferecer; mal sabe ela que eu conheço muito mais sobre esse lugar do que ela um dia virá a conhecer sobre o mundo todo. – Três maçãs por duas moedas, senhor. Estaria interessado? – As palavras dela eram gentis, ela não fazia a menor ideia do que poderia lhe acontecer em breve. Pego as moedas no bolso e estendo-lhe a mão, esperando que me entregue as maçãs, quando uma corrente de vento frio passa por nós e espalha um perfume até então latente. Eu conhecia esse perfume, era ele. Por um momento estremeço, imaginando o que isso poderia significar. Ela percebeu minha expressão e logo levantou um lenço, com as iniciais bordadas em fios de prata. – Tem um perfume agradável, não é? Um jovem cavalheiro me deu este lenço faz pouco tempo, quando me cortei limpando algumas maçãs. – A vendedora sorriu como se lembrasse a história como algo do presente, apontando para uma das ruas à minha direita. Deixo as moedas caírem em sua cesta, colocando as mãos nos bolsos e seguindo pelo caminho indicado. Eu não poderia saber se ele continuaria lá, nem a quanto tempo tudo havia acontecido. Mas eu sabia que um dia o encontraria, quem sabe agora?



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Notas finais do capítulo

O que pode acontecer agora que seus caminhos se interligaram?
To be continued...



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