Borboletas na Lua escrita por Aluada


Capítulo 5
Aquela surpresa


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo nasceu de vários devaneios, daqueles que a gente tem de tanto matutar na fic antiga (mais de ano, quem diria!). A Roxane me acalmou e disse que ele está bom assim. O que vocês acham?



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            Gostaria de poder fazer alguma coisa pelos meus cabelos; vejo-os salpicados de fios brancos pelo reflexo do espelho. E pela minha barba também, constato ao passar a magia-lâmina pelo meu rosto. Estou ficando velho, suspiro. Dói. Passo os dedos pela pele da minha testa e sinto-a enrugada, os poros abertos de cansaço de tantas luas cheias. Eu pareço... pareço... tenho que apertar a vista para parecer alguma coisa! Suspiro duplo. Quem estou tentando enganar? Eu estou velho.

            — Aonde nós vamos?

            A voz feliz vem por trás de mim, lógico. Ela é o ponto florido amarelo alaranjado do espelho, sentando na beira da cama enquanto disfarça um arrumar de cabelos. Tão claro, tão brilhante, tão jovem... meus pulmões — aaaaaaah! — têm que se encher de ar.

            — Já disse, é surpresa. Não me pergunte de novo; não vou dizer.

            — Tudo bem — ainda que sua voz não soa como se estivesse — Mas e a reunião? Foi boa?

            — Também não posso te falar. Você é uma aluna, Hermione — brinco. Claro que é verdade; reunião de professores de final de semestre é um assunto estritamente confidencial. Dumbledore nos proíbe sequer de comentar a respeito dela fora de Hogwarts, imagine dentro dela. Imagine com uma estudante. Imagine — imagine com ela! Não, acho que as regras já foram suficientemente violadas, obrigado.

            — Ei! Eu não perguntei nesse sentido! Não faça parecer que eu —

            — Calma — não posso deixar de sorrir com sua revolta adolescente —, eu entendi o que você quis dizer. Mas eu não posso contar, é uma das regras da escola. Ao menos esta, não?

Vejo o final de seu riso tímido quando me viro de volta para o espelho, tentando me concentrar novamente na barba incompleta. A verdade é que, não fosse esta uma norma e eu já não tivesse transgredido muitas, contaria tudo. Gostaria de poder falar das janelas e portas, todas mais que abarrotadas de feitiços, para enclausurar as notas e os comentários mais procurados da escola; do passar de pergaminhos pelas mãos impacientes de tantas tarefas acumuladas; dos bocejos involuntários e das piadas internas, fora de hora, condenadas em um só olhar por... Severus, claro, a memória tilinta. Ah, ao menos esta história ela poderia saber!

— Tem uma coisa...

Não; desisto.

— Ham?

Tudo bem; metade.

— Tem uma coisa que eu posso te contar.

Meu estômago se revira e tenho que me forçar para não deixar escapar a risada, nem de canto de boca, enquanto seleciono parte de uma lembrança cheia. Já havia passado um bom tempo desde o começo da reunião. Tenho certeza, porque Minerva já ignorava a pena de repetição rápida e se punha a fazer suas próprias anotações. Estávamos computando os horários extra-classe dados ao longo do semestre, e logo chegou minha vez: “houve uma”, comecei, “com Terry McFly, primeiro ano, dificuldade com amuletos e talismãs; Sora Myuki, quinto ano, dificuldade com a azaração do Fosco Fogo; Harry Potter, lógico, e o feitiço do patrono; Draco Malfoy, terceiro ano, perda de aula por motivos de saúde”... no meio da listagem, retomei fôlego para tentar sutilmente emendar...

— ... Hermione Granger, terceiro ano, aulas de reforço. Kathleen Ro—

— QUEM?

 Minerva tinha derrubado o tinteiro e a tinta escura já engolia os pergaminhos limpos sobre a mesa — curiosamente, tudo o que ela podia fazer era me encarar, os olhos arregalados por cima das lentes dos óculos. Como se uma sujeira neles pudesse afetar sua audição, suponho.

— Hermione Granger, você disse?

— Sim.

A Hermione Granger? — Flitwick pediu para repetir. Agora deviam ser trinta os olhos que me fitavam.

— Sim, eu realmente não —

— Meu Merlim!

— Mas ela faz todas as matérias!

— A melhor aluna de Hogwarts!

— Até ela?

 — Então — eis que surgiu — você está nos dizendo — não tarde — que nossa Hermione “Sabe-Tudo” Granger — meu maior medo — precisa de aulas de reforço? — o olhar de Severus cortou meu cérebro como uma lâmina. Feche sua mente, pensei com todo meu poder de concentração; feche sua mente, feche sua mente, feche sua mente, fechesuamentefechesuamente —

— Remus? — era um ruído.

Fechesuamentefechesuamente —

— Remus, é verdade isso? REMUS?

— O quê, o quê? — eu acordei de minha fortaleza mental com gritos que pareciam sedentos pelo meu sangue — Oh, sim, verdade absoluta. Absoluta. Mas deixem-me falar, senhores, a respeito do conteúdo das aulas. Ele não foi, de maneira alguma, exigente. Eu adaptei algumas atividades conforme o pedido da própria aluna — enfatizando a parte do pedido dela, certamente.

— E em que consistiam essas atividades?

— Eu lhe orientei em algumas leituras ao longo do semestre.

— Claro! — felizmente Snape não fingiu uma risada sarcástica; ela teria soado assustadora — O empréstimo de livros. Como eu poderia ter esquecido...?

Foi então que percebi que não, que daquela primeira vez seu olhar fora apenas uma agulha, pequenina, minúscula — desta vez eu mal pude respirar com a verdadeira lâmina que cortava ao meio, expondo minhas lembranças mais frágeis... Eu senti novamente a perda de equilíbrio, dor da queda no corredor, os cabelos no rosto... Eu entrei novamente na sala de aula, engoli meu coração pulsando rápido e chamei seu nome para lhe entregar o livro... Os cacos do bule de chá espatifado no chão voaram, e meus dedos gelaram de ter de pegar... em sua... mão... espere um minuto. Será que estes foram flashes meus ou efeitos dos legilimens...? Será — será que ele viu tudo que eu vi?

— Remus? — o ruído retornou levemente diferente.

Isto não tinha me ocorrido até agora. Não, mas se realmente tivesse sido o feitiço, ele não teria deixado em branco. Ele me odeia, Severus me odeia com todas as suas forças e teria usado disso imediatamente para me derrubar. Sim. Talvez tenha sido realmente só o medo, a vida que passa diante de seus olhos quando —

— Remus, o que é que você pode me contar, afinal?

Tenho de disfarçar o maior susto da minha vida ao encontrá-la quase em cima de mim, seus braços se apoiando no meu, o sorriso divertido debochando do meu momento de devaneio longo demais.

— Você, Srta Granger — meu suspense tem certo tom burocrático misturado com saliva engolida —, foi uma das pautas da reunião dos professores. Muito mencionada. — Ela desvia para baixo seu olhar que quer saber o quê, mas não pode perguntar. Quero esperar ela ao menos voltar até a cama, porém meu dó não permite prolongar o mistério dolorido por mais tempo: — Foram só elogios, Hermione. Eles te adoram.

— Não é assim, vai...  — mas suas bochechas coradas sabem que é.

Olho para o espelho num ato reflexo e percebo que minha barba já está feita, talvez há muito tempo. Procuro não tentar lembrar como a terminei; sei que vou ficar triste por não conseguir. Deixo o banheiro com Hermione quase a tiracolo e lhe entrego as duas coisas que tiro do armário, o Mapa do Maroto e a resposta que mantenho na ponta da língua desde que chegara: “é surpresa”. Entretanto, minhas previsões não são tão boas assim; ela realmente faz uma pergunta, mas não a que eu esperava.

— Então quer dizer que professores podem usar os objetos apreendidos dos alunos? — ela me provoca, desenrolando o pergaminho do mapa.

— Claro que podemos — eu aceito — A professora McGonagall, por exemplo, voava com a Firebolt de Harry todas as noites. — Está aí algo que definitivamente seria uma grande surpresa. Mas o que planejei é melhor, sem dúvidas. Antes de abrir a porta, a imagem de Severus volta num flash e prefiro cochichar em seu ouvido: — Nós vamos sair do castelo. Se algo der errado, nos encontramos perto do Salgueiro Lutador, ok?

Ela confirma com sinal de receio. Isso me faz querer olhar novamente o mapa, e olho, mas de relance, para não perder a confiança. Hora do jantar, corredores vazios, certamente o melhor momento para sair. Ainda assim, atravessamos o terceiro andar até as escadarias com a respiração no mesmo compasso nervoso. Volto para o mapa; todos os pontos felizmente dentro do bloco do Salão Principal. Voamos as escadas de dois em dois degraus — a apreensão é tanta que sinto nossos dedos se entrelaçarem e não tenho o impulso de afastá-los. Chegamos às portas de saída. A madeira exige força para ser empurrada, mas seu peso nos traz alívio do lado de fora: finalmente protegidos do castelo.

Resta a brisa e o gramado; nós o percorremos andando, ela com a feição para a paisagem e eu ainda no mapa, embora discretamente. Agora só há Hagrid, mas a ausência de fumaça da chaminé me lembra que ele provavelmente está bêbado, chorando suas mágoas não-merecidas por Buckbeack.

— Eles vão crucificá-lo amanhã à noite. — Os dedos que me contam apertam ainda mais os meus.

— Pobre Hagrid...

O som dos galhos retalhando o ar me acorda para minha própria realidade. O Salgueiro Lutador dança diante dos meus olhos como se estivesse cumprimentando o companheiro de antigas noites de lua cheia. Sinceramente? Esta é uma amizade que dispenso, ou que gostaria de pelo menos poder dispensar... Apanho um graveto mais ou menos longo do chão e estico meus braços até o máximo, até atingir o nó escondido sob as folhas secas. A árvore congela.

— Como você sabia disso?

— Anos de experiência...

O movimento involuntário que me faz segurar sua mão volta e descemos o túnel de terra assim, eu à frente dela e ela comprimindo meus dedos, até meus pés sentirem a terra firme novamente. Sob um Lumus, o caminho estreito se revela — e cada grão de areia, cada aranha, cada respiração de ar rarefeito fazem minha memória dar uma revirada dolorosa. Dezesseis anos de distância não parecem mais fazer falta. Curvo-me e volto a guiar Hermione. Não posso mais sentir minha mão; o sangue foi embora para um lugar com menos medo.

A eternidade do caminho a passos curtos termina na claridade de um vão na parede. Ele costumava ser um buraco na parede Remus, e você podia atravessá-lo em um movimento só; agora não é nada mais do que isso, um vão, minúsculo, e quase fico preso em minhas pernas. Hermione tem mais sorte, e menos tamanho, que eu. Ela mal passa e seu senso de curiosidade a leva para longe de mim, onde ela sussurra algum feitiço decorado. Em um instante, a sala é inundada por luz.

Minha sensibilidade se esvai. Não sei se a vontade louca de vomitar é da poeira misturada com mofo ou da lembrança ácida que ataca a parede do estômago, agora tanto faz; lacro a boca e faço força para engolir qualquer um dos dois que esteja entalado. Queria que meus olhos obedecessem, mas não, eles estão escancarados, percorrem cada móvel e cada marca de violência com desespero para lembrar. Eu nunca deveria tê-la trazido aqui, penso, com a certeza de que a qualquer minuto eu estarei transformado, as garras e os pêlos, e os dentes, saltando para fora como se o lugar clamasse pelo lobo; vou machucá-la, mordê-la, rasgá-la, vou matá-la, tenho que sair, tenho —

Então o quarto desaparece na escuridão.

— Remus, Remus, Remus — é um sussurro —, já sei onde estamos, ah, Remus, temos que sair daqui, Remus, agora! — Ela puxa minha mão, mas meus pés estão plantados — É a Casa dos Gritos. Eu ouvi boatos de-de fantasmas, e espíritos malignos, e coisas piores. Temos que sair daqui, Remus, por favor...

A sala no escuro me parece mais... familiar. Eu consigo apertar sua mão de volta.

— Os rumores são falsos, Hermione, não se preocupe. Fantasmas não quebram paredes nem arranham móveis. Lobisomens fazem isso.

Minha pele está limpa: nada de pêlos, ou garras, ou dentes. Respiro o ar do passado, porém hoje ainda é hoje. Consigo até mesmo me recordar do propósito primeiro. Está tudo bem, Remus.

— Vem comigo.

Seguimos até a escada. Dou o primeiro passo e meus ouvidos o multiplicam por dois, quatro, seis passos apressados que se atropelam na subida, correm pelo corredor e batem a porta do quarto. A casa está infestada pelas risadas de James, Sirius e Peter, posso ouvi-las mais altas a cada degrau. Eles me derrubam da cama e se jogam sobre mim; minhas costelas doem. Sinto impulso para pôr Hermione atrás de mim — eles logo vão passar correndo novamente, o cão, o cervo e o lobo às suas costas, vão atropelá-la sem nem ao menos notar. Então a escada acaba, o barulho morre. Eles não estão aqui. Estou enganado. Con... continuamos.

            Adianto-me para a última porta à nossa frente. Ela desliza com o ranger característico do tempo para revelar o recinto que procurava: os sofás carcomidos à direita, a estante derrubada à esquerda, à janela interditada ao fundo. Já estendo a varinha em punho para adiantar o movimento das vidraças que meu Alohomorra se esforça para desencadear. Uma fresta desabrocha sob as tábuas — os exatos mesmos centímetros de antes — e os últimos raios de sol do dia mostram como nunca deixaram o céu.

            Cedo a beirada da janela a ela com uma dor no coração fora de lugar.

            — Não é o pôr-do-sol mais lindo que você já viu...?

            Não preciso forçar a vista na abertura para enxergá-lo — fecho os olhos e lá está ele, o sol se desmanchando nas torres do castelo, o vermelho-laranja-rosa descendo e invadindo o horizonte e as casas e as lojas de Hogmead, agora tão minúsculas, que se amontoam umas sobre as outras. Tenho certeza de que nada mudou. Ao menos espero que não tenha mudado.

            — Eu costumava me sentar nesta janela. Eu vinha aqui todo mês para me transformar. Foi Dumbledore quem construiu este lugar; ele me deu a casa para que eu pudesse... frequentar a escola. Então eu vinha aqui uma vez por mês. Eu vinha sozinho, antes do fim da tarde, para não correr riscos. Subia até esta janela e ficava esperando o pôr-do-sol.

            “Ô, psiu, Moony!”, uma voz fala perto da porta. Não há ninguém.

            — Ele me dava forças. Eu... eu vinha aqui contra a vontade. E tinha muito medo. Eu tinha que passar por isso sozinho, não podia compartilhar com mais ninguém além... de mim. E sabia que seria terrível. Muitas vezes eu já vinha passando mal. Mas quando eu vinha e me sentava aqui, por mais... horrível que a casa fosse, por mais doloroso que eu soubesse que seria, era como... era como se... eu não estivesse sozinho de verdade.

            Nunca; eu sabia que James e Sirius teriam planejado alguma aventura noturna na floresta, no lago, em qualquer lugar que me fizesse ficar arrependido pela doce imprudência de todos os meses. Eu nunca as quis, sempre neguei todas. Mas meus sentidos vibravam a cada estrela que o pôr-de-sol permitia. Eu sabia que seria maravilhoso. Eu sabia que não estava sozinho.

            O sol se vai. Hoje a casa continua funda no silêncio.  Eles não vêm.

            Mas, por algum motivo — o motivo que esquenta meus dedos e os molha com uma lágrima disfarçada —, não tenho medo.

            — Você nunca estará sozinho, Remus. Nunca.

            Não estou.

 


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Notas finais do capítulo

Penúltimo capítulo!