Borboletas na Lua escrita por Aluada


Capítulo 4
Aquela manhã seguinte


Notas iniciais do capítulo

Resolvi mudar o narrador da história, tra-la-lá! Espero que gostem. Eu me diverti HORRORES imaginando esse capítulo



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            Ham..? O quê..? Mas... que luz... é... essa?...

            Ela seria tão bonita, se não fosse... não fosse.... tão clara. Tão absurdamente clara que poderia me cegar. Ah... por que deixam uma luz tão clara assim, logo de manhã..? Quero... quero... o quê? Ah. Apagar esta maldita luz. Meu braço poderia fazer isso, eu o estenderia até que... ela... fosse embora. Mas não o sinto. Não sinto meu braço. Não, claro que não, porque.... sou.... um rato. Eu não tenho braços. Sou um rato. Estou correndo por entre corredores úmidos e emaranhados enquanto fujo deste... cão... enorme.... e... brilhante...?

            Não! Eu sou humano, totalmente humano, com faculdades mentais suficientes para conseguir distinguir sonho da realidade. O rato, sonho. A maldita luz que não me permite abrir os olhos, realidade. Sua cabeça está meio zonza, só isso. E seu corpo, completamente sem sensibilidade. Você é esta... grande massa amorfa desmembrada, composta por estes dois olhos cegados e por um cérebro que... martela.... co-pi-o-sa-men-te. Ah. Mas eu já me senti assim antes. Muitos “antes”; repetidos “antes”. E este desconforto está diretamente relacionado com... ratos... e... cabelos...?

            Calma. Concentração. Você acaba de ter o maior avanço dos últimos dez minutos ─ você sente suas pálpebras. E elas podem se mover, você sabe. Você vai abri-las. E você vai descobrir o que está acontecendo. De... va... gar... a... brin... do ─ e a luz amarela entra diretamente na pequena fresta que eu libero, tudo automaticamente arde, minhas defesas fecham á entrada de visão. De novo. De... va... gar... isso... se... acostumando... bom... vejo... vejo que... a luz... é... um quadrado... preso.... na... parede...?

            Sim. A janela. Sim. Até consigo piscar. Sim! Apesar de que ainda não sinto meu pescoço. Tudo bem.  Já sei onde estou, como estou e como vim parar aqui, ótimo para uma primeira conclusão. Estou deitado na minha cama, na minha sala, em Hogwarts. Sou professor de Hogwarts há alguns meses, então não há motivo para me preocupar com a minha localização: primeiro ponto positivo. Segundo ponto positivo: a julgar pela minha posição e pela da luz brilhante ─ o sol ─ deve ser algo como duas da tarde. Dormir tanto e acordar atordoado com esta dor de cabeça, no mínimo, alucinante, quer dizer que a noite passada foi de lua cheia.  Não que seja um ponto positivo. Talvez somente um ponto. Um ponto. Agora... e os ratos e os cabelos..? Talvez... bom, talvez ...

            Um momento, não, um momento. Sol entra pela minha janela. Há sol entrando pela minha janela. Eu sempre, sempre a cubro com a cortina em noites de lua cheia. Não, não poderia haver um motivo plausível para que eu quisesse encarar a lua ontem à noite, a não ser ─ a não ser que mais alguém tivesse estado aqui comigo. Certamente... mas... a quem eu estaria disposto a abrir a porta numa noite... delicada? A menos que esta pessoa tenha entrado forçadamente... ou sem que eu soubesse... assim como um... rato! Pettigrew! Pettigrew esteve aqui ontem!

            Esteve?           

            Hum. Huuum. Sensibilidade. Consigo sentir minha boca agora, e ela está tão... tão... eu passo a língua pelos meus lábios e eles estão tão... molhados. Minha boca está molhada.  Estranho. Deveria estar seca. Um fato juvenil me ocorre, que não posso deixar de ignorar. Sorrio, mas se pudesse sentir minhas mãos teria as usado para afastar o pensamento. Ora, Remus, enxaquecas não combinam com lembranças levianas de beijos adole... ─ Oh. Beijo. Tenho a súbita lembrança de um beijo. Não, não, não, não a memória adolescente, é mais próximo, mais real... e tem... os... cabelos... e eles são... emaranhados...?

            Ah, meu Merlim.

            Ah, meu Merlim, meu Merlim, meu Merlim ─ eu beijei Pettigrew?!

            Torço desesperadamente para que a pontada na cabeça seja meu cérebro querendo negar-me este pensamento medonho. Não, Remus, você definitivamente está acordado o suficiente para redefinir as recordações. De novo: realidade, sonho. Realidade, sonho, realidade, sonho. Se Pettigrew é realidade, beijo é irrevogavelmente sonho. Não quero discutir com a lógica, ainda mais quando ela vai contra possibilidades totalmente execráveis.

            Perfeito, então eu sonhei com um beijo. Eu deveria estar me preocupando com Pettigrew, é claro. Um homem supostamente morto veio ao meu quarto ontem à noite, sustentando todas as minhas suspeitas e derrubando por terra tudo o que acreditei nos últimos dez anos. No entanto, um beijo, um minúsculo beijo imaginário é o que traz de volta a sensibilidade ao fundo do meu estômago. Ele se retorce de medo, eu o sinto contaminando todos os outros órgãos. Ele está certo, porque o fato é assustador ─ um beijo necessariamente envolve uma segunda pessoa, e os cabelos da lembrança não me deixam enganar. Aaaah. De novo, Remus, de novo. Parabéns irônicos. Este deve ser seu certificado oficial de repugnante louco depravado ─ você sonhou com Hermione Granger, Remus, mais uma vez.

            Severus um dia me pegará pensando nela. Lerá minha mente e não terei como negar. Dumbledore me expulsará, ou, não, eu me expulsarei; não conseguirei encará-lo nos olhos. Um professor sonhando com uma aluna! Repetidas vezes! Eu passo as mãos no rosto como se quisesse me esconder ─ já sinto meu corpo da cintura pra cima, é verdade, mas minha cabeça roda tão forte que isso é praticamente ignorável ─ de vergonha. Eu nunca fui... assim. Nunca demonstrei esse... tipo de... comportamento. Eu não posso estar apaixonado por uma menina, seria absurdo.

            Preciso parar com isso. Por... definitivo. Vou me afastar das aulas até... até... a Páscoa, e dizer que estou doente... que é rejeição à Poção do Acônito... Exato. Vou me reavaliar até lá. E agora, eu vou... eu deveria estar de pé, já. O sol aponta para mais de três. Mas Hermione Granger me atingiu como um Avada... Kedavra. Minha cabeça... dói... quase cega meu olho esquerdo. Novamente, co-pi-o-sa-men-te. Uso meus braços recém-sensibilizados e tento me mover para uma posição menos confortável, ou pelo menos mais diferente. Um, dois, e ─

            ─ Ai! ─ penso ouvir. Meu braço dói. Bati em algo duro.

            É bom sentir a dor, é bom sentir os membros de novo. Durmo.

            ─ Remus?

            Você prometeu que ia parar com aquilo, Remus.

            ─ Você tá acordado?

            Mas a voz dela continua a tilintar no meu ouvido.

            ─ Remus?

            Meus olhos procuram por ela.

            ─ Remus, tá me machucando!

            E lá está ela. Deitada, ao meu lado, meu braço comprimindo-a por entre os cabelos.

            E LÁ ESTÁ ELA?

            Pisco pesado, depois solto. Vejo dois enormes olhos castanhos amendoados arregalados em minha direção. Pisco novamente. Eles ainda estão lá, escondidos por trás dos nós dos cabelos ondulados. Outra vez, e eles estão surpreendentemente perto, e eles vem de um corpo, um corpo real, deitado a centímetros de mim ─ não, ele está encostado em mim, dividindo a mesma cama. Eu posso senti-la, cada fio na minha pele, a respiração leve fazendo cócegas.

            Num ato reflexo retardado, eu grito.

            ─ AAAH!

            E estou no chão. Automaticamente recupero a sensibilidade no restante do corpo, especialmente na região do cóccix. Por sinal, não de modo muito agradável. Mal posso gemer de dor, minhas energias se drenam na tentativa de recuperar a visão embaçada pelo preto. Ao menos, não posso mais vê-la. Ora, não posso mais vê-la, repito a mim mesmo, porque eu nunca efetivamente a vi. Claro! Ela provavelmente era só um pesadelo provindo de alguma reação alérgica à poção, eu penso tanto que ─

            ─ Remus, você tá bem?

            Não, oh, não, ela volta, ela existe, ela estava deitada na minha cama. Comigo.

            Um, dois, respire, um dois, respire, um dois... É preciso avaliar a situação de modo racional: checar os precedentes, verificar as possibilidades, averiguar com as fontes, encontrar a melhor solução. Certamente gritar e se torturar não vai apagar o fato de que há uma aluna sua na sua cama ─ e paro as constatações aqui, a fim de evitar outros nervosismos. Um, dois, respire... Em primeiro lugar, concentre-se: você tem que descobrir como ela chegou até aqui.

            ─ Como você... chegou até aqui? ─ foi o caminho mais prático.

            ─ Vim ontem à noite, não se lembra?

            ─ Minha mente está um tanto quanto conturbada ─ como se “um pouco” significasse “completamente” ─ Mas... noite passada? Tem certeza...? E o que... exatamente... você veio fazer... aqui?

            Meu fôlego de esvai de modo inverso ao do tom que lhe tinge o rosto. Ela está muito vermelha, da testa ao pescoço, inclusive as pontas dos dedos que apertam forte o edredom. Provavelmente toquei em algum assunto delicado, constrangedor ─ e isso não é bom. A cor reaviva algum canto esquecido da minha memória e retorce o distorcido; o que era real e o que era sonho já não me parecem tão definidos assim. Isso definitivamente não é bom. Será pior se ela se mantiver em silêncio, se ela voluntariamente se recusar admitir que cometeu o ato (obviamente, pois) condenável. Ela não pode ficar calada. Não pode. Não pode.

            ─ Você realmente não se lembra...?

            ─ Infelizmente, não... você... não poderia...?

            Ela abaixa a cabeça. Não abre a boca pelos próximos trinta, quarenta segundos, no silêncio mais ensurdecedor que poderia haver. Ela não falará.

            O silêncio me come vivo.

            Mas ao mesmo tempo, é como se ela me gritasse a verdade escancarada; depois de um tempo meus ouvidos começam a soar um apito agudo, talvez reflexo do grito contido, talvez tentativa corporal de se auto-confortar. De relance consigo enxergar o Mapa do Maroto aberto e trabalhando sobre o criado-mudo; a explicação evidente para o sonho com Peter Pettigrew e com Sirius Black, minhas segundas preocupações ininterruptas de todos os dias. A primeira está diante de mim, paralisada, os braços um pouco trêmulos com esforço da posição para ver-me ─ e que tardiamente recuso. Eu a beijei, uma aluna, uma menina, e ela está aqui, comigo, sobre minha cama, passou a noite ─

            Minhas pernas me levantam mais rápido do que achei que seria capaz, mesmo em condições normais. Deve ser meu coração, que bombeia sangue apavorado.

            ─ Eu te beijei!

            Seus olhos arregalados me dão mais medo ainda.

            ─ Eu te beijei ─ eu não sinto minhas mãos, não sinto, como ela podem estar se mexendo tão freneticamente? ─ Q-quero dizer, nós não... n-não...

            Da cama para ela, dela para cama, ela logo entende.

            ─ Quê?! Não, não, não, não, ah, não, você tava transformado! Eew! ─ não o que qualquer homem preferiria ouvir, nem justificativa apropriada, eu diria, mas para mim, agora, extremamente reconfortante ─ Ah. Não. Definitivamente. Não.

            ─ Ok ─ pigarreio ─ Ótimo. Então ótimo. Talvez seja melhor eu... pôr uma roupa mais adequada ─ a atual com muita sorte se manteve intacta, obrigado ─ e você pode... comer algo... se... se quiser, claro... ─ agradeço novamente ainda pela sensibilidade que ela demonstra; bem logo ela fecha a porta que separa o quarto do escritório e eu me vejo sozinho com meus suspiros, finalmente, como deveria ser.

            ─ Parabéns, professor lobisomem ─ fecho os olhos encostado à madeira fria ─, você acabou de arruinar sua vida!

            Não sei quanto tempo fico lá, estático, sem coragem de contar minhas possibilidades. A próxima coisa que me vejo fazer é vestir uma camisa do guarda-roupa, e talvez eu só perceba pela estrondosa dificuldade que encontro para abotoá-la com dedos frágeis pós-transformação. Ao chegar em cima, concluo que devo ter errado uma casa mais abaixo. Não tenho forças nem para corrigir, nem para amaldiçoar. Não sei o que faço em seguida, porque me perco novamente.

            Preciso tirá-la daqui. Apagar qualquer vestígio de aluna, ou de garota. Dumbledore desconfiará, é certo, e eu terei de mentir. Novamente. Como sempre. Mais uma para minha lista de mentiras para salvadores de almas. Neste ponto da vida eu não deveria mais ter dor, quanto menos coração, eu suponho. Só uma bomba de sangue, suficiente má para me deixar pálido e trêmulo. Não tenho escolha. É meu coração ou minha vida. E eu deveria pôr as calças agora. Não; estou com elas; o cinto. O cinto...

            Passo pela segunda abertura do cômodo em direção ao banheiro adjunto. Evito olhar para o reflexo cadavérico, procuro só jogar a água gelada no rosto, diminuir as olheiras. Agora sim, procuro por elas no espelho, mas não a vejo ─ eu preciso tirá-la daqui, ainda penso, preciso tirá-la da minha vida. Talvez nunca mais dar aula para ela; mudar os horários; dar a disciplina para Severus, quem sabe? ─ Não. Ele desconfiará. Se eu negar terminantemente, ele saberá que quero esconder a verdade ─ legilimens, ele tem legilimens! Não. Eu devo fingir que nada aconteceu. Apenas levar minhas aulas normalmente. Mas não sorrir para ela. Não. Manter uma distância segura, uma distância não-recriminadora. Ele nunca saberá, eu nunca deixarei que ele perceba. Ou que qualquer outra pessoa perceba. Ninguém. Meu rosto ainda está molhado. Alcanço uma toalha e o enxugo.

            Agir normalmente, é isso que devo fazer. Exato. Agora abrirei esta porta, manterei uma postura séria de professor e...  me preparei para nunca... nunca mais vê-la novamente...

            Não posso.

            ─ O que há de errado comigo...?

            Fujo da resposta, melhor abrir a porta e fazer o que tenho que fazer. Suspiro.

            Então as vejo. Bolachas! Quem ficaria preocupado quando há bolachas?

            ─ Eu achei elas naquele armário ─ havia um sorriso encabulado por cima do prato ─, e eu também tomei a liberdade de fazer um pouco de chá. Li que faz bem comer logo na manhã seguinte. Evita possíveis desconfortos.

            ─ Realmente ─ reconheci de pronto a citação corrida da página quinze  ─, evita mesmo possíveis desconfortos... Obrigado...

            Pelos cinco ou seis minutos eu permaneço sentado, comendo, bem mais preocupado em mastigar, e em engolir, e em me sentir bem, e em como esta cena parece ser um déjà vu irônico do ano passado. Vejo-a por trás da porcelana. Tento me distrair com os desenhos para fugir do confronto final, porém, é como se minha consciência beliscasse. E ela está machucando.

            ─ Srta Granger, precisamos conversar. Eu já me lembro de — paro para recorrer ao pronome mais indefinido possível — tudo.

            — Tudo bem — um tom particularmente difícil de decifrar.

            — Tenho que admitir que — nova escolha de palavras — o que aconteceu — ótimo — foi uma atitude totalmente impensada de minha parte. Talvez eu estivesse sob o efeito da poção... Enfim, você merece minhas desculpas, minhas sinceras desculpas. O melhor, ou o ideal, seria esquecer tudo isso, o que você disse, o que eu fiz, tudo, e... seguirmos em frente! Podemos terminar o chá, e depois te levo até seu dormitório — no papel de seu professor, é claro.

            — Desculpe, ahn, desculpe por te interromper. Mas isso não dá.

            — Como?

            —O que eu disse ontem à noite... Eu sei, parece exagero, mas não é. E-eu gosto mesmo, mesmo, de... você.

            Até este momento eu tinha me esquecido completamente do outro lado da história — como ela tinha batido em minha porta num momento inesperado e abaixado minha guarda com doces palavras de sonhos. É verdade; minha memória faz meu coração bater mais rápido. Eu quero sorrir, mas a razão deixa minha boca amarga.

            — Srta Granger, você é uma garota bastante madura e esclarecida. Você obviamente sabe que esta situação não pode ser levada adiante.

            — Na verdade, acredito que ela preenche todas as condições — exatamente como em nossa aula sobre Kappas, lógico — e, portanto, possa, sim.

            — Quais condições?

            — O senhor... retribui... meus, ahn, sentimentos.

            Eu poderia exclamar os dez pontos positivos merecidos para a Grifinória pela resposta correta, mas seria um sarcasmo além de mim. O papel de professor quase também se rasga e pede para ir embora, mas tenho de mantê-lo ali, a postura firme, a atitude correta. Abaixo a cabeça e luto dentro de mim, o olhar estático dentro da xícara (é quase um Sinistro a forma da borra do chá, tenho certeza), o sorriso agora quase escapando, quase se abrindo, quase gritando que sim, que claro que sim, que não consegue passar uma noite sem um sonho com ela, ora veja só! Não, eu encho meu diafragma de ar e impeço qualquer movimento da boca, falando logo em seguida:

            — Não é uma questão de sentimentos; isto é muito, muito maior. Eu sou seu professor e, nesta posição, eu estaria te subjugando —

            — Você não está!

            — ...e ferindo as regras de Hogwarts. Dumbledore —

            — Ele não precisa saber!

            — ... ele não é somente o diretor desta escola, é também um membro forte dentro do Ministério. Não se trata de quebrar algumas regras escolares, estamos transgredindo princípios morais. Isto é enorme, é preocupante. Você sabe disso.

            Sei que sabe, porque suas bochechas estão coradas e suas sobrancelhas, arqueadas. Está com vergonha; regras são uma questão delicada para ela, obviamente. E sei disso tudo, porque... porque são para mim também. Mas minhas bochechas já não coram mais; estão acostumadas.

            — Bom — recomeço —, então nós podemos pegar alguns livros da prateleira, dizer que nos encontramos na biblioteca esta manhã, e depois —

            — E depois cada ficará em um canto, se odiando pra si mesmo, desejando que eu não fosse sua aluna pra que você pudesse gostar de mim livremente?

            — Srta Granger, você é só uma garota de treze —

            — Catorze anos!

            — Ainda assim uma garota, apenas uma menina, e eu não posso, nem vou permitir que um lobisomem monstro de sangue frio destrua o futuro de uma menina. — Seus olhos brilham de tantas lágrimas; preciso desesperadamente levantar, ficar longe deles. Levanto.

            Tem um casaco pendurado no mancebo logo à porta, velho, desgastado, o mesmo de todos os dias: o visto, me alongando por mais tempo do que seria preciso, desenroscando as mangas e arrumando botões. Estou de costas para ela. Espero que ela compreenda os sinais e se apronte para sair; preciso que vá, mais do que nunca; não suportarei ser interrompido de novo por palavras que podiam ser minhas. Sinto-me estupidamente zangado por estar mais certo do que ela.

            De viés, vejo-a ainda sentada, cabisbaixa. Não sei se chora, espero que não. Não perguntarei; preciso que vá; será melhor. Adianto-me para a prateleira e, sem olhar a capa, arrasto cinco livros de uma vez. Dou três ao braço esquerdo e estendo com o direito os outros dois para ela.

            — Remus — talvez esta seja a pior parte: não há mais “professor”, ela me chama pelo nome. Soa tão doce (a voz tristemente anasalada) que meu coração descompassa —, você já conversou com Harry, não é?

            — Sim, já. Por quê?

            — Ele é meu melhor amigo. Ele me ensinou mais do que qualquer aula ou livro. Ele me ensinou que, às vezes, é preciso quebrar regras para se fazer realmente a coisa certa. Eu estou tentando aprender, mas é difícil.

            Seu nariz inchado e a expressão desgostosa grudam nas minhas retinas, sigo vendo-os do abrir a porta ao subir as escadas. E suas palavras... não é como se parecessem corretas, mas incomodam antes por serem... familiares. Enquanto os degraus passam despercebidos pelos meus pés, chego à conclusão de que eu já as ouvi antes — não, não somente isso, Remus, você já as praticou. Elas são suas lembranças de Hogwarts, todas elas, as saídas, as aventuras, as risadas. As palavras de Hermione não são dela nem de Harry — elas são de James e Sirius, sim, elas são o lema dos Marotos, elas são minhas!

E eu estou tentando negá-las. Em voz alta, bem mais alta que a habitual, para não passar despercebida nem pela sombra da Mulher Gorda:

— Foi ótimo tê-la encontrado na biblioteca, Srta Granger. — Nenhum gesto nosso corresponde a nenhum “ótimo”, então prefiro só dar meia volta e deixá-la.

E negá-las.

E deixá-la.

Como se eu pudesse! Melhor falar antes de me arrepender.

— Bom, sempre é bom recapitular, certo, Srta Granger? — Giro nos meus calcanhares e ainda bem que ela ainda está no mesmo lugar. — São dois rolos de pergaminho de lição extra para serem entregues na minha sala, nesta sexta-feira, às oito da noite. Dois rolos.

— Dois rolos...? Que — ?

— Assim como a noite passada.

— Ah — ela sorri. Sorri! —, claro.

— Esta sexta, não se esqueça. — E dou meia-volta, uma mão no bolso, outra no sorriso meio bobo; totalmente apaixonado por ela.

 


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