Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 19
XVIII — Não é real


Notas iniciais do capítulo

“Annie foi a que enlouqueceu quando seu companheiro de distrito foi decapitado. Saiu correndo a esmo e se escondeu.” Peeta sobre Annie cresta, em "Em chamas", página 368



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O nariz. É a primeira parte a tocar o chão. Um pedaço de mim agradece por seu rosto afundar na lama e eu não precisar mais vê-lo. Abstenho-me da obrigação de contemplar seus olhos vítreos — engolidos pela esclera branca — uma última vez. As pálpebras que nunca fecharam e não mais fecharão, fadadas a se manterem abertas sem que ele possa enxergar.

“Tudo bem, não falo mais sobre isso” eu disse constrangida quando meu aliado, mais uma vez, mudava o rumo da conversa ao falarmos sobre a garota ruiva da Colheita. Noah se transformava em outra pessoa quando eu tocava naquele assunto, indiferente e inalcançável... Mas eu entendia a sua dor. Costumamos nos isolar quando algo nos machuca e, como animais feridos prestes a morrer, nos afastar de tudo e de todos. Somos seres instintivos, emocionais... E eu sabia exatamente o que machucava Noatun Gaius.

“Por que não gosta de falar sobre ela?” perguntei. Estava tão intrigada com aquilo que não me importei em invadir sua privacidade novamente.

Meu companheiro de distrito me dava a impressão de que lutava para segurar as lágrimas enquanto inspirava profundamente. Ele abaixou o olhar, fitando os próprios sapatos sujos de sangue, e respondeu abatido:

“Porque me lembra o que tenho a perder”

Minha bochecha se choca contra o solo e a pancada me faz voltar a realidade. Um zumbido contínuo e incômodo preenche meus ouvidos, ocupando minha cabeça, roubando meus pensamentos... Permaneço desligada de tudo e, a partir de então, não distingo muito bem o que está acontecendo. Ao que parece, Taurus abate seu oponente, alcança a agressora do seis e lhe enfia a espada no peito. Ainda assim, eu não consigo prestar atenção. Estou caída no chão lamacento e os estalos das folhas secas sob o meu toque parecem, curiosamente, mais interessantes.

Resolvo levantar somente quando um corpo é arremessado na minha direção, logo após observar o estrago em seu crânio. A marreta de Bagiot está ali, ainda afundada no que antes era a cabeça do garoto do distrito seis. Eu não me dou o trabalho de recolhê-la. De que adiantaria? Tampouco me atenho a procurar pelos coletes, devem estar perdidos em meio ao sangue e a lama.

Meu único desejo é sair daqui, não suporto mais um minuto neste purgatório. A aliança está prestes a acabar de qualquer maneira, pois ouço mais dois disparos do canhão. É o meu sinal para abandonar o bando e corro o mais rápido que posso... Sem rumo, sem direção e com um único objetivo: desaparecer. As silhuetas das árvores somem e ressurgem em minha visão periférica ao mesmo tempo que serpenteio por suas raízes compridas rapidamente. Tento criar a maior distância possível entre eu e meus antigos aliados, dispensando a oportunidade de reencontrá-los após o fim da aliança.

Não há espaço para pensamentos enquanto me empurro pelo chão pesado, sou movida unicamente pelo instinto natural de sobrevivência, como uma presa fugindo do predador. A frequência das minhas passadas diminui gradativamente — até que eu esteja apenas andando — e, não importa o quanto eu continue seguindo em frente, a vegetação parece sempre igual. Começo a me preocupar em estar viajando em círculos quando avisto uma rocha triangular com as mesmas marcas de desgaste na lateral. No entanto, desconsidero a relevância dessa descoberta, uma vez que me movo mais para ocupar a mente do que propriamente me salvar. Sou uma vítima das minhas memórias, prisioneira dos meus temores.

Forço minhas pernas flácidas a continuarem, mas o corpo resiste às minhas vontades. Meus ombros doem com o peso da mochila nas costas e — só então — me recordo de ainda possuí-la. Água e suprimentos por mais algum tempo, pelo menos. Tropeço em um galho ou uma pedra — ausentam-me forças para descobrir do que se trata — e não tento mais levantar, me encolhendo no solo úmido.

Olho para o cima, observando o céu alaranjado. Não sei há quanto tempo estou aqui caída, imóvel, lembrando de tudo que acaba de ocorrer. A imagem da morte de Noah é tão vívida em minha cabeça que parece acontecer de novo e de novo, num infinito looping angustiante. A visão de seus olhos temerosos, os lábios pálidos, a última súplica...

“Não veja isso, Lucy”

As palavras são mais claras em minha memória. Noah era um rapaz de coração bom perdido em um mundo ruim. Sua morte foi desesperadora de se assistir até mesmo para mim, que o conheci há alguns dias e deveria, inclusive, matá-lo. De repente, imagino a garota ruiva de nome Lucy chorar em algum lugar no distrito quatro, horrorizada, beirando a insanidade.

Mais um tiro do canhão. Não me importa quem se foi agora, uma vez que todos tentarão me matar. Ouço passos nos arredores, são inquietos, barulhentos e desprovidos de cautela. Parecem me cercar, se aproximar, embora eu não aviste ninguém. Preciso sair daqui, penso comigo. Não ficarei para descobrir de quem se trata. Levanto e me disponho a correr novamente. Meus joelhos latejam com o cansaço, mas o fluxo de adrenalina me impulsiona para frente e, à medida que eu acelero, a dor é substituída por formigamento.

— Você nos traiu, Quatro! — berra Taurus de algum lugar que não posso identificar. Tampouco me preocupo em procurá-lo, apenas sigo para longe.

— Fugir no meio de uma luta? — Gretel o acompanha. — Volte aqui, sua covarde!

Os outros — e não sei mais quantos — se unem a eles num coro das piores ofensas, todas direcionadas a mim. Cansada demais para continuar, paro de correr e decido enfrentá-los. Não terei chance alguma contra meus antigos aliados — e quem quer que esteja com eles —, mas não morrerei sendo uma covarde. Não mais. Aguardo, então, pelo pior.

Os gritos se tornam cada vez mais audíveis, mais próximos. Porém, nenhum deles revela sua localização diante de meus olhos. Onde eles estão? Giro sobre meu próprio eixo, observando as árvores desfolhadas ao meu redor. Não há onde se esconder.

— Eu não temo vocês! — grito para a paisagem árida.

Ainda assim, ninguém aparece e somente questiono a veracidade dos fatos quando escuto uma voz:

Você nem tentou me salvar!

Engulo em seco. Noah está morto, como eu poderia ouvi-lo? Isso não é real. É impossível que seja. Levo as mãos à lateral da cabeça, bloqueando os ouvidos e ansiando pelo silêncio.

Covarde!

Assassina!

Aberração!

As vozes não cessam e aplico mais força em meu aperto, gritando o mais alto que posso na esperança de alguém escutar e terminar meu sofrimento. A morte não é mais um destino indesejado, a vejo agora como uma saída. Infelizmente, ninguém aparece para me matar.

Cambaleio com dificuldade e me amparo em uma árvore, apoiando a lateral da face no tronco áspero. Está úmido e uma seiva quente goteja pelas rachaduras da casca grossa. Permito-me tocá-la e observar o vermelho na polpa dos dedos sujos. É... sangue? Recuo imediatamente, tropeçando ao tentar andar para trás. Não há para onde fugir, uma vez que todas as árvores sangram da mesma maneira. O líquido escuro continua a escorrer, se dissipando pelo chão até próximo dos meus sapatos.

— Não é real. Não é real — repito incessantemente, mas o cheiro de ferrugem impregna minhas narinas. — Não é real. Não é real. — Minhas mãos estão viscosas, banhadas da cor vermelha. — Não é real. Não é real. — Seu sabor é ácido, quase picante. — Não é real! — estou gritando novamente.

E, neste momento, mais do que em todos, eu anseio por sua companhia... A minha mais nova amiga e única aliada: a morte. Nada do que eu sou existe, nada do que eu amo importa. Tudo que eu desejo é dar fim à agonia.

— Não é real — recito uma última vez.

A paisagem começa a girar e minha visão, escurecer. Eu cedo e despenco para o lado, me arrastando com os cotovelos até algum lugar seguro. Logo, rio — gargalho — da falsa perspectiva de segurança. Não estou segura de ninguém, não estou segura de mim mesma. Sequer desfaço o sorriso antes de fechar os olhos em exaustão. A escuridão, então, me engole...

Ainda que minha vista arda com a luminosidade diurna, fito o mastro imponente enquanto atracamos no cais de madeira. A brisa do movimento do barco se despede quando paramos, despenteando uma última vez as madeixas acobreadas de Finnick. É bom finalmente rever seu sorriso amigável, seus olhos gentis... É como se nunca estivéssemos longe um do outro, como se tudo não passasse de um pesadelo. Ele desliza a mão por meu cabelo emaranhado — impregnado de sal e areia — e retira um fragmento de concha preso nele. Ri, brevemente, do meu desleixo e separa os lábios para falar, mas a voz que sai de sua boca é estranha, estridente... não a de Finnick:

Por favor, me ajude!

Meus olhos se abrem com o barulho e a sensação de serenidade se esvai. O maior problema dos sonhos é ter de acordar e retornar à realidade. Não me encontro no mar pacífico de meu distrito, no cais da enseada rochosa ou com Finnick no barco de seu pai. Estou de volta à floresta sombria, coberta por crostas de lama ressecada e sangue dos meus oponentes. Vigiada pela morte e o restante do país.

Olho ao redor e reparo na paisagem diferente de como eu me lembrava. As árvores estão mais verdes, as copas mais encorpadas e a luminosidade chega com mais dificuldade até o solo. É possível que os idealizadores tenham mudado o cenário da arena tão bruscamente? Há quanto tempo estou desacordada?

— Socorro, Atlas! — alguém grita à distância, provavelmente chamando por um aliado.

Atlas... Não me recordo de um tributo chamado Atlas, mas o nome não me é estranho. A voz continua a chamar pela mesma pessoa e eu sigo o som por entre as árvores. Logo, me deparo com uma garota imobilizada — presa a redes —, se debatendo e esperneando. A armadilha parece uma das minhas, com os mesmos nós em tarrafa característicos do distrito quatro. Esta, porém, feita com plantas em vez de cordas.

Aproximo-me devagar e a garota ergue a cabeça, me permitindo enxergar melhor o seu rosto. O sangue drenado, devido ao pânico, lhe confere uma aparência pálida e algo nela me desperta a atenção... O nariz pontudo e os lábios finos são, curiosamente, familiares. A cena toda me é familiar, mas em nada se assemelha à garota abatida da armadilha de Vixen. Esta diante meus olhos é exatamente o oposto: há mais desespero nela do que eu jamais vi na vida.

— Por favor, não me mate! — implora na minha direção, embora não pareça me notar. — Por favor!

Apesar de estar a alguns passos, me sinto distante e incapaz de ajudá-la. Por que esse sentimento de impotência agora? A situação é inquietantemente perturbadora e eu não consigo entender o porquê. Ela desvia os olhos empapuçados de lágrimas para algo atrás de mim e seu corpo inteiro treme ao mesmo tempo que soluça em aflição. Sinto medo por ela, uma parte de mim sabe o que acontece a seguir.

— Não precisa ser assim — eu digo. As palavras me escapam sem que eu compreenda ou decida dizer.

— Não precisa ser assim — ela repete com a mesma entonação.

E é quando eu percebo.

A familiaridade, a sensação de Déjà vu... Eu já assisti a essa cena antes. Não uma, mas centenas de vezes em meus pesadelos. Atlas — por quem a garota chamava — foi um tributo nos 65º Jogos Vorazes, edição que fez de Finnick vitorioso.

Torno meu corpo para trás e uma silhueta mal iluminada surge das sombras. É apenas um garoto, vestindo uma bermuda rasgada e portando um tridente nas mãos. Um rosto familiar, agradável... No entanto, não se trata do mesmo Finnick que me espera além dos limites da arena, este em minha presença possui alguns anos e quilos a menos e olhos isentos de piedade. Indiferente, ele se aproxima da vítima e perfura toda a extensão de seu corpo com as três pontas afiadas da arma. Os gritos não parecem incomodá-lo, silenciando apenas com o canhão.

O jovem Finnick levanta devagar, erguendo a lança ornamentada de joias, e ostenta sem pudor o vermelho no peito despido. Em seguida, desvia a atenção para mim e fixa as íris esverdeadas em meu semblante assustado, sem qualquer sinal de culpa ou constrangimento. O cabelo lhe encobre a face, tornando o olhar mais sombrio, e a boca se curva em um sorriso perverso.

— Você não é ele! — eu berro. — Não é real!

O garoto caminha lentamente na minha direção enquanto grito para se afastar. Para o rosto a alguns centímetros do meu — tão perto que sinto seu hálito pútrido — e desliza a língua sobre os lábios sujos de sangue.

Sou mais real do que você imagina.


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Notas finais do capítulo

Atlas é o personagem principal de "O despertar do apocalipse", fic da Jessica Varela (AHSfan, aqui no nyah)

"Ele teceu uma rede a partir de uma espécie de trepadeira que encontrou, usou-a para prender seus oponentes para que pudesse espetá-los com o tridente e em questão de dias a coroa era dele" Katnis sobre Finnick Odair, em "Em chamas". Pagina 223.

Já foi citado e explicado o que é rede de tarrafa no capitulo "Por que não?". Contudo, trata-se de uma rede de pesca de malha alternável, usada por pescadores (por isso característica do distrito quatro) e por gladiadores reciários ( aqueles que lutam com tridente, como o Finnick).