Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 20
XIV — À Deriva


Notas iniciais do capítulo

“ (...) faz aquele gesto de cobrir os ouvidos e abandonar a realidade”. Katniss sobre Annie Cresta, em A esperança. Página 260.



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Eu sei que estou morta, ainda que respire. Meu corpo, aos poucos, se deteriora. Um pequeno verme se alimenta da minha carne e sequer me preocupo em retirá-lo. Percebo, com os dedos, a cicatriz em meu rosto — oriunda da queimadura dos bestantes aquáticos — se estendendo desde o supercílio até a bochecha. A dor e ardência já cessaram, mas, ainda que a aparência não seja uma preocupação, não deve ser algo bonito de se ver. A textura coriácea e espessura encorpada me induzem a imaginar uma deformação significante. Felizmente, não consigo ou preciso enxergar meu reflexo.

Horas, dias ou semanas poderiam se passar e eu não saberia ao certo, o tempo não faz sentido na floresta seca que me rodeia. Abraço-me na tentativa de me isolar do resto do mundo, me concentrando apenas no que eu criei em minha cabeça. No momento, estou escondida no tronco oco de uma árvore morta, o que acredito ser um abrigo, embora pareça uma prisão. Meus membros se encontram tão espremidos contra o interior rugoso que mal posso sentir a ponta dos meus dedos. Talvez eles nem estejam mais ali.

Através de uma brecha na casca, vejo a mancha de sangue enegrecido em que, provavelmente, alguém morreu. O corpo da vítima desconhecida já foi levado embora, mas a pintura deixada pela morte continua intocada no chão, sempre me lembrando de onde estou e o que me espera lá fora. É assim que permaneço em minha cela de madeira podre e mantenho os olhos abertos para o perigo: temendo me tornar, também, uma poça de sangue no anonimato. É sempre ele, é sempre o medo a minha companhia. Não existe mais Annie sem medo, tampouco existe Annie.

A garganta seca e o estômago vazio, de vez em quando, incomodam e, em breves momentos de lucidez, consigo suprir minhas necessidades. Tomo minha última gota de água e guardo a garrafa vazia novamente na mochila. No fundo, presa ao forro que reveste a bolsa, encontro a flor robusta enviada por Finnick. Está desfalcada, faltam algumas pétalas e as que restaram se encontram numa tonalidade levemente castanha pelo ressecamento. Ainda assim, o cheiro adocicado se mantém preservado e a planta conserva um pouco de sua beleza.

Deslizo o caule retorcido entre meus dedos encrostados de sangue seco. A flor parece mais formosa em contraste com minhas unhas sujas e castigadas pela sobrevivência. Desprendo as poucas pétalas restantes e espremo a capsula corpulenta em minhas mãos, permitindo escorrer um suco resinoso, coagulado. Levo meus dedos grudentos à boca — ignorando o cheiro desagradável do leite pardo — e sinto o sabor amargo. Esperava algo mais doce... Morfina não é doce?

Aguardo alguma sensação de calmaria ou serenidade procedente do látex da papoula. Que mal poderia me fazer? Eu já ouço e vejo mentiras, ter alucinações de uma planta não me preocupa. Nada acontece. Talvez esteja ressecada demais e tenha perdido o efeito, eu penso e permaneço fitando a paisagem bucólica a fim de me distrair. Uma ave se empoleira num galho próximo ao meu ombro e gorjeia de uma forma estranha que acho engraçada. Rio pela primeira vez em bastante tempo, por um motivo tão idiota que me envergonha. Lembro-me de toda a Panem assistindo e me forço a ficar séria.

A minha presença não incomoda o pássaro, mas ele se assusta com algo que não identifico e bate as asas para longe. Não sei o quanto disso é real — torna-se cada vez mais difícil identificar as fantasias da minha mente —, porém o chão treme e um som grave ecoa pelo ambiente. Levanto-me imediatamente para olhar ao redor. O solo grosso trepida suavemente sob meus pés e as poucas árvores no caminho não me impedem de enxergar um vulto azul se aproximar rapidamente. Está escuro — não há estrelas na noite negra — e preciso estreitar os olhos para ver direito. Não pode ser, eu penso. Aquilo é... água?

Antes que eu possa virar o corpo para correr, a onda gigante me arrasta de forma brusca. Luto para manter a cabeça emergida, mas frequentemente sou engolida para baixo. A água gelada tem o efeito de centenas de facas perfurando a minha carne e, surpreendentemente, o gelo é capaz de queimar. A ânsia por oxigênio me desespera e, na tentativa de aspirar o ar, permito que a corrente fria atravesse minhas narinas e boca.

Tenho uma vontade súbita de afundar para a morte, porém seria uma forma agonizante demais para partir, até mesmo para mim. Continuo a me debater, ainda que a correnteza seja mais poderosa do que os meus músculos, esgotando as últimas forças do meu ser. Eu me empenho em manter o ar para dentro, firmar os lábios selados na última reserva de oxigênio. Contudo, a corrente me joga abruptamente contra uma árvore que comprime meu peito e expulsa o ar.

Agarro o tronco com toda vitalidade que ainda me resta, rasgando a polpa dos dedos contra a superfície sinuosa. Consigo elevar a cabeça e respirar enquanto estou agarrada, mas não suporto meu peso por mais do que alguns segundos e sou conduzida pela enxurrada novamente. Observo a árvore se afastar lentamente enquanto a efêmera promessa de salvação me é roubada. Nadar costumava ser algo simples para mim, tão natural quanto existir... Quando eu penso que os Jogos não poderiam me tirar mais nada, sou surpreendida com a minha última lembrança da água sendo o medo. É assim que a vida debocha de você, tentando matá-lo com aquilo que ama.

O fluxo turbulento das ondas parece desacelerar à medida que eu me conformo com a derrota. A desistência vêm acompanhada de uma inexplicável e inebriante paz. Tudo se esvai em ordem: a perseverança, o ar dos pulmões, a vontade de viver. Logo, a imagem retorcida do céu se distancia ao mesmo tempo que meu corpo submerge devagar. Aqui no fundo é sereno, tranquilo... A agitação se restringe à superfície. Sinto minha mente se desconectar do corpo enquanto a vida é drenada de mim.

Alguns dizem que, no momento da morte, todas suas lembranças passam diante dos olhos. As alegrias se tornam remorsos e os arrependimentos, maiores. No entanto, isso não me acontece e a única imagem de que recordo é a de Finnick no telhado do centro de treinamento, segundos antes de nos separarmos. É como se a minha vida inteira se resumisse a aqueles poucos instantes da nossa despedida.

Talvez chegue a hora em que você pense em desistir e ache que nada mais vale a pena” ele dizia, os olhos tão expressivos em minha mente que penso estar novamente em sua presença. “Mas não faça isso, está me entendendo? Não desista. Você não pode se dar por vencida.”

Suas palavras me incentivam, dão um motivo para persistir. Finnick está lá fora agora me assistindo desistir. Não posso permitir, eu prometi que retornaria e é isso que devo fazer. Ainda assim, meu corpo desobediente se mantém inerte. Resista, ordeno a mim mesma. Resista, Annie! Por Finnick, por seus pais, resista!

Tento recompor a postura e voltar para cima. Desorientada, não sei dizer para qual lado nadar, mas sigo meu instinto e logo alcanço a superfície. Recomeço a bater os braços de forma ordenada: primeiro o direito, depois o esquerdo... as pernas em sincronia. Encho os pulmões e retorno a mergulhar a cabeça. Sempre nadando. Sempre fugindo, mesmo sem saber do quê.

Estou exausta e faminta, minhas articulações doem, porém o fluxo de adrenalina me mantém desperta. Mais algumas braçadas rítmicas e o mar de água doce se encontra menos violento, me permitindo avistar, ao longe, uma pequena ilha de terra seca: um objetivo, uma esperança. Não sei de onde retiro forças, mas persigo meu alvo. A correnteza me carrega para trás e movimento as pernas com mais intensidade. Não sou páreo para a brutalidade da água, porém consigo me esquivar das ondas e seguir o trajeto.

Finalmente, meus pés tocam o fundo e eu cambaleio até emergir completamente da água, tombando para o lado em exaustão. Tusso algumas vezes a fim de expelir toda a água e, sem energia para usar os braços como amparo, meu rosto se choca diretamente contra a terra úmida. Tenho a impressão de que o chão está balançando, como se eu ainda estivesse sendo jogada de um lado para o outro na água. Em seguida, meus olhos pesam e eu os fecho, ingressando na escuridão.

Uma breve sensação gostosa — viciante — possui o meu corpo e relaxa cada músculo da minha estrutura. Imagino que seja o doce e iminente beijo da morte, uma descarga terminal de euforia antes de mergulhar no completo vazio da inexistência... Seria tão simples partir? Tão fácil quanto adormecer? Não resisto e abraço minha sentença.

— Annie?

Ouço a voz de Finnick chamar meu nome e caio em mais um delírio — fruto de minha imaginação corrompida —, desta vez curiosamente agradável. Estou preparada para morrer, a não ser pelo desejo de rever seus olhos verdes uma última vez.

— Annie, está me ouvindo? — Ele insiste. Os anjos têm a sua voz?

Tento abrir os olhos e me surpreendo por ser capaz de tal feito. Eu não estou morta? Minha vista arde com a luz fluorescente do aposento e aspiro o odor asséptico de éter e produto de limpeza. Finnick me observa apreensivo, sentado em uma cadeira próxima e apoiando os braços sobre o colchão.

É mesmo ele? Isto é real?

— Acabou, Annie — ele continua. — Você está segura agora.

Atrevo-me a olhar ao redor. A sensação boa que tive há pouco ainda flui através de tubos para as minhas veias. Não era a morte, afinal. Estou deitada num quarto branco e estéril, cada parte do meu corpo atada ao leito que me mantém prisioneira e, no quadro de diagnóstico a alguns metros, as letras digitais comprovam meus temores:

“Em observação. Transtorno mental a esclarecer”.


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Notas finais do capítulo

" Depois que ela viu a morte de seu parceiro distrito, Annie se afastou de todos os outros tributos e se escondeu pelo o resto dos jogos, até que um terremoto rompeu uma represa e inundou toda a arena . Tendo crescido no Distrito 4, Annie sobreviveu por ser a melhor nadadora. Desde então, ela é tida como sendo mentalmente instável. Parece que a única pessoa que poderia acalmá-la é Finnick Odair." — The Hunger Games Wiki.

O ópio é um suco espesso que se extrai dos frutos imaturos (cápsulas) de várias espécies de papoulas soníferas (gênero Papaver). É o látex leitoso da planta, extraído por incisão feita na cápsula, depois da floração. Tem um cheiro típico, que é desagradável, possui a cor castanha e seu sabor é amargo e um pouco acre.
— Azeite.