Os Jogos De Annie Cresta escrita por Annie Azeite


Capítulo 18
XVII — Agonia


Notas iniciais do capítulo

“Há ainda momentos em que você pode dizer que alguma coisa escorrega pelo cérebro dela e um outro mundo a torna cega para nós. Mas algumas poucas palavras de Finnick a fazem retornar”. Katniss sobre Annie em “A esperança”, página 259.



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— Não importa! Deveria ter pedido nossa opinião antes de matá-la — repreende Noah. — Você não está sozinha nisso.

— Achei que ninguém fosse discordar — Gretel rapidamente se defende. Ela balança os ombros em indiferença, mas posso identificar a preocupação de seus olhos. — Vixen nos manipulou, tentou nos eliminar e, ainda por cima, matou Hansel.

— Acham que a mãos-de-manteiga pode ter mentido sobre os outros? — pergunta Taurus, mais preocupado em localizar os oponentes restantes do que se importar com alguma morte imprevista.

— Não — minha aliada afirma com segurança —, ninguém mente para o meu machado.

— Certo. Vamos encerrar essa porcaria de discussão e caçar os outros de uma vez. — Taurus faz pausa para aspirar o ar pelo nariz, como se pudesse farejar os inimigos. — Ainda devem estar por perto.

Tenho a impressão de que Gretel abre a boca para responder, mas algo a faz enrijecer e soltar um grunhido de dor. Em seguida, leva a mão à lateral do pescoço, retira um pequeno dardo de penas coloridas de lá e despenca para frente. Ela cai bem perto do corpo de Vixen, cuja cabeça ainda abriga seu machado duplo.

Todos se põe imediatamente alertas — sacando as próprias armas —, à procura do responsável. Pelo ângulo do tiro, quem quer que seja o nosso rival, deve se encontrar sobre as árvores. Percebo uma movimentação suspeita no arbusto próximo a Bagiot, mas antes que eu possa avisá-la, alguém salta de dentro dele direto para as costas de minha aliada. Com a colisão, ela capota de bruços e o agressor afunda a faca em sua omoplata. Taurus corre para ajudar a companheira de distrito, porém também é atingido pelos dardos. Mesmo debilitado, ele consegue ferir o oponente com a espada e arrancá-lo de cima de Bagiot.

Aproximo-me da garota estirada no chão e posiciono os dois dedos abaixo da mandíbula a fim de pegar sua pulsação. Até o momento, não houve canhão para Gretel, mas preciso saber se ela está realmente morta — e eu, curiosamente, não quero que esteja. Sinto a pressão do sangue sendo bombeado — ainda que fraco, relutante — contra a parede de sua carótida.

— Ela está viva — digo a Noah, aliviada. — Temos de levá-la daqui.

Ele franze o cenho, como se repreendesse minha atitude. Quase posso ouvir as mesmas palavras — ditas há poucos minutos no topo da represa — através dos clementes olhos azuis:

“Você vê bondade em todos, inclusive quando não há. Isso pode ser a sua maior virtude, mas também a sua ruína”.

O pior de tudo é que eu reconheço: ele está certo. Por que tentar ajudá-la, afinal? Qual a razão de prolongar o inevitável? Todos devem morrer alguma hora, certo? O meu único empecilho, tudo que ainda me prende a esse lugar horroroso é o batimento de seus corações, o silêncio de um canhão. No entanto, é isto o que a minha natureza me obriga a fazer: lutar pelos outros até que não haja mais forma de salvá-los. Mas com que finalidade? Para que depois tentem me matar? A confusão em minha cabeça me atordoa, confunde. O que de fato é certo? Sobreviver? Não se importar? Por que a minha própria vida vale mais que as dos demais?

Em algum momento, sucumbirei à loucura com todo o desarranjo psicológico a que sou submetida. Ainda assim, enquanto mantenho a sanidade, eles não podem mudar a minha essência, não podem me corromper. Ignorar a morte é tão errado quanto causá-la... Ergo, portanto, as pernas inertes de minha aliada e a arrasto pelo solo áspero com dificuldade. O peso em minhas costas — tanto dos coletes, quanto da mochila — atrapalha meus movimentos e não consigo dar mais do que alguns passos. Na outra extremidade, um par de mãos me auxilia, segurando Gretel pelos braços e me ajudando a levantá-la.

— Você sempre me surpreende, Cresta — Noah sussurra num tom audível enquanto me ajuda a carregar a garota. Nós deslocamos seu corpo abatido até um arbusto de gramíneas espessas e o ocultamos dentro dele.

— Agora temos de sair daqui — eu afirmo.

Antes que ele possa concordar, avista alguma coisa à minha direita.

— Cuidado! — alerta.

Sigo o olhar para onde aponta e um garoto de cabelos compridos — que acredito ser do dez — revela sua posição diante de nós dois. Ele mira a lança na minha direção e a arremessa de imediato.

— Não! — grito sem intenção enquanto a paisagem gira depressa.

Eu caio no chão e os coletes escapam da minha posse. A lança teria acertado algo próximo do meu peito se meu aliado não tivesse me empurrado para o lado. No impacto, choco o rosto contra uma rocha, estalando o nariz na superfície rígida. Apesar disso, fico agradecida a Noah por salvar minha vida. Antes um nariz quebrado do que um tórax perfurado.

— Você está bem? — pergunta preocupado.

Aceno com a cabeça e sinto o sangue quente escorrer pelas narinas. Ainda deitada, comprimo o fluxo com o dorso da mão. Taurus nos alcança e vai de encontro ao meu agressor. Imediatamente, Noah desafivela a corda do cinto e saca uma faca.

— Fique aqui, Cresta — ele pede antes de se juntar a Taurus.

O inimigo percebe a desvantagem e ameaça fugir, tornando o corpo na direção contrária. Noah, entretanto, é mais rápido e laça seu pescoço, derrubando-o no chão. Os dois se aproximam do garoto caído, mas algo faz Noah parar abruptamente: um dardo em sua perna. O tributo do dez aproveita a deixa para levantar e correr. Taurus o persegue, afastando-se de nós.

Meu companheiro de distrito vacila novamente, atingido no ombro desta vez. Procuro o responsável e enxergo uma garota de cabelo loiro-acinzentado, empoleirada no galho de uma árvore e segurando uma zarabatana entre os lábios. A loira guarda o caule oco no cinto e desce lentamente pelo tronco. Acredito ser Hardie, do distrito seis, cujo nome foi citado pela ex-aliada do três e a existência, ignorada por mim até o momento. Ela recolhe o machado do corpo de Vixen e se aproxima sorrateiramente de Noah.

— Atrás de você! — berro desesperada.

Ele se vira depressa na minha direção, mas a inimiga está parada a poucos passos, imediatamente a sua frente. Armada e letal... Ela investe o machado contra o oponente que, rapidamente, bloqueia o golpe com o punho. No entanto, o baque faz com que a única faca de Noah seja arremessada do aperto de seus dedos. Ele resiste firme — segurando o braço flácido com a mão boa — e utiliza os ombros para empurrá-la. Ainda assim, está envergado, torcido: o corpo definha aos poucos pelo veneno atordoante.

Empurro-me do chão com as mãos escorregadias de sangue e me disponho a ajudar meu companheiro de distrito. Eu preciso fazê-lo, uma vez que não há mais ninguém para isso: Gretel está caída, desacordada e com o rosto afundado na lama; Bagiot se recupera da facada no dorso bem longe de onde estamos e Taurus encontra-se disperso em seu ataque ao tributo do dez. Não é uma boa hora para precisar de ajuda, Noah!

Levanto desnorteada e, embora minha cabeça esteja zunindo devido à queda, consigo me manter de pé. Pisco algumas vezes para desembaçar a visão e a imagem dos dois se forma nítida em minhas retinas... Sem dúvida, Hardie não faz ideia de como conduzir um machado. Não impede as ondas do cabelo de enroscarem na haste metálica e utiliza as duas mãos até para os menores movimentos. Sua postura não transmite segurança ou credibilidade, as pernas estranhamente arqueadas e os cotovelos afastados demais para conferirem precisão nos movimentos. Não importa, nada disso importa, sua ineficiência não basta para poupá-lo: os dois estão próximos demais e ela é a única com uma arma.

Eu sempre soube que a aliança era temporária, que terminaria com, no máximo, mais três disparos do canhão. Ainda assim, adiava o pensamento deles — de todos os quatro — como meus adversários, obstáculos no meu caminho de volta para casa... de volta para Finnick. Embora secretamente ansiasse por suas mortes — para não ser eu a causá-las —, não me sinto preparada para o que inevitavelmente presenciarei. Quem está preparado para isso?

Corro em sua direção chamando, não pelo número do distrito — a que também pertenço —, mas pelo nome. O corte em seu pescoço não é limpo ou rápido, a garota hesita alguns segundos antes de dar o golpe e cravar o machado próximo a sua jugular. Está nervosa, encontra-se de costas, com as mãos trêmulas e eu não posso ver seu rosto. Certamente, não conseguiria identificar qualquer expressão por trás do vermelho, pelo tanto de sangue que jorra do pescoço mutilado de meu aliado e ricocheteia em sua face.

Eu paro, meus pés não podem continuar. Tudo parece congelar e o único som que consigo distinguir é o de minha respiração ofegante. A cena está turva, confusa... Não parece real, nada aqui parece. Não um mundo em que precisamos matar uns aos outros para sobreviver. Eu desejo acordar deste pesadelo — desta vida intolerável —, mas os dois continuam ali, a alguns metros de mim. Ela luta contra seus próprios conflitos enquanto afunda a lâmina na carne com dificuldade, ele permanece imóvel nos últimos instantes de lucidez.

Quando decido fechar minhas pálpebras e ignorar o horror a que presencio, os seus olhos encontram os meus e não os deixam até que o metal polido apareça do lado oposto ao que perfurara. Sua boca balbucia algo que eu não sei se é um pedido de ajuda ou um adeus. A pupila regride, tornando mais evidente a íris azulada e o medo, por fim, desaparece completamente de suas feições. É neste momento que a cabeça tomba para o lado, despenca de seus ombros e o que sobrou do corpo cai sobre os joelhos sem vida.

Eu também caio.


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Notas finais do capítulo

"Annie Cresta ganhou os 70º Jogos Vorazes. Supõe-se que ela seguiu a estratégia da Aliança típica de Carreiristas, mas quando seu companheiro do Distrito 4 foi decapitado, ela ficou louca e (...) " Trecho de Hunger games wiki sobre a 70 edição dos jogos. (tradução).