Olhos De Sangue escrita por Monique Góes


Capítulo 20
Capítulo 19 - Cuidada.


Notas iniciais do capítulo

Yeah, Yeah, I know, ainda não é terça ainda, mas não resisti D=
Esse capítulo não é tããão ação e aventura assim, tá mais pro fofinho =3 Espero que gostem.
Agradeço à minha avó que me ajudou, mas também atrapalhou ^^'
"Vó, como você acha que alguém meio monstro cuida de uma criança?"
"Come ela"
"¬¬"
Agradecimentos diante a recomendação de Lara Vic! ^^



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  Os fracos raios de sol bateram em meus olhos, e grunhi. Aquilo... Doía...

       Esfreguei os olhos diante a claridade, sobre a plataforma onde havia dormido, no teto da igreja. Depois que Raquel interrompera a briga, eu subira até o telhado, mesmo na chuva, e encontrei uma plataforma entre duas gárgulas, onde deveria estar uma, mas tudo o que restava eram os tocos de suas mãos presos a pedra.

       Meu pescoço doeu pela posição desconfortável que dormira e minhas costas estalaram. Pus minha perna no lugar, desfazendo a torção que Hideo fizera na noite anterior, assim como – cuidadosamente – curei as fraturas em minhas costelas e reforcei o muro mental de titânio com concreto por cima dele, e então pus pedras ao seu redor. Não queria começar meu dia com nenhum comentário dele, nem mesmo se fossem desculpas.

       Falando em Hideo, não sentia sua Aura em lugar algum da igreja, nem em nenhum lugar em meu alcance, ele deve ter saído enquanto eu dormia. Levantei e andei pelo telhado até o vitral de onde Hideo me atirara na noite anterior, fora por lá que eu subira até o telhado. Saltei para a borda dele, saltando em seguida para o chão. Mais a minha frente havia um caminho de tábuas quebradas e terra revirada, fora ali que eu arrastara Hideo pelo chão. Vi minha mochila intacta perto de uma coluna e peguei ali um suéter preto com pequenas listras brancas com as mangas mais longas e largas que meu braço, com as bordas um tanto esburacadas, pois eu já o recebera daquele modo. Tirei minha camisa suja de terra e sangue, rasgada e esburacada e coloquei o suéter, cuja a gola era um pouco grande, mas não me importei.

       Não fazia mal também que eu vestisse roupas limpas, pois tomara um belo banho de chuva no telhado, e pus outra calça – a minha estava tão boa quanto a camisa que usava antes - e vi uma porta entreaberta ao lado do altar. Descalço, fui para lá e quando entrei havia uma saleta ali dentro, com cinco portas, e havia outra entreaberta. Quando abri, era um quarto pequeno e sem janelas, com uma lareira sem nada, uma cadeira e uma cama, onde Raquel estava encolhida, de costas para mim. O quarto estava completamente empoeirado, tirando a cama onde ela estava deitada, e também podia sentir a umidade.

        - Raquel? – chamei e ela deu um gemido em resposta.

        Ela fungou e me aproximei, ela não parecia estar muito bem. Toquei em seu ombro, e percebi que estava com um calor alarmante por cima da roupa, então subi a mão para sua testa. Estava fervendo.

        - Você ficou doente pela chuva de ontem. – falei, mas ela apenas se encolheu mais, se abraçando. – Hideo achou esse lugar pra você?

        Ela assentiu e espirrou, então a cobri com os lençóis da cama. Aquele lugar estava num estado de conservação incrível, pois todos os móveis estavam inteiros, mas estavam tão empoeirados que chegava a me dar medo. A cama fora claramente espanada antes de Raquel deitar ali.

        Tentei me lembrar do que minha mãe me dava quando eu ficava resfriado. – coisa que era constante. Remédios e sopa, mas eu não tinha remédio nenhum, pois híbridos não adoecem. Sopa eu até sabia fazer, mas não tinha nada para que pudesse fazê-la. Poderia arranjar carne caçando, mas não tinha vegetais e legumes, e não iria encontra-los tão facilmente na floresta, e nada para temperar a sopa, embora eu pudesse arranjar algo que improvisasse uma panela.

        Cuidar de uma criança doente era difícil nas condições em que estávamos.             

        Espera, não... Lembrei-me de quando eu fora para o terreno do meu avô e pegara um resfriado em condições parecidas, o que minha avó fez...? Lá também não tinham remédios. Ah, lembrei. Ela pegara um pano úmido e colocara na minha testa, e depois catou ervas e me fez um chá – que não estava adoçado, foi horrível. – Eu melhorei um pouco com isso, mas depois ela me deu um banho no riacho e foi aí que melhorei de verdade. O pano era fácil, só bastava usar uma camisa, iria procurar alguma erva ao redor da igreja, mas a parte do banho estava fora de cogitação.

        - Espere aqui. – falei. – Vou procurar alguma coisa para tentar te ajudar.

        Ela assentiu e se encolheu entre os lençóis, então voltei para o salão da igreja, e procurei a garrafa de água em minha mochila. Estava praticamente seca, então saí da igreja, nem me lembrando de calçar os sapatos. Rodeei-a um pouco, achando estranho que ela fosse tão grande e tivesse apenas quatro cômodos além do salão, e quando cheguei atrás dela, vi o que poderia ser sorte ou azar. Ali tinha algo como uma horta – descuidada - e quando me aproximei, vi muitas ervas por ali, e quase sumindo entre as plantas, um poço. Fui até ele e vi um balde meio inteiro pendurado nele. Peguei o balde de examinei-o.  Era de madeira e estava um pouco velho e sujo, o que me fez bufar. Bati-a para tirar a sujeira superficial, mas continuou sujo. Parece que era melhor procurar um rio.

        Havia uma trilha a frente da horta e andei um pouco nela, ainda com o balde na mão, segui nela até dar com um rio, provavelmente o rio de Krest. Olhei-o com atenção, não parecia estar poluído, pois apesar de ter tratamento de água em Darneliyan, muitas vezes a água era tão pura que sequer era tratada, mas a coisa era um pouco diferente quando estava havia uma cidade nas margens do rio.

        Não parecia estar poluído, então peguei minha garrafa que havia posto dentro do balde e tirei o tampo, mergulhando-a para enchê-la e quando a tirei, joguei a água dentro do balde, e repeti o processo até encher o balde completamente, então joguei toda a água no chão, pois fizera isso apenas para limpá-la por dentro, então mergulhei o balde na água e o limpei por fora. Quando estava limpando, senti uma Aura. Tinha um cheiro doce, talvez de açúcar queimado, com outro cheiro muito bom. Eu nunca tinha sentido essa Aura antes, mas estava próxima, então sumiu. Pisquei, havia sumido completamente e quando dei por mim, havia fios de cabelos brancos e lisos que não era meus caindo por meus ombros e por que diabos tinha alguém cheirando minha nuca?!

        Levantei e me virei rapidamente, e vi o que primeiro achei que fosse uma garota, mas só então percebi que era um homem. Tinha a mesma altura que eu, mas era mais magro. Estava usando uma camisa branca de mangas curtas e calça jeans, que estranhamente, em sua coxa estava enrolada uma cobra de ferro, como um bracelete e seus olhos eram feitos com uma pedra negra e fosca. Seu cabelo era curto e reto atrás da cabeça, como dava para se ver, mas vinha crescendo até a altura dos ombros ao redor do rosto e alguns fios cresciam até a altura dos ombros, ultrapassando-os levemente, o cabelo era cortado num corte reto e usava uma franja reta na altura das sobrancelhas, que lembrava levemente um “V”.

        - O q...? – falei, estranhando não sentir sua Aura. Só havia conhecido uma pessoa que sabia suprimir a Aura daquele jeito. – Quem é você?!

        - Tsc, que jeito é esse de falar com quem você nunca viu? – repreendeu com um sorrisinho um tanto... Doce, mas algo me dizia para tomar cuidado com aquele cara.

        - Mas não fui eu que vim cheirar a nuca de quem nunca vi. – rebati. Aquilo me deixara irritado.

        Ele apenas deu de ombros e seu sorrisinho aumentou ainda mais, e ele inclinou a cabeça lentamente para o lado, e sua Aura apareceu novamente, mas um pouco mais fraca.

        - Só senti um cheiro estranho aqui, então vim aqui ver o que era... – disse, mas algo ainda me passava a sensação de perigo. – Você tem um cheiro estranho... Chocolate misturado com outra coisa. Mas tudo bem, já vi que é você.

        E logo sumiu, sua Aura também desaparecendo.

        Bufei e voltei a pegar água. Nunca vira aquele cara na vida, mas não era o momento de pensar naquilo. Enchi o balde e enchi minha garrafa e voltei para a igreja. Parei perto de minha sacola e peguei uma camisa limpa, e escutei Raquel cantando fracamente dentro de seu quarto. Não cantava alto, mas eu escutava por minha audição aguçada. Era a mesma música que cantava de vez em quando.

          Anjo guerreiro, que do escuro formou-se.

          Diz-me teu nome e guerreiro tornou-se

          Não fique triste, estou tão bem

          Que você surgiu ao meu lado também.

         

          Anjo ou guerreiro, por onde estavas?

          Na escuridão onde a noite acaba?

          Se tu viste é porque és meu anjo?

          Não! Por favor, não se vá estranho anjo.

                             

           Fui até o quarto e a música de vez enquanto era interrompida por uma leve tosse, mas continuava.

           Durante a noite que cai aos meus pés

           Tua que sabe fazendo refém

           Teu coração tão puro que

           Faz de conta que ele não bate aqui.

               

           Nos teus olhos eu vejo o luar

           O teu cheiro eu sinto no ar

           Meu coração ferve diante de tal beleza

           Eis aqui diante a minha fraqueza.    

            Entrei no quarto e ela cantou a última estrofe, ainda deitada na cama, fracamente.

          Leve contigo, um pouco de calor.

          Nessas entrelinhas que canta com fervor.

          Deixo contigo uma flor

          Entre as pétalas, um beijo de amor.                   

          - Olá, senhorita cantora. – falei enquanto pousava o balde no chão.

          Ela riu fracamente, mas achei que ficar naquele escuro, empoeirado e úmido não iria ajudá-la, com certeza. Peguei a camisa, mergulhando-a no balde e a pus na testa de Raquel, então levantei e fui dar uma olhada nas outras quatro portas. Uma abria-se para uma sala cheia de potes com ervas dentro, e – olha só – catalogados, talvez para remédios caseiros. Minha cota de azar poderia estar crescendo, mas parece que a de sorte estava aumentando também. Havia ali um enorme livro, mas antes fui ver os outros quartos. Noutro havia algo como uma cozinha com algumas panelas enferrujadas e um fogão a lenha.

          Abri a outra e tinha uma sala com alguns armários que quando fui ver, tinham-se túnicas sacerdotais femininas e masculinas, juntamente com jóias. Quando abri a outra, me deparei com um corredor, com várias portas, e passei por eles, mas todos eram quartos como o em que Raquel estava, sem janelas e empoeirados. Continuei pelo corredor até dar com uma última porta, e quando abri, deparei com o único quarto com janelas, e com certeza o maior e mais rico de lá. Tinha uma cama branca de dossel e acortinado com a cabeceira incrivelmente decorada em temas florais, assim como o dossel, estando ela levemente empoeirada, mas as cortinas púrpuras estavam abertas, dando uma grande claridade ao local, tinha ali ao lado da cama uma escrivaninha de carvalho com as bordas entalhadas em dourado e uma cadeira de madeira com estofado de veludo púrpuro, tinha também ali um armário que sequer me importei em abrir, juntamente com algumas poltronas ornadas ao redor da cama, e a janela ao lado da havia um espaço estofado em sua beira em sua beira.

          Tirei os lençóis para espaná-la um pouco. Pelo que eu conhecia de Raquel, ela provavelmente não ia se sentir confortável num local tão... Rico, assim por se dizer, mas era melhor ficar aqui no que naquele escuro empoeirado que ela estava. Voltei para o quarto onde Raquel estava e peguei-a no colo, apenas dizendo que ia levá-la para um lugar melhor do que ela estava e levei-a para aquele quarto. Ela estava tão mal pela febre que sequer se importou quando a pousei na cama, apenas se encolheu nos lençóis e fungou. Voltei a colocar a camisa molhada em sua testa e fechei todas as cortinas, deixando apenas uma aberta.

          Voltei para o quarto em que ela estava antes e peguei o balde, levando-o para aquela cozinha, então fui para a sala cheia de ervas e ativei minha visão noturna, pegando o livro para ver o que continha em seu conteúdo, o que eram receitas de remédios caseiros, infusões, chás, e até algumas ervas para cicatrização de ferimentos, e logo achei uma para febre e resfriado. Era um chá, mas servia. Dizia para pegar três folhas uma erva vermelha com pequenas listras marrons e cinco de outra amarela – as ervas estavam escritas com seus nomes científicos, portanto nem tentei decorá-los. - fervê-las em água fervente e adoçar com mel, e o doente tinha que tomá-lo três vezes ao dia. Lá vamos nós.

          Todas as ervas ali nos potes estavam impróprias para o consumo, mas encontrei as duas cujo o livro falava, então voltei para a plantação de ervas atrás da igreja, atrás das mesmas ervas e as encontrei. Voltei para a cozinha e remexi nas panelas. Estavam enferrujadas, então tive de voltar para o rio para lavar uma, tirando o máximo de ferrugem que consegui, fui buscar alguns gravetos para usar como lenha, e voltei para a cozinha, pendurei-a encima de uma armação que estava ali e acendi o fogo. Pus água dentro da panela e esperei começar a borbulhar para ter certeza de que estava fervendo, então pus as ervas ali.

          Voltei minha atenção para os armários da cozinha, procurando alguma coisa como mel. Não fazia mal pegá-lo por que, se eu me lembrava bem, mel não estragava. Acabei achando um pote fechado junto com um caneco de madeira e uma colher. Ficava cada vez mais evidente que tivera sorte ao encontrar aquela igreja abandonada.

          Despejei um pouco de mel dentro do chá e acabei tendo que mexê-lo com a colher que encontrara antes – depois que lavei no resto de água do balde - enquanto a água se tornava de um alaranjado escurecido. Depois de um tempo tirei o que restava das folhas de lá de dentro e despejei o líquido no caneco, apagando o fogo. Voltei e peguei minha mochila, pegando um pouco do pão, que saíra seco por causa de seu saco e um pacote de bolachas doces. Voltei à cozinha para pegar o caneco e fui para o quarto em que deixara Raquel.                            

          Ela havia adormecido novamente e fiquei com um pouco de pena de acordá-la, mas acabei o fazendo e lhe entreguei o caneco.

          - Beba, é pra melhorar. – falei e ela apenas assentiu, ainda com uma cara de sono e bebeu.

          Sentei na beira da cama e abri o pacote de bolachas, começando a comer uma enquanto ela bebia do líquido e lhe passei o pão quando abaixou o copo. Mas ela apenas olhou demoradamente para o pão e disse:

          - Eu não tô com fome.

          - É melhor você comer. – falei. – Ao menos tente. Ainda é de manhã, mas você tem que se alimentar. Depois você pode voltar a dormir.

          Ela assentiu e começou a mordiscar a beira do pão, enquanto eu continuava sentado comendo bolachas e olhei distraidamente para meus pés. Estavam sujos por eu ter andado de um lado para o outro descalço, mas não me importei, lavaria-os depois. Logo depois, Raquel voltou a se ajeitar na cama e adormeceu rapidamente.

          Peguei minha garrafa de água e umedeci a camisa novamente, então dobrei-a e pus sobre a testa de Raquel, que ressonava suavemente afundada nos lençóis brancos. Peguei a garrafa e bebi um pouco de água, e comecei a explorar o quarto silenciosamente. No armário havia túnicas sacerdotais femininas, jóias, cintos e corpetes de ouro e prata, sandálias de amarrar caras – como tudo mais ali. – pois eram ornadas com joalherias. Fechei o armário, aqui provavelmente deveria ser os aposentos da Sumo Sacerdotisa deste templo, mesmo que o formato do local não fosse como o de um templo normal. Fechei as portas delicadamente para não acordar Raquel e mexi na gaveta da escrivaninha, e dentro dela havia um livro tão grosso que tomava quase todo o espaço ali presente. Peguei, tirando com cuidado para não fazer barulho. Ele era totalmente encapado em couro, mas com detalhes dourados emoldurando a capa que era ornada com jóias e a lombarda. Abri as folhas amareladas e folheei um pouco as páginas amareladas, e vi que era um livro de lendas, tendo ali conhecidas, com detalhes que nunca vira antes, e também algumas que jamais havia escutado.

          Claro que as lendas eram várias vezes tratadas como verdades – não absolutas – devido a nossa religião, isso explicava também a riqueza do livro. Mantive-me entretido com o livro durante algum tempo, até que tive que realizar que, mesmo que Raquel ainda estivesse dormindo, teria que arranjar algo para comer algo logo. Levantei e saí da igreja, iria caçar algo para comer.

           Transformei o meu símbolo em uma longa e fina adaga, e saí pela floresta atrás de algo. Caçadas comuns se tornavam ao mesmo tempo mais fáceis para mim por causa de meus reflexos e velocidade, porém mais difíceis devido ao fato que a maioria dos animais fugia de mim, enquanto os outros ou me atacavam – normalmente as fêmeas para protegerem seus filhotes - ou apenas me ignoravam.

           Ouvi pequenos passos no chão e um cheiro que me alertou que havia um animal por ali, atirei na direção do som e ouvi um grito agonizante. Quando me aproximei, estranhei. Era um bunko, um bichinho que parecia um gato quando adulto, mas não tinha pêlos e sua pele era lisa e brilhante num tom acinzentado – azulado, e com membranas entre suas patas, pois era, apesar de ser um mamífero, aquático, e raramente vinha para a terra, pois se alimentava de pequenos peixes, mas ele era comestível. Matei o bichinho agonizante, e fiz com ele o que deveria fazer para comer sua carne e estava cortando a carne quando me lembrei de ver algo. Limpei as mãos e fui até a cozinha novamente e mexi nos armários até achei outro pote com um pó branco. Abri-o e coloquei um dedo dentro e provei, então constatei que era sal.                              

           Voltei para pegar o balde, então tive de voltar para o poço e peguei água ali, então lavei os pedaços de carne na água, limpando-as bem. Na cozinha, achei uma travessa e pus a carne ali. Voltei até a horta e achei ali alguns legumes, além de algumas ervas que poderiam temperar a carne. Peguei tudo, temperei a carne, pus na panela, posicionando-a sobre o fogão e acendi a lenha. Quando a carne estava refogada, pus a água e enquanto esperava, lavei os legumes e os cortei, e depois pus na água quando a carne estava mole, então esperei, ocasionalmente mexendo na sopa, então procurei nos armários por pratos, e depois achei alguns pratos um tanto fundos de madeira após encontrei uns pratos de prata e ouro, que sequer me importei de pegar.             

           Quando a sopa já estava pronta, a pus num prato e fui para o quarto de Raquel, com cuidado para não derramar nada. Pus o prato encima da mesa e olhei para Raquel que ainda dormia, então toquei em sua testa. A febre abaixara minimamente, mas ela continuava com a febre. Toquei em seu ombro para acordá-la.

           - Aqui. – falei, passando-lhe o prato. – Mesmo se não tiver fome, coma.  

           - Eu estou dando trabalho para você. – fungou ao pegar o prato.     

           - Não pense assim. – respondi, incomodado com o que dissera. – Não foi culpa sua se você adoeceu.

           - Mas... Você fez aquele chá e essa sopa. – disse. - Eu estar doente não tá te deixando aqui?

           - Só vou precisar sair quando me passarem uma missão. Não me passaram nenhuma, portanto, não se preocupe. – tranquilizei-a. – Caso isso ainda te deixe incomodada, sairemos daqui quando você melhorar.

           Ela assentiu e começou a tomar a sopa, não reclamando do gosto. Desci e peguei sopa para mim também. Até que não saiu ruim.

           - Eu não sabia que você sabia cozinhar.

           - Eu não caço e asso quando viajamos?

           - Eu não sabia que você sabia fazer sopa. – disse sendo mais específica.

           - Ah, acabei aprendendo no teste final pra deixar de ser um aprendiz. – respondi.

           - E como é esse teste? – perguntou, pude ver a curiosidade brilhar fracamente em seus olhos.

           - Bom... – Olhei para cima juntando as lembranças. – Basicamente selecionam aprendizes que já possuem uma força relevante e os levam até uma propriedade da Ordem. É quase como uma cidade abandonada extremamente grande dentro de uma espécie de cúpula, construída de modo a ser um labirinto. Tem parques, animais e tudo mais lá, mas não há pessoas. Há monstros.

           -... Como se passa nele? – perguntou estranhando.

           - É só achar a saída da cidade. – falei. – Mas você precisa sobreviver. Aos monstros e os aprendizes tem autorização de... Matarem uns aos outros.

           - E onde sopa entra nisso?

           -... Eu usei o cheiro pra atrair um monstro para longe de um amigo meu, chamado Sebastian. Eu havia perdido o meu cordão e o monstro não me percebeu, atacar ele desarmado com 11 anos era loucura e eu estava dentro de uma casa abandonada.

           - E...?

           - Ele entrou lá e eu pus fogo na casa. Melhor?

           - Ah, sim! Mas o seu cordão não se transforma em uma arma?

           - Transforma.

           - Você o perdeu, como o achou?

           Dei uma olhada em meu símbolo.

           - Tecnicamente, esse cordão não é meu. Eu peguei de um aprendiz que morreu, acho que nem meu símbolo seria esse.

           - Ele era seu amigo?

           - Era um cara que adorava importunar a mim e a Hideo, seu nome era Altri. Ele vivia dizendo que éramos inúteis e que iríamos morrer em nossa primeira missão. – respondi. – Só que a idade para se fazer o teste normalmente é aos 14, nós o fizemos com 11 e ele com 19 anos. Eu realmente o odiava. Ele tentou me atacar quando eu estava desarmado e desviei, não sei o que aconteceu enquanto ele tentava me matar, só sei que uma hora, de repente, veio um raio azul do nada e o atingiu no peito. Ele morreu com isso e no momento eu precisava de uma arma. Acabei pegando o cordão dele. Logo depois disso eu consegui achar a saída.

           - Há quanto tempo você estava lá? – questionou.

           - Sei lá, não contei. Acho que foi no máximo dois meses. – falei, olhando para um dos pés da mesa. – Quando saí, consegui o número 35, posso considerar que era um bom número, bem mediano para quem acabara de ganhar o símbolo.

           - E depois?

           - Eu passei algum tempo com o número 35, depois passei pelos números 33, 27, 21, 17, 13, 11 e então eu consegui o número 9 quando tinha treze, quase catorze anos.

           - E... O Hideo? – sussurrou.

           - Tirando por agora, ele sempre ficava um número a frente de mim. Ou seja, 34, 32, 26, 20, 16, 12 e 10. Ele continuou no número 10 desde então, embora eu ache que ele possa... Voltar à tradição de ficar na minha frente. Ele tem força suficiente para isso.

           - Essas colocações, como se muda elas?

           - Bom, digamos que você é a número 29. – falei. – Você quer virar a... Número 26, por exemplo. Então você desafia o atual portador dessa colocação, me ponha como exemplo. Eu poderia muito bem recusar seu desafio, mas normalmente aceitam por orgulho próprio. Se você me vencer, você vira a número 26, se eu vencer, você fica quieta no seu canto, como 29. É mais ou menos assim que funciona.

           - Você já perdeu alguma?

           - Bom, não. – suspirei. – A leitura de Auras me ajudou muito nesses momentos, e muitos lutam até a morte, quem morrer perde. Eu sempre tentei ao máximo não matar nenhum dos meus oponentes, houveram apenas dois que morreram durante a luta, mas um cometeu suicídio. Foi durante a luta para que eu me tornasse número 9.

           Raquel tossiu um pouco antes de continuar. Era estranho pensar que eu estava contando coisas comuns a híbridos para uma humana.

           - Como ele era? – perguntou com a voz fraca.     

           - Pelo que sei, ele tinha uns 26, 27 anos, mas parou de envelhecer mais cedo que a maioria, então aparentava ter uns... Nove, dez anos. Mas isso servia mais para esconder sua força. Ele chegou próximo ao seu limite quando estava perdendo e então se matou. Seu nome era Aleksander.

           Ela estremeceu.

           - O outro foi uma mulher. Ela era mais conhecida como Angel, mas seu nome era Angelina. Foi exatamente um mês antes de eu fazer 15 anos, ela me desafiou para conseguir o número 9. Ela era conhecida por ser bastante forte e suas técnicas terem certa... Persuasão.

           - Como assim?

           - Ela emitia um cheiro doce usando sua Aura, mas de forma estranha. Quem a sentia ficava inebriada e meio anestesiado, grogue.

           - Isso é trapaça.

           - Com certeza. – concordei. – Eu fiquei zonzo e ela me atacou. Apanhei muito e num momento ataquei às cegas. Só fui perceber depois de “acordar” que eu tinha cortado... Acho melhor você não saber.

           - Ah, mas eu quero!

           - Você está parecendo animada demais para alguém que está doente, mocinha. Bom, basicamente, eu... Pus a ponta da espada contra seu pescoço, perfurando-o não a ponto de atravessar. E desci a espada. Totalmente.      

           Ela estremeceu e afastei a imagem mental de Angelina com os cabelos se tornando loiros com as tripas saindo do corpo.                                               

           Passei o dia todo ao lado de Raquel, conversando com ela ou lendo o livro de mitos que encontrara, e fiz o chá de antes mais duas vezes, e quando anoiteceu, esquentei o que sobrara da sopa para ela, enquanto me contentei com as bolachas doces e um pedaço de pão. Ela acabou dormindo rapidamente após tomar a sopa, então toquei em sua testa para verificar sua temperatura. Acabei ficando aliviado ao constatar que sua temperatura voltara ao normal. Voltei para a cozinha e peguei as panelas que usara junto com os pratos, então fui até o riacho e comecei a lavar todos.

           - Imagino o que um humano pensaria ao ver um híbrido lavando a louça à beira de um riacho. – Undine disse atrás de mim.      

           Me virei, olhando-a brevemente, então voltei minha atenção novamente para a louça.

            - Já se espalhou entre os híbridos a notícia... – continuou. – “O melhor rastreador da Ordem... Fracassou na caçada a Despertado, e se não fosse um único membro de seu grupo fugisse e conseguisse ajuda, iria acabar morrendo... Mas mesmo com a ajuda do número 4 e o número 10, ele foi o único sobrevivente da caçada... Os números 19 e 23 acabaram morrendo por não conseguir ser páreo ao Despertado...”.       

            Trinquei os dentes, irritado. Como em apenas um único dia as coisas já começassem a correr?!

            - O problema foi que vocês nos mandaram caçar um Abissal e um número três Desperto. – falei, ainda sem me virar para ela, esfregando a panela com tanta força com os restos da camisa que usava ontem que acabei cavando um pequeno buraco na panela. – Desculpe, mas não tinha como lutarmos contra isso. Omitiram isto dos boatos.     

            - Oh... Realmente não sabíamos disto... – continuou. – Posso saber de onde surgiram tais panelas?

            - De um templo abandonado um pouco mais atrás. – respondi. – Ontem, a menina que está me acompanhando acabou pegando chuva, então adoeceu. Eu cuidei dela hoje durante o dia inteiro.

            - Que ironia... Um híbrido num templo, onde são expressamente proibidos... – riu. – E ainda mais... Cuidando de uma criança doente!

            Bufei diante da ironia em sua voz. Cala a boca gritei mentalmente para ela e acabei batendo no muro de pedras, concreto e titânio. Pisquei, tonto e lembrei que fora eu colocara aquilo em minha cabeça.

            - Veio aqui apenas para me importunar? – perguntei com os dentes trincados. – Contar os boatos que começaram a correr?

            - Não... Apesar do que ocorreu, encontraram mais um Despertado, então você foi um dos escolhidos para ir para lá.

            Pelos deuses, está cada vez mais evidente que querem se livrar de mim. Ontem quase morri por causa de um Abissal, e agora já me arranjaram uma caça a Despertado! Pedi para que não me mandassem para encontrar nada como um número 2 Desperto ou até uma Senhora do Abismo, já que Futoji era o único homem.

            -... Aonde é? – perguntei.

            - Em Gazelle, é uma cidade a dois dias de caminhada daqui. – respondeu. – Desde que você vá para sul. Não estará no comando dessa vez.

            Sul? Que não me mandem atrás da Abissal de lá.

            - Amanhã sairei para ir até lá. – falei. – É tudo?

            - Claro... – disse e saiu, adentrando na floresta.

            Bufei e levantei. Uma caçada a Despertado logo atrás da outra – que dera errado. – era tudo o que eu poderia precisar! Ainda mais, era irritante como os boatos conseguiam correr mais rápido pela Ordem. Não vou me surpreender se alguém aparecer para tentar conseguir o meu número 9 por achar que eu fracassara na missão por incompetência.

            Enchi minha garrafa que levara junto com as coisas, e só então lembrei de algo, o que Anita dissera: Não tinha o número 2, Nicholas, que era obcecado por caçadas a Despertados?

            O que me fez lembrar disso foi o fato de que ela dissera que Nicholas possuía traços andróginos, e o cara que – argh – cheirara minha nuca hoje de manhã era andrógino e passava uma estranha e alarmante sensação de perigo. Eu Despertara ontem – era estranho para mim pensar nisso - e apesar de ter voltado a ser um híbrido, com certeza ainda deveria estar com o cheiro de um Despertado, e aquele cara dissera que sentira um cheiro estranho em mim...

             Será que aquele cara era o tal Nicholas?

             Sacudi a cabeça, tentando afastar qualquer pensamento ruim. Não... Talvez não fosse ele, acho que, se ele fosse mesmo o cara obcecado por Despertados, teria me atacado. Talvez ele fosse apenas um cara qualquer.

             Voltei para a igreja e guardei as coisas nos respectivos armários, então voltei para o quarto de Raquel, para ver se ela não havia acordado ou piorado enquanto dormia. Entrei no quarto e escutei a respiração calma e adormecida de Raquel. Acabei me sentando então na cadeira e ativei minha visão noturna, pegando então o livro de lendas. Acabei encontrando ali a lenda de Sora e Daichi. Quase comecei a ler, mas eu a conhecia bastante.

             Eles eram narrados como belos rapazes altos de cabelos negros e pele clara, mas o que realmente lhes exaltava eram suas técnicas de batalha, são citados como os melhores guerreiros que já existiram na história, sendo capazes de comparar-se com deuses. Eles eram filhos de um homem casado com uma belíssima sacerdotisa, eles herdaram a cor do cabelo e os traços do pai, mas os olhos e a cor de pele da mãe.

             Daichi era o mais velho, mas vivia a sombra do mais novo, Sora. Um dia ele estava andando por uma floresta e escutou um canto que até o vento calou-se para escutar, e quando foi investigar, encontrou-se com uma moça com beleza excepcional chamada Vasti, mas seu maior atributo era sua voz, além de ser exímia guerreira, e ele se apaixonou por ela. O problema é que Daichi tinha telepatia com Sora e acabou se apaixonando por ela também, e isso é dito como o começo do fim de ambos, pois a deusa dos mortos era apaixonada por ele.     

             Aí ela manda matarem Vasti, mas o Daichi que é atingido no lugar dela, e descobre-se que se ele se ferisse, a mesma coisa acontece com Sora, aí ele promete que voltará com o irmão futuramente, então cristaliza o corpo dos dois antes de morrerem. Esse final nunca fez muito sentido.         

             Desisti de ler então fechei o livro, apenas ficando encostado na mesa, pensando em nada em especial. Cheguei a pensar em derrubar o muro de titânio e ver se Hideo estava acordado, e abri uma pequena – mínima - brecha no muro e espiei ali. Hideo estava acordado, e pelo que vi, ele não parara de andar desde que saíra daqui. Mesmo com a brecha mínima, senti a fome e a sede inundarem minha mente como água de um rio passando por uma represa, e senti também que ele ainda estava com raiva de mim pelo que eu falara sobre ele ter entregado a vida de alguém, e era isso que o impulsionava a andar o máximo que poderia sem parar nem para suas necessidades. Senti que suas pernas tremiam levemente com o esforço e o sono inundando sua mente, ele não dormira ontem, saíra logo depois que encontrou o quarto para Raquel.

             Tapei o buraco, não queria ver mais nada.

             Somente encostei a cabeça em meus braços, olhando para a parede, e nem percebi quando adormeci.   


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Notas finais do capítulo

Não resisti a postar esse capítulo, era tão... Fofo ó3ò
"Monique, quem diabos é a criatura do desenho?!" Minha boca é um túmulo! Ele já e ainda não apareceu na fic. E não é nem o Yudai nem o Hideo, ele não deveria ter saído tão parecido --' "Hã?!"Sorry Lara Vic D= o desenho do Yudai Despertado vai sair, não se preocupe! Só é complicado!
~Curiosidades 2: Hideo~
Ao contrário o Yudai, o Hideo não foi um personagem que apareceu de repente. No começo, ele tinha 22 anos, era alto, musculoso, com o cabelo repicado para cima. Em suma...
Ele e o Yudai não eram gêmeos.
Eram rivais sem nenhuma relação de sangue. Se colocasse os dois no mesmo recinto iria se ter briga. Muita briga. Talvez até morte.
Hideo também é um nome japonês, significa "homem esplêndido". Pareceu-me um bom nome, Hideo é um personagem em constante mudança, pena que eu não tenho nenhum capítulo narrado por ele postado... Não significa que eu não o tenha guardado em uma pastinha no meu computador! =3
Hideo tinha uma personalidade forte e muito alto confiante, desleixado. Pensando bem, o Hideo tem uma personalidade forte e desleixada, mas não tanto quanto antes. Dos gêmeos, ele é obviamente o mais velho e brincalhão, mas... Será que ele é mesmo? O que Yudai diz aqui é o que ele vê. O que ele vê é verdade?
Eu tenho grandes planos para este personagem, maiores do que poderiam pensar...