A morte da bezerra escrita por BubblesChan


Capítulo 3
Vergonha


Notas iniciais do capítulo

Capitulo escrito por BubblesChan !



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# 07/05/2001

# 05:10 - Quarto

Eu não consigo dormir a dois dias. É como se eu fechasse meus olhos e aquela cena se repetisse na minha cabeça. A cada vez que eu me virava na cama buscando algum conforto em meus pensamentos, ela se repetia. De novo e de novo. A cada segundo que passava uma marca era feita em meu corpo. A cada movimento um grito de dor. Repetindo constantemente, me assombrando à noite.
Já faz algumas horas que estou acordada. Decidi que não dormiria mais, por mais cansada que esteja. Qualquer coisa é melhor do que recordar essa tragédia. Eu não sei mais o que sentir. Raiva, dor, medo e tristeza... É como se tudo que eu pudesse sentir de diferente disso fosse arrancado de mim. Sinto-me inanimada, usada e suja.
Foi muito difícil voltar pra casa, uma vez que eu não sabia onde estava. Mesmo assim eu não teria como pedir ajuda a ninguém. Primeiro porque não havia uma viva alma por perto, e segundo que ninguém ajudaria uma menina ensanguentada saindo de uma cabana abandonada. Eu tinha arranhões nos braços causados pelas farpas do estrado da cama. Alguns hematomas perto das coxas. Meus olhos avermelhados, meu cabelo bagunçado. Algumas de minhas unhas foram arrancadas quando tentei me desvencilhar deles, arranhando-os. Segundo eles “a gatinha ficou selvagem demais”, isso foi o suficiente pra me ameaçarem com um alicate. Depois da segunda unha eu já não tinha mais forças e decidi aceitar aquilo tudo.
A humilhação era tamanha que quanto mais forças eles faziam sobre meus quadris, mais lágrimas escorriam de meu rosto. A sensação de dor, por incrível que pareça, foi amenizada aos poucos. Em certa parte eu não sentia mais nada, meu corpo parecia anestesiado da cintura pra baixo. Foram os piores minutos de toda a minha vida. Nem mesmo os constantes anos de humilhação se comparam a isso.
Quando a sessão de tortura terminou, eles puxaram suas calças, amarramos seus cintos e me disseram: “Agora você já pode ir, Estelinha”. Depois disso, ficaram me observando tentar levantar só pra poder rir mais ainda. Eu não conseguia, toda a minha força tinha sido retirada de mim, meus membros não correspondiam a meus movimentos, eu só conseguia chorar diante daquela deplorável situação. Então eles foram embora, e deixaram a porta entreaberta. Fiquei uns bons minutos tentando entender tudo isso, tentando recuperar minhas forças e parar de chorar. Minha expressão era vazia, e eu olhava pra um ponto fixo na parede envelhecida. Nesse momento eu já estava no chão. Quando recuperei parte de meus sentidos só consegui me contorcer e ficar em posição fetal. Eu não chorava mais, a dor estava aos poucos se instalando em cada extremidade minha, como se meu corpo fosse se queimando cada vez mais.
Imaginava porque ainda não estava morta. Pouco a pouco o sangue se formava e escorria pelo meu vestido. Aquele chão parecia um forno de tão quente. Era doloroso estar ali, as costas doíam, as mãos, minha cabeça. O corpo inteiro. Estar morta seria muito melhor do que ficar naquela situação. Mas eu precisava ir embora de lá, eu não fazia ideia de que horas eram. Lutando contra o chão, me apoiei em meus pés, me agachando ao lado da cama. Foi como se arrancassem meus nervos. Eu não sabia o que eles tinham feito com meus pés, mas doía como se meus dedos não estivessem mais lá. Tentei focar meus pensamentos em voltar pra casa, e com isso em mente consegui ficar de pé. Fechei meus olhos para que não desmoronasse de novo. Segui até a porta entreaberta, em passos lentos. Abri-os novamente e enxergava a escuridão. Não fazia ideia pra onde seguir, segui um pequeno caminho que existia entre a mata que talvez tivesse sido feito por eles. Por sorte eu acertei. Depois de alguns minutos eu já enxergava as luzes da cidade. Baixei minha cabeça e tentei seguir por ruas com pouca iluminação, apesar de perigoso não queria que me vissem naquele estado, o que seria difícil. Por sorte não deixei um rastro por onde passei, todo o sangue que deveria escorrer estava naquela cabana.
Fui reconhecendo minha rua e torci para que mamãe estivesse no trabalho, mas com certeza já era muito tarde. Porém não havia luzes no interior da casa. Eu entrei pelos fundos porque me esqueci de pegar minha bolsa, eu não pensei em nada quando tentei sair daquilo lá, também não enxerguei nada naquele quarto. Eles deviam ter jogado ela pra algum canto.
Fui ligando apenas o abajur da sala, para me guiar até meu quarto, quando um bilhete me chamou a atenção. “Estela, hoje eu volto mais tarde do trabalho. Não se preocupe, estarei de volta antes da meia noite.” Nesse exato momento, olhei pro relógio. Exatamente 00:30. Eu não tinha muito tempo pra mascarar tudo o que aconteceu, então dei passos rápidos até o banheiro. A pior parte foi subir as escadas. Quando cheguei lá quase gritei diante de meu reflexo no espelho, era como se eu fosse alguma assombração, algum sobrevivente de uma tragédia. Eu estava completamente destruída, roupas rasgadas, olhos vermelhos, arranhões e feridas pelo rosto, pelo corpo.
Eu precisava dar um jeito nisso, tomei o banho mais rápido que pude, tentando limpar cuidadosamente as feridas que doíam ainda mais em contato com a água. Querendo ou não, eu ficaria com muitas marcas. Não tinha como limpar meu vestido, ele estava rasgado e com grandes manchas de sangue perto da virilha. Não tive outra opção além de colocá-lo em uma sacola e escondê-lo em meu armário. Com certeza eu iria queimá-lo no dia seguinte. O que mais me preocupava agora era meu corpo que latejava e, principalmente, minhas unhas. Minha carne estava aparente perto da cutícula, e alguma coisa perto daquela mata devia ter entrado nela. Doía demais. Eu precisava dar um jeito nisso. Tentei limpar o máximo na pia e tentar arrancar tudo que pudesse com uma pinça. Acho que consegui dar um jeito, mas ainda dói pra escrever. Eu perdi duas unhas da mão direita.
Voltei pro quarto à procura de curativos. Coloquei dois em meus dedos e alguns perto de minha virilha, coxas e nas costas. Não poderia usá-los no rosto. Decidi dar um jeito nele de manhã, porque agora eu deveria ir pra cama antes de mamãe chegar. Coloquei meu pijama bem devagar e olhei pro relógio de novo, marcava 00:45. Deitei na cama e senti meu corpo estalar. Até minha alma doeria no dia seguinte, e principalmente, meu orgulho.



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Notas finais do capítulo

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