"_ Amanhã cedo nós invadiremos uma tribo canibal, tudo bem Chip?

Nenhuma resposta.

_ Sabia que toparia. Tchau._ disse enquanto me embrenhava na mata."

***

Estava assistindo pela milésima vez uma animação de uma tal de Disney que contava a história de animais que falavam, o enredo era sempre o mesmo: o animal é diferente dos outros de sua espécie, ele faz amizade com um animal geralmente fofinho e então ambos passam por aventuras inesperadas geralmente enfrentando animais maiores feiosos e ferozes. Eu não gostava, era minha última opção, tínhamos uma máquina estranha que meu pai chamava de computador que ele usava para imprimir algumas fotos, mais nada de interessante podia ser feito com ele, em minha opinião era só uma grande perda de espaço. A nossa televisão não ficava ligada muito tempo a não ser quando eu estava vendo um desses filmes em DVD que meu pai trazia, não entendia muito bem seu funcionamento, meu pai disse que era através de energia elétrica. “Mas o que é energia elétrica?” sempre perguntei. Ele me dizia que era o que ligava as nossas coisas, então eu perguntava como e ele dizia que tínhamos um gerador.

Papai não me deixava ficar “fuçando” com essas coisas, mas a minha condição de inventora me inibe a respeitar, usei a força do gerador no Rodo e acabei criando uma das minhas melhores coisas até agora.

Eu segurava minha garrafinha azul com sangue que minha mãe tinha estocado para mim no refrigerador dos fundos da casa. Eu poderia muito bem caçar algum animal da floresta, havia alguns bem grandes no norte da ilha, mas minha mãe gostava de ter uma reserva dentro de casa o que me poupava tempo, eu não gostava de matar animais, eles sabiam quando eu estava caçando, eu costumava usar a parte norte da ilha apenas para esse fim, saciar minha sede, minha mãe sempre disse que era uma área perigosa, eu nunca achei, era fechada e com uma mata muito densa, tinha uma cachoeira que brotava do centro da ilha e desembocava ali formando uma pequena lagoa, na verdade era o melhor lugar para brincar em toda ilha, havia várias pedras que com um pensamento se transformavam em montanhas e vulcões enormes.

Eu não entendia por que meus pais temiam que eu saísse da ilha, queria conhecer outras pessoas, eu tinha que tomar alguma providência, era contra os meus princípios, mas era a última coisa que eu podia fazer, gostava de ficar bastante tempo afundada dentro da banheira, não precisava respirar e era relaxante, era a desculpa que precisava, deixei a torneira aberta para pensarem que estava no banho, meus pais sempre conversavam nesse horário, quando eu não podia ouvir! Me esgueirei pelo corredor, nossa casa era toda de madeira e um passo em falso podia alertá-los que eu estava ouvindo.

_ Olá mulher da minha vida! A outra mulher da minha vida está no banho?_ perguntou meu pai entrando na cozinha onde minha mãe preparava o jantar deles.

_Sim!_ disse minha mãe.

_ Ele veio hoje?_ perguntou meu pai mudando genuinamente o tom de voz.

_ Não, mas ele nunca passa da primeira semana._ disse minha mãe, ela só podia estar falando de meu médico Edward, ele vinha todo mês e fazia vários testes comigo, ele vinha de além da ilha e era um dos motivos que me fazia querer sair dali, ele não falava muito comigo, só fazia algumas perguntas médicas sobre meu crescimento e alimentação depois ia embora._ Aquele demônio está querendo levá-la! Não vou permitir que leve minha filha!_ eu sabia que minha mãe não gostava dele, nem eu gostava na verdade, mas chamá-lo daquilo era exagero nunca havia ouvindo minha mãe falando mal dele nem de ninguém, quando Edward vinha minha mãe ficava muito séria e notavelmente incomodada, mas que história era essa de querer me levar com ele?

_ Ele não vai fazer nada, se não fez até hoje! Se ele fizer alguma ameaça nos mudamos e pronto!

_ Do que vocês estão falando?_ perguntei entrando na cozinha sem conseguir me conter.

_ Minha querida você estava ouvindo?

_ Sim mãe! Ouvi o que falou sobre Edward, ele quer me levar daqui?

_ Aquilo não...

_ Me fale a verdade mãe!_ falei a interrompendo.

_ Deixe sua mãe falar!_ me repreendeu papai.

_ Para quê? Vocês vão inventar desculpas!_ falei gritando.

_ Abaixe o tom de voz, mocinha!

_ Qual a relação dele conosco?_ Tinha que ter algo mais! Eu via quando ele dava um grande embrulho de dinheiro à minha mãe, o usavam para comprar as coisas que eu precisava.

Quase tudo o que eu aprendia era ensinado pela minha mãe então eu tinha todo o respeito, mas eu sabia que ela mentia para mim, podia perceber sua expressão mudando e seu coração batendo mais forte, parte do dia ela passava me ensinando de tudo um pouco, andar direito, escrever, colorir dentro da margem, desenhar eram algumas coisas que ela me ensinava desde quando eu era pequena, ela também começou a ensinar coisas estranhas que eu não fazia ideia para que eu precisaria na vida, matemática era bem útil quando eu estava inventando, meu passatempo preferido, mas tinha outras coisas que eu não gostava, minha mãe frequentemente começava a falar comigo em inglês eu não sabia por que, ela sempre dizia que era importante e era o idioma de Edward, ele também parecia bem interessado nesse meu tipo de aprendizagem, sugerindo aprimorações e novidades sempre que nos visitava, o que quase me deixava neurótica de não saber seu verdadeiro papel nessa história!

_ Ele é o seu médico!_ disse papai.

_ E por que ele iria querer me levar daqui?

_ Por nada, Nessie!_ interferiu minha mãe, preocupada.

_ Eu sabia que não iam me dizer!_ saí correndo de casa deixando eles em uma discussão ao som da torneira ainda aberta. Devia ser quase uma hora da tarde e fui em direção à praia aonde poderia refletir sobre o que estava acontecendo.

Senti meu braço ser cutucado por Leoni, o meu leão-marinho, ele era um dos meus bichinhos de estimação, ele devia ter percebido que eu estava triste, Edward insistia em dizer que era um dom que eu tinha de fazer todos se aproximarem sem medo, disse que poderia ser bem útil no futuro, eu não fazia ideia o que ele queria dizer, ele sempre vinha em sua lancha particular na primeira semana do mês depois ia embora me deixando com várias perguntas das quais meus pais se recusavam a responder. Afinal, o que haveria além de nossa ilha? Outras ilhas como nossa? Nada que valesse a pena visitar? Por mais que pensava não conseguia imaginar algo convincente para tanto segredo.

Leoni tornou a me cutucar com o nariz molhado o que me fez prestar atenção. _ O que você quer?_ falei enquanto ele continuava empurrando meu braço com mais força, deixei que me levasse até onde queria, o mar, não entendi o que ele queria que eu fizesse, nadasse para fora da ilha? Não seria uma má ideia_ Hei, Leon está doido?_ Minha mãe havia proibido de ir muito longe. O que teria além de onde o sol encosta no mar? Perguntas, perguntas e mais perguntas, todas sem respostas! Eu lia muitos livros que vinham de lá, mas nenhum explicava isso.

Abri minha mochila inseparável que minha mãe bordara para mim, ela era especial e não molharia com a viagem aonde eu guardava tudo que eu achava importante: minha luneta, meus livros com as aventuras de Tom Sawyer, um manual de sobrevivência na selva que ganhei quando era pequena, um saco com dinheiro que eu sabia que era muito importante no mundo além da ilha e um colar muito bonito com umas marcas sem sentido, que achara na em uma exploração que fiz sem minha mãe saber na parte norte da ilha, lembro-me que na época seu brilho me chamou muita atenção, sempre quis saber o que estava escrito, mas nunca tive vontade de mostrar à alguém.

Tinha também uma garrafinha com sangue, e minha câmera digital, com as fotos da ilha que eu conhecia melhor que tudo. Seria o suficiente para passar algum tempo no mundo além do horizonte?

Vi Leoni se arrastar pela areia e soltar um som estranho ao perceber que eu continuava parada. Instantaneamente joguei a mochila nas costas e corri até ele me agarrando em suas costas e deixando-o me levar, para onde? Eu não sabia.