Nameless escrita por Guardian


Capítulo 23
A Primeira Vez não se Esquece




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A concentração era total.

O garoto estava perfeitamente centrado no que fazia, e mesmo se os ouvidos não estivessem devidamente protegidos pelos grandes fones de vedação, sua atenção era tanta que nenhum som além do que ele próprio causava, tinha qualquer chance de ser percebido.

A cabine de tiro que o garoto usava era na verdade a única ocupada em todo o lugar, e assim seria pela próxima hora inteira enquanto o clube continuasse reservado justamente para seu uso. Além de ainda ser extremamente arriscado aparecer em público, evitaria qualquer eventual inconveniente pergunta de por que uma criança precisava praticar tiro. Portanto, não havia ninguém suficientemente próximo ali para prestar atenção em todo o ódio que brilhava nos claros olhos azuis, como se seu dono enxergasse uma cena em particular que apenas ele era capaz de ver, com alvos específicos onde descarregar toda sua munição. Não havia ninguém ali para ver, e isso era ótimo.

– É impressionante – o homem comentou com um grande e surpreso sorriso que refletiam muito bem suas palavras – O garoto tem mesmo só 13 anos?

– Pelos próximos dois meses, sim – Klaus respondeu sem dar grande atenção para o entusiasmo do outro, parecendo longe de compartilha-lo também. O homem ao seu lado era um dos poucos – muito poucos – que sabia da existência e da verdade acerca do jovem Mello, e estavam ambos até o momento observando de longe o desempenho do garoto.

O homem percebeu a natureza do olhar do moreno, distante, evasivo, e por um breve instante julgou que o que estivesse ali era hesitação, e por que não, culpa.

– Já está na hora. Você sabe disso, não sabe, Klaus? – indagou incisivamente, observando com atenção o contrair de lábios que suas palavras provocaram.

– Eu sei, Tristan – Klaus respondeu um pouco mais alto do que precisaria, ainda com os olhos amendoados longe dos verdes do outro.

Tristan entregou então um grande envelope pardo para o outro, que o recebeu sem se preocupar em abrir e conferir seu conteúdo. Sabia muito bem do que se tratava e definitivamente não se sentia tentado a cuidar daquilo agora. Era inevitável, e por isso tentava adiar; nem que fosse por somente mais cinco minutos. Mesmo que se sentisse imensamente hipócrita por isso.

– Há três opções aí, você pode escolher qual fazer.

– Está bem.

A resposta curta e seca fez Tristan fixar mais abertamente as esverdeadas íris no rosto ainda jovem do amigo; enquanto uma mão puxava para trás os teimosos cabelos precocemente grisalhos, a outra encontrou seu caminho até o ombro de Klaus e ali ficou até que o moreno enfim soltasse um suspiro cansado e, pela primeira vez na última hora, permitisse que os olhares se encontrassem. Gostava do mais velho e o respeitava imensamente, por isso sentiu-se um tanto desconfortável por ter aquele mesmo olhar que costumava receber quando mais novo, novamente preso a ele.

– Desculpe-me, Tristan. Eu apenas... – outro suspiro – Sinto muito, não pretendia falar dessa forma.

Não houve resposta por parte do mais velho, como nunca houve. Apesar de gostar de ser tratado dessa forma após tanto tempo, quase como uma nota de nostalgia, era inevitável que quando fizesse algo que o outro considerasse errado ou inapropriado para o momento, ganhasse aquele olhar de espera e o silêncio. Logo em seguida sempre vinha algum conselho de conduta ou contida, mas eficaz, censura, dependendo. Menos desta vez.

– Você se apegou ao garoto - o homem disse simplesmente, e de certa forma, não se sentia tranquilo com tal constatação.

– O quê? Eu não... – Klaus atrapalhou-se, pego pela surpresa de uma sentença que certamente não esperava.

– Se apegou – Tristan repetiu calmamente – Está tudo bem, não é como se fosse algo inesperado. Você só não pode esquecer, Klaus.

– Esquecer do quê? – o moreno indagou sem entender.

– De quem ele é.

– Eu sei quem ele é - como poderia não saber? Decididamente não estava entendendo a linha que aquilo estava tomando.

– Ele não é Luka – o homem disse enfático, e viu Klaus empalidecer à menção desse nome, uma sombra de dor passando num átimo por seu rosto subitamente tenso.

– Eu sei disso! – forçou as palavras a saírem, ásperas e amargas como sempre se tornavam quando os rumos retornavam à lembrança daquela pessoa. Ele nunca pensou… Quer dizer, Mello era… Certamente ele não...

– Sabe, tenho certeza que sim. Mas às vezes parece esquecer – o mais velho atestou pacientemente.

E aquilo - talvez como uma forma de barrar todas as emoções que o ameaçavam tomar cada vez que “Luka” era trazido à tona - foi o que bastou para o temperamento normalmente calmo de Klaus explodir.

– O que esperava que eu fizesse?! - disse de forma quase raivosa, tom jamais usado com o amigo de tanto tempo, nunca com seu “mentor” - O que eu deveria ter feito então?! O levasse até você? O deixasse à própria sorte? Tudo o que quis fazer foi cuidar dele! - a última frase foi dita em algo próximo a um sussurro.

– Nós dois sabemos por que você fez isso - Tristan pareceu não se abalar e manteve a mesma expressão de quem sabia muito mais do que deixava saber.

– Sim, porque Karen e Aberth eram meus amigos e seu filho ficou sozinho! Porque Christopher gostaria que alguém cuidasse do seu irmãozinho!

– Klaus, você nunca fez o tipo “responsável por alguém”. E agora está tentando compensar isso tomando conta desse garoto.

Klaus nunca iria admitir, mas essas palavras doíam. Profunda e intensamente. Machucavam.

– Já chega disso. Estou com ele há mais de dois anos, não preciso que ninguém venha agora questionar minhas ações.

– Não estou questionando nada, meu amigo. Queria apenas te lembrar.

– A ladainha é importante ou posso interromper? – de repente uma terceira voz se pronunciou e fez os dois homens se sobressaltarem. Ambos viraram ao mesmo tempo com o coração ligeiramente acelerado pelo susto para se depararem com o jovem garoto parado bem ali a uma distância razoável deles, os encarando com uma expressão que certamente criança alguma deveria ter. Tristan nunca ficava confortável quando era encarado por aquele par de brilhantes olhos azuis.

– Terminou? – Klaus perguntou, forçando a algum custo um sorriso para o garoto. A breve discussão não trouxe bem algum, mas ele tentava esconder seus efeitos por debaixo da sua máscara de sempre.

– Por isso estou aqui – Mello respondeu com descaso, olhando ao redor tentando se lembrar onde largara seu casaco.

– Bem, Klaus, tenho que ir – Tristan falou apertando levemente o ombro do moreno em despedida, com uma pressa surgida do nada – Até mais, Mello – virou para o menor apenas para receber um aceno distraído em resposta, e uma última vez dirigiu-se para Klaus – As informações estão todas no envelope.

– Okay. Vai dar tudo certo.

Antes de tomar seu caminho, porém, o homem hesitou um instante e sussurrou rapidamente no ouvido do moreno, como se precisasse dar aquela certeza ao outro uma última vez – Ele não é Luka, Klaus.

~*~

O homem arrumava pela sexta - ou seria sétima? - vez o gorro do mais novo, garantindo mais a si mesmo do que ao garoto à sua frente que tudo estava no lugar certo e cumprindo a função devida. E pela sexta vez o garoto bufou e revirou os olhos com aquela ação. Mas não disse palavra alguma nem tentou se afastar. De certa forma, o nervosismo óbvio de Klaus amenizava o seu próprio, fazendo-o achar aquele período de “preparação” bem mais desafiante do que o real propósito de tudo, do que estava prestes a acontecer. Prestes a fazer.

– Pronto! Está bom assim - o moreno disse finalmente, tentando sem muito sucesso forçar um sorriso confiante para o menor.

Mello continuou em silêncio, sabendo que não demoraria para que o exato mesmo processo se repetisse, naquele tempo que parecia não avançar. E mesmo se tivesse a vontade de responder algo, tinha sérias dúvidas de onde conseguiria encontrar sua voz. Mas tudo bem. Ele se assustaria mesmo, se ao invés de tudo isso, estivesse absolutamente calmo com a situação e com seus pensamentos, se seu coração estivesse batendo em qualquer ritmo próximo do normal, se conseguisse encarar essa noite como outra qualquer. De certa forma, sentia-se melhor com o nervosismo.

Estavam ambos no interior de um dos vários carros estacionados nos arredores do “ferro-velho”, camuflados pela falta de iluminação e pelo completo silêncio da madrugada.

Walter Ferrers era quem eles aguardavam.

E após poucos minutos, antes que Klaus tivesse a chance de repetir o ritual e conferir a vestimenta do garoto pela sétima - ou oitava - vez, a luz baixa de um par de faróis projetou-se à distância, logo entrando pelo portão enferrujado do lugar. Mello contraiu os lábios e encheu os pulmões profundamente ao abrir sua porta e sentir o ar fresco o atingir, lançando um único olhar para Klaus, olhos que diziam muito, bem mais do que seu dono jamais se atreveria a verbalizar. O moreno segurava o volante com tanta força que seus dedos estavam brancos, quase tão brancos quanto seu próprio rosto.

Mello tomava cuidado com cada passo, e não perdia de vista a fraca sombra de Ferrers; o garoto sabia se movimentar sem fazer barulho, e em questão de instantes que pareceram infinitamente mais longos do que deveriam, estava com o homem ao alcance de seu braço, ainda completamente incógnito.

Ele era um fantasma.

Para todos, estava morto e enterrado junto ao resto de sua família, era alguém que não deveria mais existir nesse mundo. Com seu novo “trabalho”, seria a mão invisível que acertaria pessoas desconhecidas a ele, mas que não lhe despertavam a mínima consideração, afinal, se sua família podia ser morta daquela maneira, por que essas pessoas deveriam ser imunes ao mesmo destino? Ele tinha todo o direito de não se importar.

Ele era o maldito fantasma que vagaria naquele mundo até encontrar uma razão para deixá-lo.

Todo os dias Walter Ferrers chegava ainda de madrugada ao seu “local de trabalho”, que tinha a fachada de um ferro-velho decadente, e parecia ter como seu passatempo predileto ficar ali na solidão da escuridão contando cédulas e recibos de notas promissórias. Todo dia, sem falta, ali estava ele.

Mal sabia ele que essa rotina apenas facilitava as coisas para o adolescente o espreitando das sombras de um velho Impala abandonado.

A mão do loiro tremia ligeiramente, mas ele procurava fingir que era apenas impressão. Seu coração batia tão forte e rápido que por instinto ele pressionava a palma sobre o peito para tentar abafar o som, sentindo sua própria pele roubar o calor da região mesmo por sobre as duas camadas de roupas. Por um segundo inteiro temeu que suas pernas se recusassem a se mover.

Mas permaneceu oculto.

O homem começava a se afastar, erguendo-se do velho estofado em direção a um grande armário de madeira, provavelmente em busca de “algo” para se manter acordado - Mello conseguia sentir dali o cheiro -, e essa era a brecha que o garoto esperava. Com cuidado, ergueu sua arma e mirou na cabeça do mais velho, prendendo a respiração.

O alvo estava bem à sua frente. O leve tremor - maldito tremor insistente! - em sua mão era insignificante, o máximo que faria seria tornar o tiro menos ou mais profundo, mas ainda assim, fatal. Os olhos azuis estavam mergulhados em concentração. Apertou o gatilho.

Mas naquele exato instante Walter Ferrers se abaixou, tentando alcançar uma das garrafas mais envelhecidas que possuía e escapando da morte certeira com uma sorte que somente personagens fictícios deveriam possuir. Portanto, ao invés do som de um corpo caindo, sem vida antes mesmo de atingir o chão empoeirado, tudo o que pôde ser ouvido foi o barulho estupidamente alto de uma garrafa se espatifando ao mesmo tempo que o homem xingava e praquejava ao dar-se conta do que acabara de acontecer. Ou do que quase tinha acontecido, tanto faz.

Diversos xingamentos e nomes impróprios passaram pela mente de Mello também, os olhos muito azuis arregalados como duas vistosas lanternas, e um frio assustador brincando em seus membros. Quantos milésimos de segundos foram? Quantos se passaram até que ambos conseguissem se libertar da estática da cena e voltassem a se mover?

Ferrers foi mais rápido do que se esperaria de uma pessoa com sua aparência mirrada, dando um salto para o lado e consequentemente, para o ponto cego de seu algoz. O loiro também não hesitou mais e abandonou o carro para correr na mesma direção do outro, mas quando alcançou a pilha de pedaços retorcidos de ferro compactado, não havia ninguém. “Merda merda merda merda merda merda merda”.

O homem não tinha fugido para o pátio, isso era certeza, então a única opção restante era a porta do que devia ser o escritório dele. O garoto se dirigiu rápida e silenciosamente para lá, todos os piores cenários possíveis passando e repassando pela sua mente; aquela noite podia ruir e tudo por causa de uma maldita garrafa!

Não. Ele não deixaria que ruísse. Não depois de todo aquele tempo de preparação, não depois de tudo que ele decidira enfrentar; não seria a droga de um bêbado que poria fim a tudo! Mello respirou fundo uma última vez e empurrou a porta com o pé. Nenhum rangido.

A pequena sala estava mergulhada no breu, e a despeito dos embaçados contornos do que pareciam ser uma mesa e uma geladeira, Mello não conseguia divisar mais nada. Até, claro, uma súbita corrente de ar no seu lado esquerdo fazer todos seus sentidos gritarem para se pôr em movimento imediatamente. Ele era bastante ágil - sua baixa estatura e pouca massa corporal eram apenas uma vantagem a mais -, e se não o fosse, o cano que desceu veloz naquele exato ponto certamente o teria acertado em cheio. Ao invés, para não dizer que escapou ileso, o garoto não enxergou a caixa de ferramentas para onde tinha praticamente rolado e sentiu seu ombro esquerdo se chocar violentamente com o metal, lançando uma onda de dor pelo corpo e embaçando sua visão por um momento.

Mesmo com o ombro latejando terrivelmente, Mello não deu tempo para uma segunda investida e jogou-se para cima do homem, acertando-no na altura do estômago com o cotovelo do braço bom e, quando o maior foi forçado a dobrar o corpo para conseguir algum ar, o loiro desceu esse mesmo membro sobre a cabeça careca de Ferrers com sua força um tanto prejudicada, mas assim o suficiente para levar o homem definitivamente ao chão.

Em uma última atitude deseperada, talvez, e com forças tiradas somente do medo, ódio ou adrenalina - o que quer que fosse o responsável -, Walter Ferrers ainda tentou levar o menor consigo para baixo, segurando com suas enormes mãos o braço machucado do garoto. Mello teve que refrear um grito de dor de escapar, e com um azul cheio de raiva fazendo seus olhos brilharem no escuro ele chutou as mãos que o seguravam, quase o derrubando; o homem soltou-o imediatamente, parecendo ter usado o único fôlego que ainda tinha naquele movimento brusco.

Mello ainda chutou longe o cano que permanecia perigosamente ao alcance do mais velho, e sem nunca tirar os olhos de sua “presa”, tateou o chão próximo em busca do revólver que o ataque surpresa o fizera derrubar. Com a arma novamente segura entre seus dedos, e apressado pelo fato de Ferrers já parecer em condições de se erguer uma vez mais, pôs um fim logo naquilo.

O tiro silencioso agora não foi evitado por nenhuma brincadeira do destino, ganhando o peito do homem sem nenhum obstáculo. Os olhos já acostumados à escuridão, Mello ouvia sua própria respiração descontrolada enquanto observava atentamente os olhos da primeira vítima de sua vida.

O coração parecia se recusar a diminuir o ritmo e as mãos continuavam gélidas, agora quase insensíveis a despeito das luvas que usava, mas não tremiam mais; firmes, determinadas, assim como os olhos. Os olhos azuis, única parte do rosto que podia ser visto, olhos que quase não piscavam de tão hipnotizados que pareciam estar com os castanhos à sua frente.

Guardaria na memória aquele brilho se esvaindo, o tom pálido doentio, a boca contorcida de dor tentando articular seus sons finais, cada traço daquele rosto, cada detalhe daquela pessoa em seus últimos momentos. Guardaria todo aquele cenário durante muito, muito tempo; faria questão de não se deixar esquecer.

Porque no momento que se esquecesse, se não conseguisse mais resgatar aquela imagem que ele próprio havia causado e escolhido causar, saberia que tudo o que fizesse a partir de então não valeria nada e que o seu propósito perderia o sentido. As outras que inevitavelmente a seguiriam não importavam, mas a primeira morte pesando em suas mãos não poderia ser esquecida. Era uma transição. Agora, deixava definitivamente o seu antigo “eu” para trás.

Agora, Mihael Keehl estava morto.

Os olhos do homem cerraram-se por completo então, e o único movimento que restava naquele ao chão era o fluxo cada vez menor de sangue deixando o peito já silencioso. E Mello permanecia ali, em silêncio, olhando.

Levou devagar sua mão - ainda segurando o revólver - ao ombro latejante, e a dor do seu aperto apenas tornava tudo mais real.

Havia feito, afinal.


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