Nameless escrita por Guardian


Capítulo 16
Uma antiga ferida e um grande dane-se. Qual ganha?




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 - Ai... - Mail gemeu baixo ao tentar encontrar uma posição mais confortável para deitar naquele chão duro. Era a terceira vez que tentava, e pela terceira vez concluía que era impossível. Claro que isso não o impediria de tentar de novo dentre dez ou quinze minutos, mas enfim.

 Qualquer posição que escolhesse seu corpo doía da mesma forma, mas mesmo assim ele não conseguia deixar de tentar. Huh, como se tivesse algo a mais para fazer naquele lugar.

 Sua última tentativa de fuga foi frustrada, e o castigo por ela, severo. Nenhuma parte de seu corpo havia escapado, assim como agora não havia nenhuma parte sequer que não doesse a cada mínimo movimento. E para completar tinha sido jogado em uma espécie de quarto, onde não havia nada a não ser o chão duro, uma única janela lacrada com tábuas e quatro paredes desgastadas pelo tempo e umidade; um lugar pequeno e escuro onde, segundo os homens que o levaram até lá disseram, pudesse "refletir sobre a sorte grande que a vida lhe dera por ter a chance de se juntar ao grupo". Talvez pela forma como seu nariz coçava, denunciando toda a poeira e sujeira que ali havia, houvesse uma chance de ter pequenos roedores como companhia nessa "tarefa", afinal de contas.

 Um barulho baixo, quase indetectável se não fosse todo aquele silêncio, pôde ser ouvido vindo de um dos cantos do pequeno quarto e fez Mail erguer parcialmente o corpo, o que arrancou uma imediata reclamação de seu tronco por conta do movimento. Não tinha certeza se suas pernas conseguiriam suportar seu peso no estado em que estavam, então ficar meio deitado meio sentado era o máximo que conseguia no momento. 

 Ficou olhando fixamente para o dito canto, a despeito do olho esquerdo que mal conseguia abrir, esperando ver um rato ou outra pequena criatura qualquer surgir dali a qualquer instante. Não se incomodava muito com esses animais mesmo. Ouviu o barulho mais uma vez. Mais perto. Por sorte, os mínimos feixes de luz vindos de entre os espaços entre as tábuas da janela foram suficientes para identificar a origem do som.

 ...

 Não era um rato.

 Definitivamente não era um rato.

 "Como você é idiota! Se for para fugir, você não pode deixar ninguém olhar para você por muito tempo, nem mesmo as pessoas nas ruas, senão elas podem lembrar do seu rosto e contar pra quem não deviam" o garoto disse com a voz rouca e aproximou-se do ruivo saindo das sombras do quarto, e com um sorriso de zombaria completou "Além do mais, esses seus cabelos chamam muita atenção"

 Instintivamente Mail levou a ponta dos dedos aos próprios cabelos, se dando conta de que alguns dos feixes de luz também alcançavam o lugar onde estava.

 Sem saber o que mais fazer, ficou apenas olhando surpreso para o garoto que agora se aproximava devagar cada vez mais, quase se arrastando, mas fazendo um esforço visível para não mostrar isso. Quando parou bem à sua frente, o ruivo pôde ver parte de seu rosto, sujo e pálido, com algumas compridas mechas castanhas caindo sobre os olhos. Não parecia ser mais velho do que ele.

 - Wow, parece que eles pegaram mesmo pesado com você – o garoto comentou, sem dar importância à surpresa e confusão do outro, observando o rosto do ruivo de diferentes ângulos conforme permitia a escassa iluminação.

 - Quem...

 Mail ia começar a perguntar, mas os músculos de seu rosto estavam tão incrivelmente doloridos que achou melhor deixar por isso mesmo. Não queria parecer fraco na frente daquele estranho, e era melhor ficar em silêncio do que acabar choramingando involuntariamente.

 - Einarr. Eu sou Einarr – ele se apresentou, ainda com aquele sorriso de eterna zombaria, olhando bem fundo nos olhos verdes do outro. Mail não soube dizer se era uma impressão do jogo de claro e escuro do cômodo, mas os olhos que o encaravam pareciam possuir um tom muito curioso de... Cinza – Eu ouvi o grandão que te trouxe te chamar de Mail. É o seu nome, não é?

 O ruivo assentiu minimamente com a cabeça, confirmando, não conseguindo desviar o olhar. Então havia outros garotos ali? Como ele nunca tinha visto nenhum antes?... Era tão comum assim se usar crianças como moeda de troca...?... O mundo estava realmente decadente.

 E se um jovem que nem havia completado uma quinzena de anos de vida tinha um pensamento desses com a convicção que Mail apresentava, então talvez fosse verdade.

 - Daqui uns dois ou três dias eles devem vir te buscar – Einarr murmurava consigo mesmo, uma mão no queixo como se pensasse em uma questão de suma importância – Hm... Espero que aí eles lembrem que me deixaram aqui também.

 Mail abriu ainda mais os olhos com aquilo, esquecendo-se momentaneamente do incômodo que aquilo causava – Há quanto tempo...

 Einarr deu de ombros.

 - Sei lá. Uma semana mais ou menos, eu acho. Pararam de enviar comida depois do quarto dia, então acho que me esqueceram – e virou para a garrafa que haviam entregado ao outro quando o jogaram ali – Posso tomar um gole da sua água? A minha já acabou.

 Einarr era um garoto estranho.

 Foi a conclusão principal à qual Mail chegou nas duas semanas seguintes, convivendo e “sendo ensinado” junto com ele. O recém-conhecido tinha acertado; em menos de quatro dias os homens de O’Hare voltaram para tirar Mail dali, e pareceram genuinamente surpresos ao não encontra-lo sozinho lá. Realmente tinham se esquecido do outro garoto.

 Einarr tinha a mesma idade do ruivo, mas sua altura, a expressão constante em seu rosto e os cabelos compridos sempre presos em um rabo de cavalo, induziam o pensamento contrário. Ele nutria verdadeira repulsa pelo grupo do agiota, e apesar de não se preocupar em esconder tal sentimento, nunca tentava tomar qualquer medida para escapar deles ou mesmo para revidar na maioria das vezes que exigiam que ele fizesse algo.

 “É estupidez agir sem pensar. Quando o momento certo chegar, o momento perfeito sem nenhuma brecha de dar errado, nós vamos perceber e saber aproveitar. Até lá, não custa muito aguentar esses imbecis” era o que ele gostava de dizer sempre que algo acontecia.

 Einarr não era mais ou menos inteligente do que Mail, mas havia algo em seu modo de pensar, na rapidez com que conseguia detectar os prós e contras de uma dada situação, que provocava a admiração do ruivo. Ou talvez fosse a influência causada pela visão que Mail criara dele, de alguém que conseguia lidar de forma bem melhor do que si próprio, com aquela realidade na qual haviam sido inseridos. Por algum motivo Mail admirava a postura com traços de arrogância e a paciência pela hora certa que Einarr conseguiu manter mesmo estando há anos preso àquele grupo, tão ou mais do que o ruivo.

 Entretanto tal admiração não demorou nem um ano para ser transformada em algo disforme e sumir tal qual um punhado de poeira jogado ao vento.

 Cerca de cinco meses após o estranho encontro no quarto escuro, pela primeira vez desde que viera para aquele lugar, Mail se sentia... Bem. Não no sentido de que tinha aceitado e se resignado, mas... O desespero para escapar, a repulsa por aqueles homens, a raiva pelo seu pai, a angústia de ter suas escolhas tiradas, tudo se tornou, no mínimo, suportável. Controlável, por assim dizer.

 Estavam ele e Einarr há quase uma hora limpando e lustrando as molduras dos muitos quadros que O’Hare adorava exibir a quem quisesse ver, com extremo cuidado porque da última vez quase levaram a surra de suas vidas ao sem querer raspar a madeira no chão, quando Einarr enfim jogou seu pano para o outro lado da sala e sentou no chão e encostou as costas em uma das poltronas com alívio.

 - Devíamos mesmo é jogar tudo no fogo, isso sim – ele comentou, olhando para a lareira apagada como se considerando seriamente a ideia.

 Mail também olhou naquela direção, mas não demorou para sentir uma pequena e fofa almofada vinho sendo atacada em suas costas.

 - Vamos fazer uma aposta? – Einarr perguntou com um sorrisinho que o ruivo conhecia, e mais importante ainda, que ele sabia que devia tomar cuidado quando o via.

 Mail jogou a almofada de volta, mas esta foi agarrada antes que atingisse o rosto mirado – Que tipo de aposta?

 - Ah, nada de mais – Mail não estava gostando da forma como o sorriso cresceu – Só queria fazer algo diferente antes da gente conseguir fazer aquilo.

 “Aquilo”.

 Ah, claro. Depois de muitas conversas aos sussurros, considerações e observações, inocentes visitas aos criados-mudos de alguns dos homens de O’Hare (ou mais precisamente, às carteiras que ali eles guardavam), e dias e dias bancando os “bons meninos”, eles finalmente tinham algo para pôr em prática. Em menos de uma semana, em no máximo três dias para ser mais exato, Einarr e Mail iriam enfim sair daquele lugar.

 Simplesmente sair correndo não os levaria muito longe, como ambos já sabiam muito bem, então Einarr teve uma ideia que julgou ser a única alternativa para que, mesmo se fossem encontrados, não houvesse brecha para serem levados de volta. O moreno estava absolutamente confiante na sequência que montou mentalmente, e o ruivo confiava nele.

 - Nós ainda temos que pegar os últimos “itens”, certo? – Einarr voltou a falar – Vamos ter que ir os dois, de qualquer jeito.

 - Eeee?

 - E que vamos ver quem vai mais rápido. Já que é pra fazer isso, que seja ao menos divertido! – sinceramente ele não via graça nenhuma em uma aposta como aquela, mas tinha certeza de que iria ganhar, e não importava que tipo de aposta fosse, no final das contas, podia ser qualquer coisa idiota; estava mesmo era interessado no desfecho que ela teria – O ganhador tem o que quiser, desde que não seja algo impossível para o perdedor. O que acha?

 Mail não estava muito interessado naquilo, mas o prêmio era interessante – O que quiser?

 - O que quiser.

 E os dois sorriram enormemente, cada qual imaginando muito bem o que pediriam quando ganhassem. Porque nenhum deles achava possível perder, afinal.

 Seria muito simples, havia os últimos preparativos antes de irem embora, apenas pegar algumas poucas coisas, como roupas para disfarce e pequenos itens que consideravam necessários. A questão era então quem seria o primeiro a conseguir fazê-lo.

 Azar ou sorte, o ganhador foi Einarr.

 - Ah, droga! – reclamou Mail, jogando-se inconformado na cama destinada a ele no que costumavam chamar de “quarto”. Virou um olhar receoso para o outro, temendo um pouco o que a mente de Einarr pudesse ter planejado para ele – Tá legal, o que é que eu tenho que fazer?

 A resposta o confundiu, mas mesmo assim ele obedeceu. Não tinha escolha e não podia discutir, certo?

 “Não se afaste”.

 E então o moreno se aproximou de forma lenta, quase hesitante, e logo estava frente a frente com o ruivo. Este se sentia um pouco incomodado com a expressão do amigo, porque esta era a primeira vez que não havia qualquer vestígio do sorriso zombeteiro ou do brilho de raiva oculta nos olhos acinzentados. Mas mesmo assim ele obedeceu e não se afastou.

 E o que se deu a seguir foi a última coisa que ele esperaria.

 Ele teria fechado instintivamente os olhos, se o choque não tivesse sido tão grande. Então ao contrário disso, ele os manteve bem abertos, arregalados, conforme sentia os grossos lábios do moreno encostarem-se nos seus, devagar, como se primeiro estivesse testando, para só depois mostrarem-se mais confiantes do que faziam ali, não dando-lhe espaço sequer para produzir qualquer som. Foi preciso bem mais do que o tempo que os dois estiveram ali para Mail processar realmente o que era aquilo. 

 Com um sorriso então, um diverso do que ele sempre mostrava, o moreno falou como se fosse a coisa mais óbvia e simples do mundo:

 - Eu queria saber como era – e com um lampejo rápido de hesitação, perguntou – E então, como foi?

 Como...? Mail não sabia o que responder. Quer dizer, não tinha sido ruim. Pelo contrário... Ainda sentia um formigamento curioso nos lábios, e se não tivesse sido tão de repente, provavelmente puxaria o outro para repetir, mas...

 O que era aquilo que estava sentindo?

 ...

 ...

 ...

 Semanas após as cenas aqui narradas, com o plano de fuga já há muito posto em prática, alcançamos a cena que talvez tenha sido a que mais marcou nosso querido ruivo até os dias atuais. O que aconteceu neste interim ficará para outra ocasião. Agora, o que nos interessa é que em um quarto pequeno de um prédio residencial de baixa renda, um jovem garoto ruivo era lentamente encurralado no velho sofá de três lugares em um dos cantos da apertada sala.

 Olhava desesperado de cada um dos quatro homens e destes  para o companheiro que se mantinha um passo atrás dos mais velhos, com o rosto sem em nenhum momento desviar do chão que fitava. Mexia os dedos sem parar, como se estivesse nervoso.

 - Eu sinto muito, Mail. Mas eu... Eu quero ser livre, e... E eles me prometeram. Eu sinto muito...

 Foram as únicas palavras que ouviu ante do outro lhe virar as costas e desaparecer pela porta do velho apartamento, como se o ruivo não fosse digno sequer de receber um último olhar. “Talvez não seja mesmo” ainda pensou antes de um dos homens o erguer forte pelo braço.

 Aquela havia sido a última vez que Mail tentou fugir do agiota. Talvez apenas estivesse cansado demais para tentar de novo, talvez ele tivesse começado a pensar que, afinal, tanto do lado de fora quando do de dentro, não havia nada além de decepção, mágoa e traição esperando por ele. Ele era uma criança. Mas jamais voltou a pensar como uma.

 “Eu não costumo dividir o que é meu”.

 Foi o que Mello havia dito. O quanto dessas palavras era verdadeiro? E por que haveria algo a se confiar ali? Foram os primeiros lampejos de consciência que passaram por Mail, mas ele rapidamente os soterrou bem fundo em sua mente.

 Dane-se, dane-se, dane-se, dane-se, dane-se, dane-se, dane-se!

 Não queria pensar, não queria conjeturar, algo dentro dele pedia desesperadamente para não duvidar. Quando foi que se manter alheio e fechado havia se tornado tão pesado? Aquela estranha certeza que o loiro havia lhe passado ainda estava lá, e o ruivo não queria que ela desaparecesse, não quando ela parecia proporcionar-lhe aquela sensação tão... Quente. Se fosse para a história se repetir, então que quando acontecesse houvesse ao menos algo maior para se arrepender e amargurar.

 O loiro fez menção de se afastar, mas Mail não deixou. Desta vez foi ele aquele que puxou o outro e iniciou o beijo. Deslizou a mão pelos fios longos e embaraçou-os entre os dedos, e foi retribuído com uma forte e incentivadora mordida no lábio inferior. Havia uma briga de dominância ocorrendo ali, e ele lentamente perdia, mas estava longe de se importar. Ao contrário, ele cada vez mais prolongava tal batalha, às vezes mantendo-a próxima a um empate, apenas para não deixa-la  alcançar seu fim.

 Masoquista, estúpido, descuidado, não importava qual adjetivo se encaixasse a ele no momento.

 Porque ele nunca sentira tal necessidade por chocolate quanto agora. E não havia chocolate como aquele em nenhum outro lugar.


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Notas finais do capítulo

Eu queria colocar logo um pouco sobre o passado com o Einarr, principalmente o motivo do Matt ter ficado daquele jeito depois do primeiro beijo do Mello, pra mostrar que ele realmente confiava e gostava do outro garoto. O "meio" que ficou faltando, da fuga deles, fica pra outro capítulo ~
O primeiro passo foi dado. Ele está começando a tomar a iniciativa hehe
E então, o que acharam? :3