Panem, O Décimo Quinto Jogos Vorazes escrita por Alberto Tavares


Capítulo 9
Reviravolta


Notas iniciais do capítulo

Enfim as peças trocam de lugar, está na hora deste jogo de xadrez ser jogado por um profissional. Mas será que será um jogo limpo?



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Catem está ao meu lado deitada comigo numa cama de folhas verdes e flores amarelas de primrose. Estamos imóveis, meu peito está completamente parado, a mesma coisa em Catem. Não consigo sentir a respiração indo e vindo. Não posso dizer se estou ou não morto, só sei que tenho sentidos suficientes para sentir que Catem está se levantando calmamente, com uma faca em mãos. Ela olha para mim e enfia a faca em meu ombro esquerdo, sinto a ardência chegando e me matando. Mas estou tão imóvel que não consigo gritar de dor.

Quando acordo o sol já está indo embora. Há quanto tempo estou dormindo? Presto atenção no local onde eu estava deitado. É plano e sem nenhum furo, o céu aberto em minha cabeça me diz que estou em mais algum telhado. Não consigo avistar nenhum sinal de Mihairl ou Gullar Gull. Graças a Deus eu também não vi nenhum sinal de Mikla.

Me apoio no braço para visualizar o solo lá embaixo, mas sou tomado por uma dor imensa que parece corroer todo o meu corpo dos pés à cabeça. Meu ombro destruído está aberto e sem nenhum vestígio de lâminas derretidas. Mas o rasgo é tão profundo que não consigo ficar olhando por muito tempo.

O que está acontecendo aqui? Onde estão os meus dois aliados tributos? Onde estão todos os tributos?

Só então que dou conta que estou olhando para o além da arena. Logo depois da floresta de pinheiros que cobre toda a cidade, uma grande quantidade de montanhas azuladas e cobertas de neve dá a impressão de que a arena deve ser infinita. Com alguns dias de caminhada, talvez até dois, eu consiga chegar até o as montanhas. Quem sabe não encontro uma saída pra lá?

Então eu escuto. O hino de Panem toca e as imagens dos tributos mortos começa a passar no alto do céu estrelado.

O garoto do quatro; a garota do cinco; os dois do seis; a garota do sete; o garoto do oito; a garota do nove; a garota do dez; os dois do onze; o garoto do doze.

Onze mortos. Agora tenho certeza de que estamos ainda no primeiro dia, no qual o banho de sangue deu inicio da cornucópia. Ainda temos treze tributos vivos, dentre eles sei que estão vivos: Mikla, Mihairl, Catem, Neil, Gullar Gull, Elena e Jarl.

Uma onda de alegria corre por meu corpo, Catem ainda está viva. E Neil também. E eu estou vivo.

Como este dia foi cumprido. Só hoje eu passei por várias desenvolturas, cheias de sangue e desmaios. Não agüento mais desmaiar, prometo a mim mesmo que os desmaios vão parar neste momento. E da próxima vez que Mikla, Elena e Jarl aparecerem em minha frente, vou matá-los.

O katar está logo ao meu lado, junto com o arco e a aljava. A minha mochila também está aqui, com todos os meus pertences dentro dela. De uma coisa eu sei, Mihairl e Gullar Gull são confiáveis ao bastante de deixar todas as minhas coisas comigo. Mas será que estão apenas tentando ganhar minha confiança para no final me matarem quando eu estiver mais desprevenido? Mas porque não me matam agora? E onde estão eles afinal?

Deito novamente e olho para as estrelas. Uma delas está tão próxima que quase consigo pegá-la. Estico meu braço com a expectativa de conseguir agarrá-la e sumir deste mundo, morar nas estrelas. E quase tenho um ataque de epilepsia quando eu consigo agarrá-la.

O pára-quedas tem um pequeno recipiente fechado. Minha primeira dádiva.

– Obrigado, Marco – digo tão baixo que me pergunto se as câmeras conseguiram me captar.

Sento novamente e seguro o pote com os pés enquanto desenrosco a tampa com a mão esquerda com o maior cuidado possível, pois o meu ombro destruído dificulta meus movimentos com o braço.

O pote está até a metade com uma espécie de seiva, ou néctar. No mesmo momento percebo que é um remédio para o meu ombro. Com as pontas dos meus dedos cavo um pouco da seiva e vou inclinando o braço para perto do machucado no ombro. O talho é tão profundo que consigo penetrar todas as falanges distais dos meus dedos médios dentro da ferida. No principio a dor é insuportável, mas conforme vou massageando a carne morta dentro da ferida a dor vai sumindo, e até um pouco do que sobrou da lâmina derretida – agora seca – está saindo junto com a dor.

O poder curativo da seiva é incrível, decido guardar o resto dentro da mochila se algo de ruim acabar acontecendo. Então, com um pouco do tecido da minha roupa, faço um curativo um tanto aceitável e o cubro com seiva.

Não estou com sono e nem com vontade de ficar confinado naquele telhado a noite inteira, então, se Mihairl ou Gullar Gull estão em algum lugar por aí, que fiquem. Eu vou tentar ficar o máximo possível longe deles.

Depois que chego à rua, saio perambulando o mais silenciosamente possível, com o katar na mão e o arco preso no meu ombro. A aljava, o odre e uma das quatro facas estão presos ao meu cinto. Não encontro nenhum tributo, nem um animal sequer. Nem frutos ou algo parecido. Bebo um gole de água do odre e continuo a caminhada.

Minha idéia é caminhar para o mais próximo daquela montanha nevada, se eu conseguir chegar lá vou ter a chance de ficar o mais longe possível dos outros tributos e eles podem se matar até que apenas eu sobre. Isso se meu machucado não acabar infeccionando e eu acabar morto primeiro que muitos outros tributos.

No inicio a caminhada parece longa, até que escuto as vozes:

– Só faltam treze e então acabou – alguém diz. Escondo-me atrás de uma árvore estrategicamente colocada perto da entrada da casa ao lado, onde alguém estava conversando.

– Só mais treze – diz outra pessoa, dessa vez com a voz feminina.

Não são as vozes de Mihairl ou de Gullar Gull, muito menos de Catem. Me estreito para mais perto da casa onde os dois estão conversando.

– Não temos muito tempo, Fionna, temos que sumir daqui antes que nos matem. Vamos para as montanhas, deixar que eles se matem. – diz o garoto. Consigo vê-los pela janela, de primeira não os reconheço, mas então eu me lembro. Os dois Carreiristas do Distrito 2.

– Se sumirmos daqui, fugir para as montanhas, e apenas um tributo sobrar vivo aqui no centro da arena, como acha que os Jogos vão acabar, Felix? – diz a garota, que deve se chamar Fionna. – Se nos isolarmos dos outros, uma hora ou outra eles vai apenas sobrar um, e então vão vir atrás da gente, de nós dois. E se um deles nos encontrar?

– Matamo-lo – Felix diz.

– E depois? – Fionna parecia muito preocupada por algum motivo. Felix não consegue prosseguir com a pergunta da sua companheira.

– Depois vamos sobreviver aqui, para sempre. – Ele diz.

O beijo que vem a seguir parece levá-los à loucura. Vejo que um pára-quedas caiu bem próximo ao casal, uma dádiva de aspecto incomum. É muito grande.

– Abre – diz Fionna.

Felix obedece.

Não! Não! NÃO! Não pode ser. Aquilo não. Aquilo não.

Vejo o garoto do Distrito 2 soltar um sorriso enorme, a garota também o imita. Ele parece muito feliz em receber a dádiva. A minha dádiva. A MINHA DÁDIVA.

Meu braço direito feito de aço de aerodeslizador parece servir direitinho como luva para o garoto do Distrito 2. Vejo que ele está adorando a idéia de ter aquilo como dádiva. Mas como ele conseguiu isso? O meu braço?

Com certeza os Idealizadores dos Jogos que mandaram a ele, aproveitando a hora em que eu me arrastei até eles. Uma forma de me deixar eternamente irritado, de atacá-los.

Fazer o que? Instinto primitivo.

Jogo-me contra a janela e vejo a cara de espanto dos dois tributos. Felix tenta me acertar com o meu braço, mas é parado com o golpe do meu katar. Jogo todo o peso do meu corpo contra o garoto e o vejo caindo no chão. A garota, Fionna, me agarra por trás com uma faca afiada nos punhos, mas meus reflexos são mais rápidos e ligeiros. Com o katar nas mãos, jogo a garota contra a parede da casa e ela cai no chão sem fôlego. Felix já está de pé quando me viro para ele, prestes a me dar um soco de aço na mandíbula e quebrar todos os meus dentes, mas o modo como eu me desvio e bato sua cabeça na parede faz com que ele pare rapidamente, com uma goteira sangrenta em sua nuca.

Seu olhar zonzo não me comove, meu instinto vingativo está apenas no inicio. Ele não tinha o porquê de estar com o meu braço, não tinha. Lembro de quando era mais jovem, da época que Catem e eu dançávamos na escola mesmo sem nenhuma melodia, no qual cantávamos musicas horríveis com nossas vozes horríveis. A época em que perdi meu braço. Ela tinha me dito:

– Não coloque o braço bom dentro do braço de ferro – eu ainda estava me recuperando do grande machucado. – Se você colocar, não pressione nenhum dos botões. Eles estão ligados aos movimentos do seu braço quando ainda existia. Se você colocar seu braço dentro do braço de ferro e apertar os botões, vai acabar morrendo porque seus neurônios vão pifar, literalmente. E vai levar uma descarga elétrica tão grande que não vai nem conseguir suportar meio segundo antes que seu coração pare de bater.

Sem piedade, pressiono os três botões de uma vez, nem ligando para a ordem na qual eu precisava apertá-los. O garoto do Distrito 2 só tem tempo para gritar o nome de sua aliada antes de queimar vivo com todos os circuitos fritando seus miolos. O canhão explode ao longe, Fionna olha diretamente para seu amado com dor e lágrimas nos olhos, depois vão diretamente para mim. Só tenho tempo de tirar o braço de ferro de dentro do braço do garoto antes que aconteça.

A fúria que cresceu dentro da garota é tão grande que mal vejo seus movimentos. A faca está apertando minha bochecha, mas ela não consegue continuar o golpe, pois sua barriga foi completamente perfurada pela lâmina do meu katar. Ela solta a faca e desaba no chão, inerte. Mais um tiro.

Agora só faltam onze tributos vivos.

O aerodeslizador surge e pega Felix, segundos depois um outro pega Fionna. Sento e analiso todo o estrago que fiz.

Meu katar está ensangüentado, decido guardá-lo na bolsa para fins futuros. Minha roupa está toda molhada de sangue, não me importo muito com este detalhe. A euforia toma conta de mim e a primeira coisa que eu faço é colocar meu braço mecânico para funcionar. Aperto os botões na ordem correta e então sinto todos os dedos antes invisíveis se mexerem. Um sorriso surge em meu rosto. Tenho tudo para vencer neste momento.

Não tenho mais forças para continuar andando, minha luta com os dois tributos me deixou inteiramente cansado e com nós nos dedos. Procuro alguma coisa que os dois Carreiristas possam ter conseguido na Cornucópia e vejo eu eles apenas tinham um pouco de amoras e a faca que estava com a garota, só que a faca foi junto com o aerodeslizador para sei lá onde.

Como as amoras até que não sobre nenhuma, ponho o ouvido no chão para escutar se a água está subindo, mas não está. Tenho um pouco de receio em dormir naquele lugar, então venço a dor nas pernas e subo um lance de escadas e me jogo em um lugar qualquer no canto de um quarto vazio.

Sou tomado por um sono tão forte que não consigo resistir ficar lutando contra ele. Durmo abraçado com o meu braço de aço.

Quando eu acordo, o dia está ensolarado e extremamente quente, o chão está fervente e não consigo ficar nem mais um segundo deitado. Vou direto para as escadas e desço calmamente até chegar à porta de entrada. A janela que eu quebrei está de alguma forma, coberta de sangue, olho para minhas mãos e as vejo cheias de cicatrizes. Talvez a seiva, que inda se encontra resíduos em minhas mãos, tenha curado os cortes no mesmo instante que eles foram produzidos.

Saio para fora e vejo que o sol é tão forte que transformou uma pequena camada do asfalto em uma espécie de caldo grosso e preto que gruda na sola de borracha das minhas botas. Não ligo muito para isso, quando chego num gramado, a primeira coisa que faço é limpar o calçado.

Está tudo muito silencioso pro meu gosto, como se alguma coisa ruim fosse acontecer. Tento não dar essa impressão aos Idealizadores dos Jogos, de alguma forma, quero que aconteça. Tenho tudo sobre controle agora, tenho meu braço de volta. Tudo pode acontecer que dessa vez eu vou virar o jogo. Deixo escapar um risinho, o que me entrega logo de cara.

O chão começa a tremer e não consigo ficar de pé. Tudo parece estar literalmente girando, de forma que meu cabelo voa em todas as direções possíveis e impossíveis. O terreno está deitando alguns metros na minha frente, vejo todas as árvores entrando no chão, retornando de seu estado de evolução, voltando a serem minúsculas sementes espalhadas por toda a parte. Meus pés não conseguem ficar parados, é como se eu estivesse em cima de uma cama elástica com centenas de pessoas pulando nela. Fecho os olhos com força, sabendo que vou morrer, e quando abro…

A arena foi completamente modificada, não existe mais cidade, não existem mais prédios ou garagens. Estamos todos os tributos, dentro de uma densa floresta cheia de sabugueiros, parreiras, salgueiros, oliveiras e pinheiros. Bem na minha frente um rio imenso e muito agitado se encontra com várias pedras de granito em volta dele. Meus olhos parecem estar me pregando peças. Vou até a beira do lago e pego um pouco da água. É boa e completamente limpa. Encho o odre quase vazio e me empanturro de água. Não vejo nenhum sinal dos buracos no chão. Talvez a arena tenha realmente sido completamente alterada. Será que o público não estava tão interessado em ver como os tributos estavam chatos dormindo em uma cidade vazia e “pacífica”?

Não sei responder nenhuma dessas perguntas.

– Edric! – escuto a voz de alguém desesperado. – EDRIC!

Meu coração dispara, como se uma espada gelada perfurasse a boca do meu estômago.

É a voz de Catem.


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Notas finais do capítulo

Quanta adrenalina nesse capítulo.



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