Capítulo 3

   - Senhorita, Lorde Regan chegou. – Lyona ouviu a voz um pouco abafada de Meredith pelo outro lado da porta.

   Tirada abruptamente de dentro da história que lia, Lyona colocou de lado seu livro e levantou-se da cama. Olhou mais uma vez no espelho e sorriu para si mesma ao constatar que estava perfeita. Usava uma camisa muito folgada branca, calças de montaria e botas de couro pretas. É claro que, para uma cavalgada durante a tarde com Logan Regan, sua vestimenta era completamente inadequada, mas ela não estava exatamente procurando chamar sua atenção usando vestidos de seda com enormes decotes. Sem contar que usar um vestido iria obrigá-la a utilizar a sela lateral, o que considerava desconfortável e tirava toda a graça da cavalgada.

- Estou indo! – Ela respondeu, correndo até a porta de madeira e abrindo-a. Dessa vez, foi com grande satisfação que viu o olhar desaprovador de Meredith olhando-a de cima a baixo.

- Lady Lyona, o que significa isso?!

- Ora, são roupas para cavalgada! – Ela olhou com um olhar inocente para o rosto da mulher idosa.

- Sim, uma roupa adequada para a cavalgada de garotos do estábulo! Troque de roupa imediatamente, não permitirei que seu pai a veja assim para um compromisso dessa magnitude!

   Claro, sempre seu pai.

- Mas, Meredith, você mesma disse que Lorde Regan acaba de chegar. Nas minhas lições de etiqueta, eu lembro claramente que a senhora me disse que nada é mais indelicado do que deixar alguém de alto status esperando, certo?

   Mais uma vez, teve o privilégio de ver a expressão de choque e raiva no rosto da velha interesseira. O choque muito provavelmente por ela ter realmente assimilado algo de sua aula de etiqueta.

   Na falta de uma resposta, ela rapidamente emendou: - Foi o que eu pensei. Agora vamos. Não quero deixar Lorde Regan esperando nem mais um segundo. – Sem esperar resposta, ela começou a andar pelo corredor até atingir as escadas, sem nenhuma vez virar para ver se Meredith a seguia. Ainda conseguiu ouvir alguns resmungos como: “Irresponsável” ou “... com o próprio noivo.”

   Ao chegar ao salão principal, Lyona olhou pela pequena abertura da porta para ver os convidados. Seu pai estava ao lado de sua mãe, os dois conversando cordialmente com Grace, Alexander e Logan enquanto esperavam Lyona. Todos vestidos pomposamente, com roupas coloridas para mostrar seu poder.

   A ruiva foi atingida por uma repentina insegurança. Suas “belas vestimentas” eram destinadas à Logan, não a todos os membros das duas famílias. Ela não poderia se importar menos sobre a opinião de Grace e Alexander, porém, detestava decepcionar a mãe e, com certeza, seu pai ficaria furioso. De seu jeito frio e calmo de sempre, mas ficaria.

   Ouviu passos atrás de si e constatou que era Meredith quem corria para entrar no salão junto a ela. Tarde demais para mudar de ideia.

   Com três leves toques na porta, ela entrou.

- Olá, senhores. – Ela fez uma ligeira reverência. Pelo menos este detalhe da etiqueta ela cumpriu. – Estou pronta para ir.

   Todos os olhares viraram-se para ela imediatamente. Ela encarou-os um a um, tanto para saber suas reações quanto para não mostrar fraqueza. O olhar de Alexander e Grace Regan eram, claro, de completo desagrado. Lyona achou difícil segurar o pequeno sorriso que ameaçava escapar. O olhar do pai de Lyona era frio, como ela imaginou. Não demonstrava nada, porém, ela apostava sua espada ainda em fabricação que não havia nada mais que ele gostaria de fazer do que gritar com ela. Logan foi um pouco mais sutil em sua decepção, que foi apenas uma olhada em suas roupas, um quase imperceptível franzir de lábios e logo um sorriso simpático. Bom. Ela teria um bom momento fazendo-o desistir da ideia de se casar com ela. A única pessoa para que Lyona não conseguiu olhar foi sua mãe. Ela já sabia que tipo de emoção encontraria em seus olhos cinzentos.

- Olá, senhorita Lyona. Passou bem o dia? – O garoto de cabelos loiros perguntou, sorrindo.

- Sim, meu dia foi magnífico, Lorde Logan. O seu?

- Não poderia ter sido melhor. – Deu-lhe um sorriso sugestivo. Ela lutou com todas as suas forças contra a ânsia de virar os olhos. – Podemos ir? – Ele olhou para os pais.

- Sim, claro.

   Como era de costume, as senhoras ficariam na torre para conversar, enquanto os Lordes acompanhavam os filhos. Era claro que, enquanto Lyona e Logan cavalgavam, eles iriam discutir mais detalhes sobre o casamento.

   Ao sair da torre, eles caminharam até o estábulo para escolherem os cavalos. Lyona logo se animou ao sentir o cheiro de feno e ouvir os relinchos, e, por um segundo, se esqueceu sobre o que era essa cavalgada.

- Qual é o garanhão mais forte daqui? – Logan perguntou ao cavalariço.

- É Borak, senhor. O cavalo da última baia.

- Quero este.

- Senhor, ele ainda não foi completamente domado. Ele é capaz de fazer pequenos percursos com alguém montando-o, mas se recusa a ser cavalgado por muito tempo.

- Não importa, comigo ele se portará bem. – Ele mais uma vez deu aquele irritante sorriso confiante.

   Suas intenções de parecer mais homem seriam menos óbvias se ele simplesmente levantasse a manga de sua roupa e mostrasse seus poucos músculos. Não intencionalmente, os pensamentos de Lyona vagaram para uma ferraria, mais especificamente para um aprendiz de ferreiro. Lembrou de como seu corpo era forte e moreno e como seus olhos brilhavam à luz do fogo. Nem com todo o treinamento do mundo Logan ficaria igual a ele.

   Ao perceber o rumo de seus pensamentos, ela rapidamente chacoalhou a cabeça para afastá-los. Nem sequer sabia o nome dele! Para esquecer o assunto, ela foi até a baia mais próxima, para a égua branca com manchas pretas.

- Olá, Amazon. – Acariciou sua fronte. – Senti sua falta.

   Amazon encostou o focinho em sua bochecha e deu um leve relincho. A égua foi dada de presente quando Lyona ainda era uma criança. Na época, Amazon não passava de um potro, mas que crescera junto a dona. Não havia nenhum cavalo naquele estábulo em que ela confiasse mais do que nela, e ela tinha certeza de que a égua dificilmente permitiria outro cavaleiro além da própria Lyona.

   Ela mesma selou a égua, tirou-a da baia e deu-lhe uma maçã enquanto esperava o cavalariço terminar de selar Borak. O garanhão era negro com o fim das patas brancas, um espécime raro que seu pai comprou mais para ter um belo cavalo do que realmente para cavalgar. Os homens que trabalhavam no estábulo se encarregaram de adestrá-lo, porém, Lyona aparecia quando podia para dar maçãs, acariciar quando ele permitia e até mesmo conversar. E mesmo ela deveria manter distância quando Amazon estava no cio, pois Borak ficava extremamente agressivo. Seria divertido ver como Logan lidava com ele.

   Eles saíram e se dirigiram para a parte sul do muro, que separava a torre de um grande bosque. Os guardas viram seu Lorde e abriram o portão.

   Cinco minutos de caminhada depois, chegaram a um trecho tranquilo, com árvores bastante espaçadas e um riacho.

- Pararemos aqui. – Lorde O’Carrol declarou – Lyona, você e Logan tem permissão de ir até o lago. Se não voltarem em uma hora, iremos buscá-los. – Ele se virou e começou a conversar com Alexander.

- Quer ajuda para montar? – Logan se aproximou quando viu que ela iria subir no cavalo.

- Não há necessidade, muito obrigada. – Ela fez um movimento gracioso ao passar a perna direita por sobre a égua e facilmente se sentou na sela – E você? Quer ajuda para montar?

   Ele fez uma careta: - Sou mais que capaz de montar sozinho, obrigado. – Ofendido por sua masculinidade ter sido posta à prova, ele foi até Boak e montou-o com a mesma facilidade. Ela tinha que admitir, ele tinha jeito com cavalos. Mas por quanto tempo?

   Ele trouxe Borak para seu lado e eles começaram a cavalgar vagarosamente seguindo o fluxo do riacho.

- Devo ser honesto, você me surpreendeu com sua escolha de roupas para o passeio.

   Ele olhava para a frente, mas Lyona viu sua expressão de curiosidade e desagrado.

- Não gosto de vestidos. Eles nos obrigam a usar a sela lateral. – Ela não diria que a vestimenta era especialmente para ele.

- Mas selas laterais são elegantes. Elas dão uma aparência mais feminina, não acha?

- Sim. – “Então por que não usa uma?” A ruiva quase soltou esse pensamento insolente.

   Mais tempo com um silêncio pesado. Ela nem tentou achar algum assunto.

- Bom... Como você está? Ouvi Meredith comentar que se sentia um pouco indisposta hoje.

   Velha linguaruda. Ela com certeza percebeu a falta de vontade de Lyona em acompanhá-lo e comentou algo com seu pai.

- Sim, estou bem. Eu tive apenas uma pequena febre, mas já estou melhor. – Ela mentiu.

- O que aconteceu?

- Algumas crianças brincavam perto do portão e eu saí na chuva para mandá-las sair. – Lyona detestava falar do povo de Cnoc como uma inconveniência, porém, apenas para desviar os pensamentos de Logan de sua falsa febre, ela fingiu.

- Esses pirralhos! Não passam de pragas, não concorda? Todos os que chegassem perto demais das Torres deveriam ser castigados. Creio que o rei Brandon fez uma boa decisão ao enviar um grupo para recolher esses inúteis para transformá-los em algo quase úteis. Em uma vila consideravelmente distante como Sheehan e por quase 6 meses. Quanto menos deles em Cnoc melhor. Felizmente para nós, ouvi dizer que o grupo passará pela vila em uma semana.

   Ela o olhou friamente: - O que te faz pensar que, quanto menos plebeus, melhor? Não sei se tem consciência disso, mas o dinheiro que gastou para comprar essas roupas de seda que está usando vieram das “pragas”.

   Ele corou e ela viu seu olhar irritado. Achando que tinha ido longe demais, ela disse:

- Peço desculpas. Eu apenas me envolvo muito quando o assunto é o povo. – Ela não queria a amizade de Logan, porém, não poderia criar um inimigo. De outra forma, poderiam haver disputas cada vez mais acirradas entre a Torre Norte e Torre Oeste.

   Ele, claramente ofendido, deu um brusco aceno com a cabeça e acelerou um pouco os passos de Borak para andar um pouco à sua frente. Alguns minutos de silêncio.

   Por um longo tempo, até alcançarem o lago onde o riacho desembocava, eles cavalgaram apenas escutando o canto de pássaros, os passos dos cavalos e o riacho fluindo. Lyona achava difícil acreditar que poderia haver algum momento de paz na presença de Logan, mas em silêncio ele poderia ser uma boa companhia. Porém, nunca um bom marido.

   Atingida pela imensa paz do bosque, ela tentou: - Sempre fui curiosa sobre isso. Enquanto nós mulheres temos lições sobre costura e artes, os homens têm que tipo de lições?

Ele virou-se para ela um tanto surpreso e respondeu:

- Bom, costumamos ter aulas de estratégia, geografia, história, armas e cavalgadas. Mas isso pode variar de família a família.

   Soava tão mais interessante. Quase como se lesse sua mente, Logan acrescentou:

- Nada que soe muito interessante para uma senhorita tão bonita e bem criada como você, Lyona. Tenho certeza que você será uma ótima esposa.

   Ele lhe deu um sorriso tão animado que ela sentiu pena por ele. Olhando-o assim, era quase difícil acreditar que ele havia dito coisas terríveis sobre os camponeses. Não que Lyona o culpasse – não completamente pelo menos. Com os pais que tinha, ele provavelmente não tinha muitas boas referências.

- Bom, sobre isso, Logan... Há um problema.

- O que aconteceu?

- Eu... mesmo depois desse passeio, eu não acho que nós devemos nos casar. – Era melhor deixar tudo às claras de uma vez.

- O que você quer dizer? Você ainda não se acha apropriada para ser minha esposa? Mas é claro que é! Não existe uma garota nobre tão bonita como você em toda Cnoc!

   Então era sobre isso que se tratava?

- Então, se Alyssa fosse mais bonita que eu, seria com ela que você se casaria?

- Claro que não! – Ele ainda teve a coragem de fazer uma expressão de choque. – Alyssa tem apenas 6 anos! Não precisa ter ciúmes.

   Lyona perdeu a paciência.

- Eu não estou com ciúmes! Apenas não quero ser a esposa de um maricas que não tem força nem para segurar um arco como você!

   Para pontuar sua declaração, Borak, que já havia chegado ao seu limite de cavalgada, se empinou repentinamente e jogou seu cavaleiro para trás. Para sorte – ou azar – de Logan, havia apenas um grande lago atrás.

   O som de um corpo caindo na água soou tão alto no silêncio do bosque que parecia ter sido ouvido pelas quatro Torres. Enquanto Logan tentava se recuperar da queda, Borak relinchava e pisoteava o chão com força, quase como se estivesse rindo.

   Lyona soltou um um pequeno riso discreto, mas este não passou despercebido por um Logan já bastante irritado.

- CHEGA! Eu não quero uma esposa mal comportada como você! Além de ser insolente, é burra e, pelo que ouvi dos Duffy, tem uma pré-disposição a atividades de homens! – Ele disse aos berros enquanto saía da água. – Pensei que eu poderia colocar rédeas em você! Seria bom para minha reputação domar a garota bonita, mas você é mais selvagem do que parece!

   Lyona empalideceu. Nunca esperava tal reação do tão educado filho dos Regan, mas parecia que ele era mais filho de sua mãe do que de seu pai. Segundos depois, seu rosto ficou quase da cor de seus cabelos. Mal podia conter sua raiva.

- Fico feliz de me achar uma selvagem! Se o meu comportamento é o que você chama de não civilizado, eu realmente gostaria de saber como vocês chamam o seu!

- Ora, sua...! – Ele tentou puxá-la de cima de Amazon, mas a égua se empinou. Com os bons reflexos que tinha, Lyona conseguiu se segurar, mas Logan foi empurrado para o lago novamente.

   Não querendo perder essa oportunidade, a garota pegou as rédeas de Borak e cavalgou até o muro da Torre. Escolheu um caminho no qual não seria vista pelo pai e nem por Lorde Alexander. Que encontrassem Logan tremendo de frio e sozinho no lago dali a 30 minutos. Mas ela deveria estar longe quando isso acontecesse.

**********

   Ouviu passos firmes e fortes e logo sua porta se abriu com um estrondo absurdamente alto.

- O QUE ACONTECEU?

   Lorde Peter O’Carrol estava parado na porta de seu quarto com um olhar quase assassino no rosto. Ela nunca havia visto seu pai tão alterado. Sua mãe estava atrás dele com a mão apoiada em suas costas como para acalmá-lo.

- Do que você está falando? – Ela perguntou com uma voz desentendida.

- Não se faça de engraçadinha comigo, Lyona! Você sabe perfeitamente bem do que eu estou falando! Estou falando sobre Logan Regan ser achado sozinho no lago, praguejando sobre o quanto você é uma selvagem e que nunca se casaria com uma insolente como você! – Ele gritou. Sua fúria era tanta que até cuspia enquanto falava. Seus olhos estavam arregalados e suas narinas dilatadas.

   Lyona internamente tremia de medo. Ela já havia presenciado ataques de raiva de seu pai, mas não naquela intensidade e nunca direcionados a ela. Mas ela nunca mostraria a ele.

- Não é minha culpa. Nós temos ideias diferentes do que é civilizado ou não, pai. Além do mais, ele mesmo me disse que se casaria comigo apenas para aumentar seu status de poder.

- E qual parte disso você não sabia desde o início?! Você sabe que seu casamento é apenas uma conveniência para uma aliança, e mesmo assim você aceitou! Eu exigo que cumpra sua palavra!

- MINHA PALAVRA? – Ela explodiu, vermelha de raiva – Em nenhum momento eu tive voz nesse acordo! Você simplesmente decidiu que eu me casaria com um garoto esnobe e mimado por conveniência e me avisou no mesmo momento que a todos os outros! Não sei por que ainda me surpreendo com isso. Você sempre foi assim, nunca se importou com nada além de si mesmo! É capaz de vender a própria filha por um acordo de paz que nunca daria certo e para garantir a própria segurança durante uma guerra já perdida!

- Silêncio! – Ele gritou – Não admito que fale comigo neste tom na minha casa!

   Lyona, porém, já havia ido longe demais para parar.

- Aposto que, se a oportunidade surgisse, venderia até a mamãe por um bom saco de moedas!

   Um som de estalo alto se ouviu e Lyona sentiu uma forte dor na bochecha esquerda. Ela ouviu o ofego da mãe e de Meredith que havia aparecido para ver o motivo dos gritos.

   Por vários segundos, só se ouviu o barulho das respirações pesadas de Lorde O’Carrol e o choro baixo de sua mãe.

   Ela não podia chorar... não podia chorar...

- É suficiente. – Lorde O’Carrol adotou seu tom frio rotineiro e olhou para ela como se fosse mais uma empregada na torre. – Em uma semana, você irá para Koning aprender boas maneiras. Quem sabe a cidade do próprio rei a faça aprender a se portar como uma dama? Depois poderemos pensar em arrumar um marido para você.

   Ele saiu com passos largos. Sua mãe hesitou, olhou-a com olhos chorosos e saiu correndo atrás de Peter.

- Senhorita, eu bem avisei que...

   Lyona fechou a porta na cara de Meredith. Odiava-os. Todos eles. Agora não só os Duffy e os Regan, mas também Peter O’Carrol por ser tão frio e indiferente; Morgan O’Carrol por ter medo do pai e não ajudá-la nem em momentos como aquele; Meredith por ser tão intrometida e inconveniente.

   Se ele queria que Lyona saísse de casa, ela estaria mais do que feliz em sair, mas nunca cederia às vontades dele. Nas palavras de Regan, ela não passava de uma selvagem mal comportada e insolente, portanto iria para o lugar onde os seres mais selvagens e insolentes que conhecia iriam.