Dama de Sangue escrita por samgray


Capítulo 2
O despertar




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Livia abriu os olhos, assustada, assim que pôde. Reconheceu, de imediato, o local em que estava. Via ao seu redor a antiga parede branca e o guarda-roupa cor-de-rosa que a acompanhava desde a infância. Estava, sem dúvida alguma, em seu quarto e, mais precisamente, em sua cama, debaixo do aconchegante cobertor de lã. Empurrava a peça em direção ao seus pés, sentindo o vento atípico para aquela época do ano e se perguntando como parara ali.

Talvez, nada disso passasse de um sonho ruim fruto de um copo de vinho que tomara a mais. Ela mesma conhecia bem os efeitos de amnésia que o álcool poderia trazer, se consumido em excesso. Lembrava das histórias de Valentine em que tudo o que restava de uma noite eram fotos, sem lembrança alguma. Mas também sabia que sua memória se perdeu com a aproximação do estranho homem.

Sentava-se, ainda exausta, apesar de ter acabado de acordar, sobre o lençol florido. Pensava no que poderia ter ocorrido enquanto acariciava o pescoço dolorido que mostrava, em um pequeno relevo, uma ferida circular que lhe trouxe certeza que não fora delírio o dia anterior.

A janela aberta trazia um frio cortante e mostrava, claramente, um céu pálido e de um azul tão puro que aparentava, até mesmo, estar congelado. Ela abraça o próprio corpo para conter o frio externo e o vazio interior que enchia a mente de dúvidas bizarras. A última frase dita ecoava em sua mente com a mesma voz grave de outrora.

Parecia, na verdade, nada mais que uma brincadeira tola de alguém qualquer, uma zoação infantil como as que costumava receber na época que lhe emprestaram a fita de video entitulada "O chamado". Assim como no filme, o telefone toca.

O repetitivo som passava a ter o mesmo ritmo que as batidas do coração da jovem e as pequenas variações de tom, o mesmo som dos gritos que, por dentro, dava ela. Respirou fundo, tentando acalmar-se. Pegou o telefone em mãos.

– Alô? - falara com a voz tremida.

– Oi, amor, você está livre esta noite? - Era a voz de Heitor, do outro lado da linha.

Suspirou aliviada.

– Estou sim. Tem planos?

– Tenho. Abriu um restaurante novo perto da sua casa e eu pensei que podíamos...

– É claro...

Livia sorriu, como se todo o mal tivesse passado. Achava nas palavras do amado todo o conforto que necessitava para seguir em frente. Sentia-se como uma criança cessando o pranto ao se prender ao colo do pai. O timbre tipicamente masculino acalmava-a. Por um instante, sentiu-se como se os dois fossem os únicos do mundo inteiro, como se nada pudesse lhe fazer mal, como se estivesse protegida, para sempre.

Desligar o telefone, todavia, fora como seu último despertar. Saíra de uma terra encantada onde viviam os sonhos e partira, tão de repente, para a cruel realidade. E já não tinha a garantia infantil de que tudo ficaria bem desde que se mantesse dentro de casa. Seu porto seguro fora tomado por uma inesperada onda. Estar parada ali era mais suícidio que segurança. Sabiam como encontra-la. Sabiam onde estava e ela permanecia no mesmo local, inerte. A água roubara-lhe o fôlego, tirara-lhe as forças. Precisava de ajuda para evitar a morte tão emenente quanto iminente.... E sabia que palavras de conforto não levariam embora seu terrível pesadelo, pois era certo que este pertencia não ao mundo do irreal, mas ao mundo palpável de onde não era capaz de fugir. Seus pais também já não estavam no quarto ao lado para deixar que dormisse ali até que o mau se fosse. Ainda bem que curtiam as merecidas férias e viajavam, poderiam ser as próximas vítimas.

Os olhos pousavam, desesperadamente, no velho telefone desligado. Pegava-o e ninava-o como se fosse um bebê. Sentia-se a mãe de seu próprio conforto e, quem sabe, até mesmo de sua salvação. Andava de um lado para o outro, aflita, pensando em para quem poderia ligar. Polícia nenhuma acreditaria no acontecido. Parente algum viria lhe prestar ajuda. Restou-lhe infortunar a única pessoa que, sem dúvida, tentaria ajudar, pois tinha a mente resoluta em tantas loucuras quanto a própria Livia.

O telefone ao ouvido ecoava um pequeno som agudo. Os sentidos aguçados da moça faziam dele um herculeo alarme, um sinal para que fugisse.


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