Era Uma Vez, no Natal escrita por Valquíria Homero


Capítulo 3
O CAÇADOR




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Breno quase retrocedeu ao perceber que o túnel que havia escolhido estava completamente escuro. “Qualquer coisa”, pensou ele, sentindo um arrepio percorrer seu corpo. “Qualquer coisa, menos ficar no escuro outra vez”. Mas assim que olhou para trás, percebeu que não tinha escolha. Uma parede sólida vinda do nada obstruía o caminho de volta. Então o garoto se limitou a engolir seco e prosseguir, a passos lentos e hesitantes.

O túnel não estava completamente escuro, entretanto. Breno podia distinguir os tijolos das paredes, e mesmo o teto – feito de terra, a julgar pelas raízes que saiam dele. Algumas eram tão compridas que chegavam a roçar seu braço, e ele podia jurar que elas deliberadamente tentavam se enroscar nele. Estremeceu só de pensar do que as raízes se alimentavam.

– Ei, olá! Um viajante, adoro viajantes.

Breno arregalou os olhos. O homem tinha surgido num piscar de olhos (como parecia ser a tendência geral). Alto, magro, de orelhas grandes e olhos muito vivos. O garoto se inclinou na direção dele, certo que tinha realmente enlouquecido. Mas o sorriso enorme e o nariz protuberante não deixavam dúvidas: aquele era Christopher Eccleston.

– Christopher?

– Se você diz – Breno teve sua mão subitamente tomada em um aperto vigoroso – É um prazer, Christopher! Christopher, um bom nome, mas meio grande. Não se importa se eu te chamar só de Chirs, não é mesmo?

E sem mais, o homem girou nos calcanhares e começou a andar. Breno ainda levou alguns segundos para seguí-lo, os olhos brilhando com uma possibilidade.

– Tudo bem então. Doctor? – arriscou uma segunda vez.

– Doctor? Por que, está se sentindo mal? – replicou o outro, sem interromper o passo apressado ou perder o tom bem humorado – Lamento não poder ajudá-lo, Chris. Christopher. Sou um caçador, não médico. O Caçador, para ser mais preciso, numa Caçada.

Foi como se só então Breno pudesse ver a espingarda que ele apoiava no ombro, seu ridículo chapéu de guaxinim com uma cauda grande demais e o colete de pescaria com sabe Deus quantas coisas penduradas. Mas o garoto não teve muito tempo para registrar esses e outros detalhes antes que O Caçador se virasse abruptamente e quase o derrubasse no chão. Inclinou-se até que seus olhos estivessem no nível dos de Breno (e ele não pode deixar de pensar que, se não fosse por aquele nariz enorme, os dois provavelmente já teriam se beijado).

– A propósito, você não teria visto um coelho por aí, não é? Você sabe, branco, terno e gravata. Orelhas grandes. E uns dentões assim.

O Caçador usou a mão livre para imitar dois dentes com os dedos, balançando o narigão. Breno arqueou uma sobrancelha.

– Na verdade, vi sim. Estou procurando por ele, na verdade. Por que está caçando o coelho?

– O coelho? Nhá, pra que eu caçaria o coelho?

– Não sei, por que perguntou por ele?

– Queria saber as horas. O Tempo – e aqui seu sorriso sumiu e uma sombra passou pelos seus olhos – é tremendamente importante.

– O que você está caçando, então?

– Oh, não faço a mínima idéia – o sorriso voltou a iluminar o rosto do Caçador, mas só por um momento. Então sua expressão ficou ainda mais sombria do que antes – Isso tem me enlouquecido. Ás vezes sinto que é algo muito importante. Que eu devia, saber, que eu devia me lembrar, mas... Nada.

Um silêncio estranho se fez, o Caçador mergulhado em pensamentos confusos, e Breno, em conjecturas impossíveis. Mas então o rosto do Caçador se desanuviou e ele recostou na parede casualmente, cruzando os braços e sorrindo de forma satisfeita. Breno ficou feliz em perceber que a espingarda apontava para o outro lado.

– E você?

– Ein?

– Você. O que está caçando, qual a sua presa.

– Não estou caçando nada.

– Ora, não se faça de bobo, Christopher. Todos estão caçando alguma coisa. Algum objetivo.

Breno se recostou na parede ao lado do homem inacreditavelmente alto e entusiasmado, tomando o cuidado de ficar longe da cauda do chapéu do Caçador. Que loucura aquilo tudo. Mas o que não era uma loucura na sua vida? O que, afinal, era normal? Ele não era, pensou com amargura. Nunca fora, e duvidava que chegasse a ser um dia. Mas será que era isso o que queria, simplesmente ser normal? Seria esse seu objetivo, sua presa?

“Todos estão caçando alguma coisa”.

Eram tantas perguntas que chegava a ter medo das respostas. Breno tinha um medo tremendo de perseguir a fundo aquelas questões para descobrir que seu objetivo mais íntimo era desistir de si mesmo.

– Por quê? – quando falou, sua voz era hesitante e perturbada. Perturbada como estavam seus pensamentos, quando o que ele mais queria era para de pensar. Parar de perguntar ­– Pode-se viver sem nada disso, não? Só... curtir o aqui e agora, e nada mais.

– Claro, você pode fazer o que quiser – O Caçador deu ombros – mas mesmo isso não deixa de ser um alvo. Alvos momentâneos. Alvos vazios. Mas sabe – acrescentou ele, após um curto silêncio – é a caçada, veja bem, a caçada, não o abate; a caçada que é o grande ponto da coisa toda. Por isso, você precisa ter cuidado na hora de escolher sua presa.

Aqueles olhos muito claros e muito brilhantes se voltaram para Breno com firmeza, meio como se estivesse vendo alguma outra coisa ali. Uma coisa que ele quisesse que o garoto também visse. E com o tom humorado de sempre, explicou:

– Para ter certeza que, quando chegar a hora do abate, a caçada vai ter valido a pena. Seja como for... – o Caçador se aprumou e estendeu a mão comprida para Breno. Seu sorriso era tão grande que os cantos da boca quase tocavam as orelhas colossais – Boa sorte em sua caçada, Christopher.

– Breno – o garoto se deu ao trabalho de corrigi-lo pela primeira vez, apertando a mão que lhe foi oferecida.

– Oh, Breno. Um nome, uma identidade. Esta, sem dúvida, é uma caçada das mais interessantes. E perigosas. Bom, como eu disse, boa sorte. Agora, preciso voltar para a minha Caçada.

Breno não conseguiu não retribuir o sorriso que o Caçador lhe lançou. Ficou observando enquanto ele lhe dava as costas e se abaixava, tocando o chão com a mão livre. A cabeça se ergueu lentamente para o caminho adiante, e pela forma como ele disse “o rastro está esquentando”, o garoto apostava que os olhos do Caçador faiscaram no escuro.

Foi só quando a silhueta esguia do Caçador se juntou as trevas que Breno notou um peso extra na sua mão, ainda estendida. Virou a palma para cima, e o que viu foi uma pequena caixinha preta, parecendo velha. Aproximou-a do rosto e abriu a tampa. Espremendo os olhos, pode identificar algo como uma Rosa dos Ventos. “Uma bússola”, pensou ele. Mas notou que faltava algo. A seta, a seta que devia apontar o caminho. O Caçador lhe presenteara com uma bússola quebrada.

Ele continuava sem direção.


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Notas finais do capítulo

Perdoe-me pela demora, Breno. Mesmo i.i Espero que esteja gostando, porque daqui em diante que começa a ficar interessante 8'D



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