Contos Soltos escrita por MissBlackWolfie


Capítulo 4
Fugitiva.


Notas iniciais do capítulo

Faz tempo que num apareço aki... mas vms de um conto meu, que gosto pela intensidade!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/180885/chapter/4

Entrei no apartamento batendo forte a porta atrás de mim, o baque ecoou por todo o lugar, senti um leve tremer das paredes. Queria que ficasse longe, no corredor do prédio, o passado que insiste por várias vezes retornar à minha vida. Nunca terei paz? Sempre ficará incomodando com seus problemas crônicos e arcaicos? Aquele acumulo de ideia antiguadas era mais perfeita prova da burrice do medo da mudança, era a sua representação perfeita. 

E mais uma vez fiz o que sempre me condicionei a fazer durante toda a minha vida adulta, peguei em baixo da minha cama, a minha mala de fuga. Ela ficava preparada para ocasiões como aquela, afinal sempre o passado retorna de alguma maneira importunando com suas chatices corriqueiras.

Abri meu guarda-roupa, peguei um envelope pardo que fora deixado estrategicamente no fundo móvel, com dinheiro e documentos (novos e falsos), para minha fuga rápida. Enfiei-o na minha bolsa e fui em direção ao banheiro, necessitava de tomar um banho, era o melhor momento para pensar na minha nova rota de fuga.

Liguei o chuveiro no máximo, para que a água caísse com bastante força, a temperatura da ducha era um pouco fria, queria ficar alerta, preciso acordar e não relaxar. Assim, quando entrei naquela pequena cachoeira, revivi por alguns segundos toda a minha vida antes de começar a fugir.

Voltei àquela maldita cidade interiorana, onde haviam pessoas tão primitivas no pensar quanto os primeiros habitantes da terra, os seres unicelulares. Eles eram indivíduos tão limitados e padronizados, que qualquer coisa ou ser que fugisse a regra era duramente criticado. E assim foi comigo, durante toda a minha estadia naquele pesadelo, eu era a critica ambulante. 

Todas as pessoas que ali existiam, porque para mim aquilo é uma forma de existência e não de vida. Eram todos obcecados em ter um lugar “perfeito” para se viver e constituir família, e se entendia que para isso era necessário que todos fossem iguais, extamente iguais. Tinham como idéia que o diferente atraia a competição e isso era muito ruim para as pessoas. Dessa forma decidiram que tudo deveria seguir um padrão pré-estabelecido. 

Desde planta de construções das casas, como as cores que eram usadas para pintar suas paredes eram definidas, até a forma do corte dos pêlos do o cachorro da família, sempre deveria ser geométrico. Isso tudo era ditado pelas normas absurdas regida por poucos naquele lugar. Detalhe: todos deveriam ter um cão, enfim era o padrão para a família, e todos os bichos eram da mesma raça: poddle.

Dentro da minha família, núcleo que sempre se orgulhou de ser modelo para toda vizinhança tentava a duras penas me “consertar”, mas nunca quis. Sempre fugi disso com muita luta. 

Na minha infância eu me rebelava cortando o cabelo de forma desalinhada, deixando minha franja completamente torta. Furando as minhas roupas de propósito, arrastando o meu jeans novo no asfalto, para dar aspecto de velho. Riscando meus braços com uma caneta que tinha uma tinta de longa duração, mesmo na água o desenho não saia, olha que minha mãe sempre tentava, esfregava por muito tempo, contudo nada adiantava, parava quando me feria. Entretanto não chorei em nenhuma vez que fui punida, e foram muitas vezes, me orgulhava em ser e querer ser diferente dos demais.

Fazia qualquer coisa para escapar de ser perfeitamente igual a todo mundo, meus pais não sabiam o que fazer comigo, tentaram de tudo desde conversa politicamente correta até agressão física, que é moralmente repugnada por aquela sociedade hipocrita, contudo no meu caso se abriu uma exceção, enfim toda regra tem um exceção. Eu precisava ser corrigida.

Todavia nada surtia efeito em mim, especialmente na minha adolescência, ai tudo piorou mil vezes, parecia que as coisas tinham se potencializado dentro mim. Era certo: eu não pertencia aquele lugar.

Dessa maneira meu pai tentou me domar a força, no entanto ele não contava com um detalhe: a minha capacidade inata de fugir. E assim o fiz com 14 anos, deixei tudo para atras e fui para o mundo sem nada além de um punhado de notas amassadas de dinheiro e minha roupa do corpo. Foi a primeira vez que experimentei a liberdade e me apaixonei por ela. Vivemos nosso romance até hoje.


Arrancando das minhas tortuosas memórias escutei o telefone tocar, eu sabia muito bem quem era o único ponto fixo da minha vida, o conhecendo bem sei que ele insistiria em me perturbar. Terminei meu banho de forma rápida, enquanto isso o telefone protestou mais três vezes. Enrolei-me na tolha e já podia ouvir sua quarta reclamação.

-Sempre nervoso. – Resmunguei em voz alta para mim mesma.

Cheguei a minha cama e o aparelho brilhava, no visor estava o nome do único elo que eu mantinha em relação ao passado que eu insistia esquecer. Ricardo, meu irmão mais velho.

-Fala Rick. – eu disse.
-Ele te achou? – fiquei em silencio, e ele logo entendeu que a minha resposta era positiva. – Ele fez alguma coisa com você? 
-O de sempre. – Nesse momento uma avalanche de lembranças invadiu meu cérebro.

Eu estava trabalhando no bar do centro da cidade, onde eu vivia há dez meses, hoje meu turno começava no final da tarde. Era um local bem badalado, dito da moda, sempre repleto de clientes, principalmente jovens. O dono me contratou pela minha alta capacidade de comunicação, meu irmão brincava que eu podia conversar com qualquer coisa até com seres inanimados.

Tudo transcorria com no ritmo frenético de todo happy hour, porém algo fez tudo parar por um instante, a figura mais forte do meu passado: meu pai. Ele estava sentado numa mesa de frente para mim, seus olhos negros caíram sobre mim, como duas grandes pedras de culpa. 

Respirei fundo, em uma tentativa de organizar toda raiva sentida por mim durante toda a minha existência, naquele instante que nossos olhares se cruzaram. Ele me chamou com um gesto, mesmo contrariada fui, não queria chamar atenção de ninguém para aquilo.

-O que o senhor deseja? – eu tentei tratá-lo como um cliente qualquer. 
-Quero que você sente agora. – ele vociferou cada uma das palavras.

Recusei por um momento junto bufei irritada, novamente lançou sua fúria no olhar para mim, tenho certeza que se pudesse ele me mataria com aqueles olhos. 

-Vou contar até três, para você fazer o que mando. Se não vou te pegar a força.

Mesmo sabendo que era meu ultimo dia de trabalho naquele lugar, afinal depois desse encontro eu iria seguir um outro rumo na vida, como tantas vezes já fiz, não queria assustar os clientes e nem constranger o dono do bar, que era uma pessoa muito querida. Dessa maneira sentei na cadeira vaga a sua frente.

-Viu como fica fácil quando você faz o que mando? – a doçura era proporcional ao seu sarcasmo. – Você fez o que toda filha deve fazer, obedecer ao seu pai. 
-O que você quer de mim? – Perguntei séria, joguei meu corpo para trás, encontrando o encosto da cadeira e cruzando os braços na frente do meu peito, me preparando para sua resposta costumeira.
-Minha filha, eu quero que você venha ficar com sua família. – eu sempre acertava.
-Acho que você sabe a minha resposta. – O encarei, mesmo com seus olhos negros me odiando. – Eu não pertenço a você, sou maior de idade e não preciso de você. 
-Letícia! – Ele elevou a voz e deu um pequeno soco na mesa, mas logo se conteve. – Não me provoque.
-Eu juro que não quero nada disso. – Eu falei calmamente, as ameaças dele já me assustaram antes, mas agora elas não tinham efeito algum. – Esqueça que eu existo.
-Não vou deixar a minha única filha seguir o caminho errado.
-Vou seguir sim o caminho dito por você errado. – nessa hora me levantei e corri para rua. 

Minha atitude o pegou de surpresa, contudo não olhei para trás para saber se me seguia, só tive como objetivo sair dali. Corri durante uns dez minutos, esbarrei em algumas pessoas no caminho até derrubei umas duas, após minha maratona cheguei ao meu apartamento.

Sempre meus encontros com meu pai eram marcados pelas minhas saídas mirabolantes, pois uma vez ele me levou a força para aquele inferno na terra, a cidade das pessoas perfeitas. E lógico, consegui escapar mais uma vez. 

Minha mente terminou de lembrar-se de mais um fato lamentável entre meu pai e eu, retornou sua atenção para a pergunta do meu irmão.

-Ele te machucou dessa vez? – A voz do meu irmão era preocupada.
-Não. – respondi seca.
-Vai fugir mais uma vez?
-Você sabe que sim.

Enquanto falava com meu irmão, terminei de completar a minha mala com alguns pertences, ao terminar fechei o zíper. Coloquei a minha roupa, fazia isso com a velocidade de sempre quando entrava naquele estado de alerta.

-Letícia, você vai viver assim para sempre?
-Eu mão quero ser como os outros. Não quero ser limitada a não pensar, como a nossa mãe e as outras mulheres dessa cidade.
-Mas vai fugir eternamente? – Meu irmão se preocupava comigo.
-Sou como um pássaro selvagem, eu não nasci para viver em gaiola. – Eu falei irritada, já com a mão enfiada entre o meu cabelo loiro. – Quero a liberdade para fazer o quero.
-Como pode querer algo que nunca experimentou enquanto era criança? – Sempre tínhamos essa conversa.
-Ricardo, eu não quero seguir padrões estabelecidos pelos outros. Quero poder me apaixonar por quem desejar e não por algum escolhido para mim perfeitamente correto. Quero apostar no jogo da vida.

Minha voz começou a falhar pela emoção que já atingira meus olhos, provocando ali um alagamento de gotas salgadas, que escorriam pela minha face. E continuei meu desabafo telefônico.

-Queria muito poder ser como vocês. Seguir o padrão é muito mais fácil, menos angustiante, contudo há uma inquietação dentro de mim, que impossibilita a minha entrega para essa vida pré-moldada. – Minhas lágrimas eram sentidas nos meus lábios. – Desejar ser certa, era tudo que eu desejei durante anos, mas não sou assim. 
-Eu queria ter a sua coragem de fugir. – a voz do meu irmão também era emocionada. 
-Sei que é muito difícil romper as correntes da mesmice que se torna a nossa vida. É muito mais confortável ter tudo decidido, contudo não se torna a sua vida, mas sim a dos outros.
-Quando você encontrar um novo lugar me liga para falar se você esta bem. 
-Ligo Rick.

Despedimo-nos com costumeiro “até logo”, fiquei um tempo com celular na mão e sentindo pena da vida do meu irmão, afinal ele sempre foi um fraco, pois foi criado assim. Nunca conseguiu fugir as regras e normas, mas sempre acobertava as minhas loucuras para ser diferente, nunca me criticou, sei que seus questionamentos para mim eram de preocupação de uma pessoa que ama.

Não tinha tempo para ficar ali pensando em tudo, precisava usar minha outra habilidade a praticidade, tão útil pra meu lado fugitiva. Dessa maneira liguei para a moça que me alugou o apartamento, já tinha deixado ela de sobreaviso que iria embora correndo alguma hora, pois eu sabia do meu destino. Então deixei já pago um ano com antecedência o aluguel, para que ela aceitasse a minha condição de ir embora correndo. Como tenho essa vida de fugas, sempre escolho lugares que já tenham mobília.

Desci as escadas correndo, logo cheguei ao meu carro, joguei a minha bolsa no banco de tras e girei a chave na ignição. Nesse momento um beija flor, no meio da selva de concreto apareceu próximo ao veiculo. E um pensamento me ocorreu: Como queria ter a suas asas para voar para bem longe daqui, alçar vôos espetaculares e ter outra visão do mundo. 

Suspirei e ele se foi, junto com meu pensamento desejoso. Agora era eu e a estrada, ela era um fruto da minha relação com a liberdade, minha fiel amada escudeira. Sei que ir embora não vai resolver o meu problema, contudo ele era insolúvel, não tinha como mudar anos de cabeça atrofiada com grandes argumentos de realidade atualizada. 

Meu pai viverá e morrerá nas garras de uma norma padronizada e doentia de vida, em contra partida me realizarei vivendo a loucura do errado da vida, sem o padrão repetitivo das pessoas em classificar tudo entre correto e incorreto. Quero mais do isso, quero ir além, desejo tudo intensamente, como não houvesse tempo para usufruir de tudo aquilo que o destino nos apresenta. Nem que para sempre eu seja uma fugitiva.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ser diferente não é facil... sei bem disso!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Contos Soltos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.