Obaka-san! escrita por Mayumi Sato


Capítulo 8
08. The Merry-Go-Round of Life(Joe Hisaishi)


Notas iniciais do capítulo

Eu REALMENTE recomendo que vocês assistam às animações "A viagem de Chihiro", "Castelo animado" e "Tonari no Totoro", antes de lerem esse capítulo. Caso não possam fazer isso, ao menos leiam a sinopse delas.
Como sempre, minha recomendação é a de que vocês escutem a música abaixo do título, enquanto leem o capítulo, mas que apenas escutem as demais composições, no momento em que elas forem tocadas.
http://www.youtube.com/watch?v=5O5wMctUSAM&feature=related - Mirroir nº3: Une barque sur l'ocean
http://www.youtube.com/watch?v=EIl6eS5xckg - The Wind Forest
http://www.youtube.com/watch?v=alUZb6Bu2Uo&feature=related - The merry-go-round of life(piano)
http://www.youtube.com/watch?v=KYQGls4kw9k&list=PL3648F0177AE76819&index=32&feature=plpp_video - The sixth station(piano)



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http://www.youtube.com/watch?v=owddukdxFv4&feature=BFa&list=PL3648F0177AE76819&lf=plpp_video

The Merry-Go-Round of Life(Hisaishi)

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                                                          08.

                                    – The Merry-Go-Round of Life -


Senhor Roderich, não pude deixar de noticiar o quanto o seu rosto está vermelho.

– Presumo que esteja.

– O seu colega de quarto possui alguma relação com isso?

– Não! – exclamei, com um olhar arregalado, chocado com aquela absurda conclusão – De modo algum!

– Não? – meu professor de prática questionou, ceticamente – Nesse caso, do que se trata?

– O frio... – murmurei, timidamente, pressionando o cachecol vermelho que quase cobria meu rosto.

Por um breve momento, meu professor arqueou as sobrancelhas, incrédulo, e encarou-me em silêncio, antes de explodir em uma intensa gargalhada.

Era o início de outubro. O cenário esperado para essa época seria o clássico quadro do outono. Uma tênue mudança de temperatura e uma paisagem dourada, propiciada pelas folhas secas, características dessa estação. Infelizmente, naquele ano, a natureza não se comportou do modo habitual. O cenário, por trás da janela da sala de prática do conservatório, era cinza. Nuvens espessas se acumulavam no céu. Além disso, estava frio. Muito frio. Absurdamente frio.

Essa havia sido a razão pela qual, naquela manhã, eu havia colocado meus trajes de inverno, um agasalho, luvas, um gorro e um espesso cachecol. Eu sabia que muitos enfrentavam aquele outono anormalmente gélido, com apenas um casaco, no entanto, considerei muito sensato trajar-me daquele modo. Era muito sensível ao frio, portanto, necessitava cobrir a maior parte do meu corpo, como um modo de proteger-me parcialmente daquela incômoda sensação. Minha decisão era bastante racional e acredito sinceramente que Gilbert não possuía qualquer razão para rir dela tanto quanto o fez, quando o vi, naquela manhã.

Aquele tolo.

Por ter visto a reação de meu colega de quarto, não me surpreendi com a gargalhada de meu professor, quando justifiquei o rubor em meu rosto. Com algum esforço, consegui conter meu crescente desconforto, que aumentava de forma diretamente proporcional à duração do riso de meu mestre.

– Frio, senhor Roderich? – riu meu mestre, enxugando as lágrimas contidas em seus olhos. – Mesmo vestido dessa forma... – houve uma pausa, em sua fala. Ele, provavelmente, estava escolhendo termos menos ofensivos do que aqueles que, originalmente, diria. -...tão aquecedora, o senhor ainda sente frio?

– Sinto. – afirmei, com pesar. – Podemos voltar a discutir sobre o piano? – perguntei, ansiando mudar o tópico da discussão - Como foi a execução da minha Miroirs nº03?

– Um pouco impaciente, para ser franco. As notas parecem apressadas demais, senhor Roderich. Os arpejos da mão esquerda não soam de forma tão bela quanto deveriam. Além disso, você precisa tocar essas partes com mais força. – ele disse, indicando na partitura, os trechos que deveriam ser executados com maior intensidade.

– Eu não consigo compreender plenamente a sua crítica. Essa composição deve ser executada em uma velocidade relativamente rápida. Como posso estar sendo acusado de tocá-la apressadamente?

– Não nego que essa não é exatamente uma composição lenta, mas o seu modo de executá-la está incorreto. Trabalhe mais o seu tempo e sua interpretação quanto a essa composição. Ah. Não se esqueça de tocar, com maior força, as partes que citei. – ele sorriu, antes de acrescentar - Você é jovem. Use sua energia.

Eu ainda considerava um tanto vagas, suas instruções quanto ao tempo, mas agradeci sinceramente por seus conselhos.

– Não me agradeça por isso. Eu sou seu tutor. Se você deseja tocar uma composição, eu devo aconselhá-lo, como puder. – ele disse, agitando sua mão, em um gesto que indicava sua modéstia quanto ao apoio que me oferecia – Eu apenas gostaria de saber por que você subitamente quis aprender a tocar uma composição de Ravel. Eu pensei que o senhor tinha uma predileção pela geração romântica.

–...

– Hm?

–... Não houve um motivo específico.

– Senhor Roderich, o seu rosto está mais vermelho do que antes.

– Presumo que esteja.

– Dessa vez, o seu colega de quarto possui alguma relação com isso, estou certo? – ele indagou, com um sorriso mordaz.

Abaixei meu rosto e fechei minhas mãos, sentindo uma mistura de frustração e vergonha por ser incapaz de negar aquela interrogação. Não suportando o sorriso repleto de implicações que meu mestre exibia, expliquei-me, rapidamente:

– Ele fará a abertura de um evento público e tocará a Forlane de La Tombeu de Coperin. Por vê-lo estudar Ravel tão intensamente, adquiri algum interesse por esse compositor. Há algum problema nisso?

– Não. – ele riu, discretamente - De modo algum.

Eu não entendia seu divertimento quanto aquele assunto. Ele não poderia me parecer menos humorístico.

– Então, seu colega de quarto fará apresentações públicas, huh? – ele disse, pousando a mão sobre o queixo e lançando um olhar reflexivo ao teto – Qual é o semestre dele?

– O terceiro.

– Hm... – ele abaixou seu olhar. Seu semblante adquiriu severidade, enquanto ele ponderava compenetradamente - Você também deveria começar a fazer apresentações públicas, senhor Roderich.

– Como disse?

– O senhor também deveria fazer apresentações. É inaceitável que um aluno no último semestre não tenha as realizado fora do conservatório. Você precisa começar a adquirir reconhecimento, enquanto é um estudante. Isso facilitará sua vida, quando você concluir sua formação.

– Obter um convite para realizar apresentações públicas não é tão simples...! – eu retorquia, quando fui interrompido por um gesto de meu professor.

– Eu não estou dizendo que o senhor precisa apresentar seu próprio recital, com uma entrada que custe centenas de euros. Há outras oportunidades. Você está sabendo sobre o evento “200 anos de Liszt”?

– Admito que não.

– É um evento no qual vários músicos selecionados tocarão diversas composições de Liszt por três dias. O melhor deles fará a apresentação final tocando a sinfonia em si menor. É uma ótima oportunidade, senhor Roderich, para o início de suas apresentações públicas.

– O senhor acredita que eu deveria participar desse processo seletivo?

– Certamente.

– Não estou habituado a tocar Liszt.

– Não há problema. Ainda há algum tempo, antes da conclusão do processo seletivo. Você poderá acostumar-se com o estilo de Liszt. – ele argumentou seriamente, antes de tornar a sorrir, acrescentando - Além disso, essa não é uma desculpa suficientemente convincente, visto que o senhor também não está habituado a tocar Ravel.

Novamente, vi-me incapaz de retorqui-lo.

A minha conversa com meu professor sobre minhas oportunidades para realizar um número considerável de apresentações públicas, antes da conclusão dos meus estudos, estendeu-se por um período mais longo do que eu previa. No entanto, se pudesse, eu a prolongaria mais. Afinal, eu sabia o que me esperava quando eu retornasse.

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– Olá, jovem mestre. – recepcionou-me Gilbert, deitado sobre o sofá, com uma partitura, em mãos, enquanto dirigia-me um sorriso cruelmente irônico - Como foi sua fantástica viagem à Antártida?

– Fique quieto. – reclamei, enquanto trancava a porta, evitando encará-lo – Você não possui qualquer maturidade? Eu preciso usar essas roupas, pois sou muito sensí...

– Sim? – ele perguntou. Senti requintes de malignidade sendo acrescentados ao seu tom.

– Não era nada. Esqueça.

Kesesese!

Encarei-o, recriminando silenciosamente seu comportamento irritante, enquanto uma porção minha invejava a capacidade dele de usar roupas casuais, quando o tempo estava tão frio.

– Como você parece tão resistente ao frio, eu deveria delegá-lo o dever de preparar seu próprio jantar, essa noite? – indaguei, secamente, em um tom cínico – Como sinto-me indisposto com essa baixa temperatura, prepararei apenas o meu.

Gilbert pareceu um tanto assustado com a possibilidade que minha proposta fosse sincera.

– Rod, não é nada incrível ficar ofendido tão facilmente, sabia? – ele perguntou, sorrindo nervosamente - Seja como o incrível eu! Eu nunca me importo com qualquer uma das críticas que fazem a minha incrível pessoa, pois estou ciente da minha superioridade sobre todas elas!

– Na verdade, seria melhor que você se importasse com elas. – repreendi-o, enquanto me dirigia à cozinha.

Eu prepararia macarrão ao molho de espinafre, naquela noite, e estava disposto a fazer apenas uma porção, como um modo de castigá-lo por sua implicância comigo, todavia, antes que eu realizasse, havia apanhado uma quantidade de ingredientes suficiente para preparar o jantar de duas pessoas. Suspirei pesadamente, desisti de minha pequena vingança e comecei a preparar a nossa refeição. Eu não tinha condições de reclamar de Gilbert. Após ouvir as palavras proferidas por Antonio, durante a noite anterior, eu não poderia agir desse modo.

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Embora meu diálogo com o amigo de Gilbert tivesse dissolvido parcialmente a maioria de minhas certezas, eu não possuía confiança suficiente para abdicar completamente dessas, por isso, estava bastante confuso quanto à forma como deveria tratar meu colega de quarto.

Eu temia que, agindo gentilmente, Gilbert visse em meus gestos, uma indicação de que ele deveria reduzir a segura distância que se mantinha entre nós. O que eu não desejava. Por outro lado, eu temia estar agindo de forma egoísta e imatura com alguém que não merecia esse tratamento. Caso isso persistisse, ele poderia, justificadamente, cansar-se de mim e se mudar para o apartamento de um de seus amigos ou parceiros em relações promíscuas. O que eu não desejava.

Nesse caso, como eu deveria me comportar?

Havia uma grande tempestade, dentro de mim, mas a única medida que podia tomar, em relação a ela, era disfarçá-la. Desse modo, continuei a agir como se fosse completamente indiferente ao que havia escutado na noite anterior, e ao que havia dito há algumas noites atrás, ainda que meus sentimentos se movessem, conturbados, em meu peito.

O comportamento de Gilbert não facilitava o alívio de minha confusão. As suas ações eram tão contraditórias quanto os meus pensamentos. Ele havia implicado comigo pelo meu excesso de roupas. Entretanto, não havia implicado comigo quanto às sentenças constrangedoras que eu havia dito há algumas noites. Ele havia iniciado as “aulas” que havia prometido. Contudo, essa suposta aula limitou-se a exibição de uma animação japonesa que não parecia minimamente relacionada aos meus propósitos. Ele podia agir de maneira generosa e adorável, mas, quando eu diminuía meu resguardo, rapidamente mudava sua disposição e tornava-se alguém sádico e lascivo. Eu, definitivamente, não conseguia entendê-lo.

Ainda assim, não poderia permanecer naquela perturbadora inércia.

– Essa noite, o senhor pode tocar o piano, se assim desejar, senhor Gilbert. – ofereci, enquanto jantávamos, contendo ao máximo minha inquietude e tentando aparentar calma em minha proposta que, involuntariamente, soou um tanto arrogante.

Gilbert encarou-me. Parecia um tanto surpreso. Houve um estático momento de silêncio.

– Obrigado, eu acho... – ele agradeceu brevemente, com uma contraída expressão de estranhamento que não pude entender - No entanto, eu tenho outros planos para essa noite, jovem mestre.

– Outros planos? – encarei-o, com antecipada repreensão.

– A continuação das suas incríveis lições, Rod! – ele respondeu, enquanto erguia seu garfo em minha direção – Eu não pude dá-las, ontem, pois precisava resolver alguns assuntos, no apartamento do Tonio, mas estou disponível, essa noite, e irei ajudá-lo. Agradeça-me com todas as suas forças!

– Nós iremos assistir Tonari no Totoro, novamente? – perguntei, desconfiado.

Kesesese! É óbvio que não, jovem mestre!

Eu já suspirava de alívio, quando ele exclamou, erguendo seus punhos, enquanto seu olhar vermelho brilhava intensamente, preenchido por entusiasmo:

– Nós assistiremos Howl’s Moving Castle!

Afundei meu rosto na palma de minha mão direita e repreendi-me pela ingenuidade de minhas expectativas.

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Havia vários aspectos nos quais eu não confiava em Gilbert. Eu nunca apareceria usando apenas uma toalha, em sua frente, nem permitiria que ele fizesse as compras do mês, desacompanhado. Entretanto, quando se tratava de seus conselhos quanto à música erudita, eu possuía grande confiança em seus métodos, por mais estranhos e suspeitos que esses fossem.

O meu alegro scherzando, a minha tristesse e as minhas doze variações de “ah, vous dirai-je maman” haviam sofrido consideráveis melhoras, graças às intervenções dele. Além disso, eu possuía enorme admiração pelo seu piano e conhecimentos sobre música e arte. Esses fatores não me permitiam questioná-lo se realmente havia um motivo para assistirmos mais uma animação japonesa, quando eu mal havia entendido o propósito de assistirmos à primeira.

Eu apenas encontrei motivos para reclamar, quando Gilbert, casualmente, colocou seus braços em torno dos meus ombros, durante a cena de abertura.

Em minha reação, resmunguei brevemente algo sobre o descaramento de meu colega de quarto e enfatizei o quanto eu detestava formas de contato que sugerissem uma intimidade maior do que possuíamos. Ele, prontamente, revirou os olhos e ignorou-me.

Quando a abertura foi concluída e o enredo da estória começou a surgir, Gilbert ainda não havia retirado seu braço de meus ombros e, considerando o quanto a sua atenção parecia ter sido inteiramente desviada ao filme, ele o manteria nessa posição até que terminássemos aquela atividade. Não o afastei. Apesar de aborrecido com o modo como ele ignorou minhas reclamações, eu não estava absolutamente incomodado com aquele gesto, em si.

Certamente, os argumentos dele pareciam desculpas forçadas para justificarem atos vis, mas eu não podia negar que a proximidade física entre nós diminuiu consideravelmente o frio que me incomodava. Ela me trouxe uma sensação morna e confortável que decidi aceitar.

Na tela, a protagonista voava com um mago, sobre uma festividade, na qual diversas pessoas dançavam. Eu via essa cena, mas não conseguia ser absorvido por ela. Estava absorto em minhas próprias reflexões.

Eu não pretendia encerrar aquele contato, contudo, gostaria de compreender o que motivou meu colega de quarto a iniciá-lo.

Se a única intenção de Gilbert fosse implicar comigo, ele poderia ter feito qualquer outra coisa. Aquela brincadeira era deveras branda se comparada à vasta quantidade de piadas que ele poderia ter feito comigo, após aquela traumática noite. Não era essa a sua principal motivação. Eu também não podia acreditar que aquilo fosse um assédio. Devido à diferença de força entre nós, ele poderia ter avançado muito mais, caso fosse esse o seu intento.

O que ele queria?

Apesar de sua boa índole, Gilbert possuía uma natureza egocêntrica que não poderia ser ignorada. Sua indisposição em tocar com qualquer um de nossos vizinhos era uma prova disso. Não havia uma razão aparente para sua persistente gentileza indireta comigo, nos últimos dias. De algum modo, eu sentia que estava recebendo um tratamento diferenciado.

“O que ele espera conseguir com isso? Eu estou farto de me perguntar sobre as intenções dele, como uma donzela analisando o caráter de seu pretenden... Ah.”

Meu próprio pensamento guiou-me a uma conclusão que, por mais apavorante e perturbadora que me parecesse, possuía a força de uma verdade inquestionável.

Seria possível que Gilbert estivesse... Bem... Essa era apenas uma possibilidade, mas... Ele, ao seu modo estranho e nada eficiente, estava me cortejando?

Naquela noite, eu dei motivos para que ele acreditasse que nosso relacionamento poderia sofrer uma drástica mudança? Ele havia interpretado mal o significado das minhas palavras? Caso fosse isso, ele havia se enganado! Minhas sentenças não foram nada além de um devaneio induzido pelo álcool! Por mais significativas que fossem as mudanças em nosso relacionamento, elas nunca alcançariam dimensões tão exacerbadas! Eu não tinha qualquer intenção de ser tratado como sua esposa ou possível parceiro em atividades lascivas!

A falha em nossa comunicação precisava ser corrigida, com urgência. Eu abordaria o assunto que evitei por muitos dias, em uma tentativa de encerrá-lo definitivamente.

Inspirei profundamente e, esforçando-me para manter minha compostura, comecei a falar.

– Senhor Gilbert, sei que esse não é um bom momento, mas existe algo que eu gostaria de discutir com você e, como não encontro uma ocasião para abordar esse assunto, utilizarei esta. Há algumas noites, quando fomos ao apartamento de Francis, eu...

Gilbert interrompeu-me perguntando se eu gostaria de beber refrigerante.

Confesso que fiquei bastante chocado com essa interrupção. Apesar de estar conscientemente tentando não externar os efeitos que aquele tópico provocava em mim, eu havia pensado que meu colega de quarto perceberia a gravidade contida por trás de minha estoica expressão.

Concluindo que Gilbert apenas me interpelara, pois não possuía uma quantia mínima de bom senso, recusei educadamente a bebida oferecida por ele e tornei a tocar no assunto que me era relevante.

Novamente, ele interferiu em minha tentativa de um monólogo, comentando que havia poucos refrigerantes na geladeira e que deveríamos, em breve, fazer compras. Ao dizer isso, ele sorria de um modo estranho e tenso, e sua voz, mais alta do que o habitual, parecia carregada de agitação.

Comecei a suspeitar que havia algo de errado em sua reação.

Mais uma vez, tentei prosseguir com minhas colocações e o fiz com uma severidade que evidenciava a importância que eu atribuía ao tema que iríamos discutir e o meu completo desprezo por qualquer assunto que não fosse inerente a esse.

A firme e dura forma como me expressei, deixou bastante claro o quanto era importante que Gilbert ouvisse-me e parasse de me interromper. E ele percebeu. Eu vi um rápido lampejo de lucidez, em seus olhos, que mostrava uma consciência sobre o significado de minhas palavras.

Gilbert, momentaneamente, cessou suas interrupções. Acreditando que ele permaneceria calado, comecei a falar sobre a noite em que fomos ao apartamento de Francis. Contei-lhe sobre o meu desconforto ao ficar entre um grupo de amigos com o qual eu não possuía nenhuma relação, com exceção ao fato de ser colega de quarto de um deles. Enfatizei o termo “colega de quarto”, dizendo-o vagarosamente. Depois, relacionei a melancolia gerada pela incômoda situação, na qual encontrara-me, com a minha ingestão excessiva – e condenável – de álcool, naquela noite, e afirmei que meu estado de torpor influenciara severamente meu comportamento.

–...portanto, quando estávamos voltando...- à medida em que minha conclusão se aproximava, os meus batimentos cardíacos tornavam-se mais rápidos e fortes -...Eu...O que falei...O que quero dizer...Hum...Ah...

“Eu não consigo falar!”

– Eu... – cerrei meus punhos, fortemente – Eu...Quando eu disse...Aquilo que comentei... Ah! O senhor sabe ao que me refiro! – impacientei-me com meu próprio nervosismo. Essa onda de raiva camuflou outros sentimentos meus e impulsionou-me a falar – Quando disse que possuía ciúmes de você, eu...!

– Eu preciso dormir! – ele exclamou, de repente, batendo suas mãos espalmadas em seus joelhos e arqueando as sobrancelhas, como se acometido por uma súbita inspiração. Ele parecia aliviado por ter encontrado algo a dizer e, visivelmente, extasiado por sua escolha específica de palavras.

...

– O qu...?

– Boa noite, Rod! – ele retirou seu braço de meus ombros e levantou-se do sofá, em um movimento rápido e atrapalhado - Não deixe de assistir ao restante do filme! Ele é brilhante! O que é apenas esperado de um filme escolhido especialmente pelo incrível eu! Kesesese!

– Senhor Gilbert, nós...!

– Boa noite, Rod! – ele despediu-se de mim, entrando apressadamente em seu quarto.

Eu não pude dizer nada. Não pude reagir. Eu, por fim, havia compreendido o que estava ocorrendo.

Gilbert estava evitando aquele assunto. Ele, nitidamente, estava evitando aquele assunto.

Ele, simplesmente, queria rejeitar as memórias daquele incidente.

A absorção dessa ideia consumiu-me em uma violenta dor, que esforcei-me para reprimir, mas que deixou-me imóvel por vários minutos.

Gilbert estava tentando evitar o assunto. Gilbert queria ignorar aquela noite. Gilbert desprezara um momento que eu havia considerado extremamente significativo em nossa convivência.

Esses pensamentos latejavam incomodamente em minha mente. Eles pareciam possuir um peso físico que esmagava meu corpo.

Tomei fôlego. Recomecei o filme.

Aquela dor não fazia qualquer sentido e era um hábito meu, rejeitar aquilo que não fazia sentido.

Eu deveria me concentrar no piano e esquecer aquilo.

Meus olhos, pesadamente, centraram-se na tela.

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Durante todo o dia seguinte, meu comportamento foi severamente influenciado pelo meu rancor. Não preparei nenhuma das refeições de Gilbert, ocupei o piano incessantemente e limitei-me a falar apenas o imprescindível com ele. Minha conduta não foi despercebida por meu colega de quarto. Ele me perguntou diversas vezes se eu estava me sentindo bem, enquanto me observava com uma mistura de estranhamento e temor. Minhas respostas para essa repetitiva questão eram sempre frias e vagas. Desse modo, uma silenciosa tensão foi estabelecida entre nós. Como Gilbert não teve coragem para tentar rompê-la e não tive qualquer vontade de ceder, não estranhei sua declaração de que ele não precisaria do jantar, pois iria ao apartamento de Francis.

Eu havia descumprido meu acordo com Gilbert. Naturalmente, ele não teria a delicadeza de cumprir sua parte, apenas para melhorar meu ânimo. Não era inesperado que ele fosse encontrar seus amigos, após o dia desagradável que tivemos. Ainda assim, até a porta ser fechada, anunciando sonoramente a saída de meu colega de quarto, eu mantive alguma esperança que ele tomaria a decisão madura de permanecer em nosso apartamento e tentar apaziguar meu péssimo humor. Durante sua despedida, não respondi nenhuma das várias perguntas como “Você realmente está bem, jovem mestre?”, “Devo trazer algo preparado pelo Francis para o seu jantar?” e “Você faz ideia do quanto a sua expressão está assustadora?”, não me afastei do piano nem desviei meu olhar da partitura que examinava. Não houve qualquer demonstração do meu interesse de que Gilbert permanecesse.

Entretanto, havia aquela esperança em mim. Ela era uma discreta fagulha que existia em uma região muito profunda dos meus sentimentos, mas, ao perdê-la, fui atingido por uma significante pontada de dor, acompanhada por um sentimento nebuloso que mesclava raiva e desapontamento.

Por que tive esse tipo de pensamento ingênuo? Desde quando eu havia me tornado alguém tão estúpido?, eu me perguntava, enquanto encarava furiosamente o piano.

A culpa de meu aborrecimento não era inteiramente de Gilbert. Eu estava sendo tolo por me chatear com algo que deveria ser irrelevante para mim. Ademais, meu colega de quarto não possuía qualquer motivo para permanecer, visto que eu havia descumprido nosso acordo e, visivelmente, estava o tratando com desprezo. Eu sabia disso.

O que aumentava minha raiva.

Desejando esquecer aquelas reflexões amargas que não me traziam qualquer benefício, decidi tornar a ensaiar a Mirroir Nº03 de Ravel. Eu não havia conseguido controlar as mudanças notempo, os meus arpejos não soavam belamente e a minha execução ainda parecia um tanto confusa, pois eu ainda não havia compreendido o que deveria expressar, através daquela composição. Eu deveria me centrar na melhoria da qualidade de meu piano. Eu ensaiaria até que Gilbert voltasse. Ele deveria retornar por conta própria, pois eu, definitivamente, não o buscaria. Minhas memórias relacionadas ao apartamento de Francis não eram positivas e eu gostaria de evitar situações em que eu tivesse que interagir com meu colega de quarto.

Com essa resolução, comecei a tocar a Une Barque sur l’ Ocean.

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Perto da meia-noite, executei aquela que, provavelmente, poderia ser classificada como a mais colérica das performances de uma obra impressionista. Eu estava irritado, muito irritado, e descontei minha ira em minha execução. A imagem daquela obra supostamente deveria ser a de um barco repousando nas águas do oceano, enquanto essas se movem brandamente. Entretanto, a violência de minha interpretação mais aproximava essa música a um navio preso em tempestade no mar do que à serenidade do cenário imaginado por Ravel.

Meu dedilhar era rápido, agressivo e impaciente. O resultado não combinava com forma da composição, mas certamente expressava os meus sentimentos.

Gilbert ainda não havia retornado. Faltava menos de cinco minutos para a meia-noite e ele ainda não havia retornado.

Aquele imbecil!

Por que sua personalidade era tão enigmática? A gentileza que ele havia apresentado nos últimos dias havia gerado minha expectativa de que ele compreendesse meu silencioso pedido de que ele não fosse ao apartamento de Francis e permanecesse ao meu lado, tentando descobrir o que havia provocado minha insatisfação. Confesso que, considerando a ausência de profundidade em meu relacionamento com Gilbert, meu pedido era um tanto absurdo. Ainda assim, eu havia esperado isso, portanto, fui invadido por revolta e mágoa ao receber sua desconsideração. Eu me surpreendia com essa inusitada mistura de emoções perturbadoras, pois, embora pudesse entender a primeira, não consegui justificar racionalmente a segunda.

Gilbert não deveria ter saído. Gilbert não deveria demorar tanto.

Essas críticas eram dotadas de razão e podiam ser explicadas pelas normas do convívio social.

Gilbert não deveria ter evitado o assunto do qual eu falaria, ontem à noite.

Essa era a minha crítica mais insensata e a que mais ardia em meu coração.

Gilbert havia evitado o assunto. Era tão óbvio que ele havia o evitado. Ele poderia ter sido mais óbvio? Mesmo uma criança teria disfarçado melhor seu desinteresse em prolongar um diálogo.

Pensando nisso, minha execução subitamente tornou-se uma FFF, mesmo que não houvesse, em mim, qualquer desejo de conferir esse aspecto a minha interpretação. Naquele momento, eu não estava ensaiando. Apenas descarregando sentimentos que ferviam dentro de mim.

Por que Gilbert havia evitado aquele tema? Eu não havia esperado essa reação. Eu achei que ele veria em minha referência ao assunto, uma autorização indireta e iria avançar sobre mim ou fazer suas habituais propostas maliciosas. Nesse momento, eu corrigiria, por definitivo, a deturpada direção de seus pensamentos e explicitaria os limites que nos separavam e meu completo repúdio pelo relacionamento que ele possivelmente esperava conseguir comigo.

Entretanto, meu colega de quarto não reagiu dessa forma e fiquei absolutamente mortificado com essa inesperada variação em sua conduta.

Apenas um motivo podia ser convincente o suficiente para explicar por que ele havia se desviado daquele tópico tão energicamente. No entanto, recordar essa possibilidade sempre trazia um toque amargo a minha fúria insípida e acentuava a minha inexplicável mágoa, portanto, persistentemente, tentei ignorá-la, alcançando as notas com velocidade e violência. Esperando que a força de minha execução dragasse-me nela, de tal modo, que nada, além da música, existisse. Entretanto, os meus sentimentos persistiam a me atormentar.

Eles pareciam se intensificar a cada minuto da ausência de Gilbert.

Como eu os detestava. Como eu o detestava! Aquele tolo! A culpa era dele! Inteiramente dele!

Quando encerrei minha execução, percebi que meus pulmões doíam e que eu precisava preenchê-los. Enquanto respirava aceleradamente, realizei que, em meu estado de torpor, eu mal havia tomado fôlego, durante a minha agressiva execução da Miroir nº03.

“Honestamente, eu não consigo compreender o que está acontecendo comigo.” – pensei, exausto, depositando minha mão em meu rosto e sentindo-o arder, devido a intensidade da atividade que eu havia acabado de concluir.

Assim como a minha respiração, o meu coração também procurava encontrar uma estabilidade, após seu estado de extrema agitação.

Durante alguns minutos, permaneci nessa posição, tentando me recompor e esquecer meus pensamentos sobre Gilbert, a fim de executar uma performance mais coerente com a intenção original da obra de Ravel. O piano era prioritário.

Essa era a minha intenção, todavia, não consegui acalmar-me. A minha mente, meus pulmões e o disparado órgão em meu peito discordavam veementemente de meus planos.

“Eu realmente não consigo entender o que está acontecendo comigo.” - foi o pensamento, acompanhado por um suspiro, que antecedeu o recomeço de minha Une Barque sur l’ Ocean. Embora mais calma do que o anterior, ela ainda era mais tempestuosa do que qualquer versão dessa obra.

Melancolia, perturbação e absoluta cólera. Eram esses os meus sentimentos definitivos ao findar de minha segunda execução, quando Gilbert, por fim, chegou. Eu não poderia deixar de descontá-los nele.

Gilbert esforçou-se para ser discreto, em sua entrada. Ele tinha consciência de que havia feito algo que me desagradara e essa era a sua reação. Provavelmente, ele possuía uma tênue esperança de que eu não o perceberia. Ele iria para o seu quarto e, na manhã seguinte, todos os erros daquela noite seriam ignorados, como se dissolvidos pela luz matinal. Infelizmente, para ele, eu me encontrava tão consciente da sua presença que havia a noticiado, quando ele ainda abria a porta, e não, eu não ignoraria sua insensibilidade. Como eu poderia perdoá-la?!

Ele estava encostando, suavemente, suas costas na porta, em uma tentativa de fechá-la o mais delicadamente quanto fosse possível, quando ergui-me, encarando-o com fervor e apontando, em sua direção, acusatoriamente:

– Inaceitável!

Gilbert não estava preparado para a minha repentina exclamação e pareceu assustar-se com ela. Por alguns segundos, seus ombros foram contraídos, seu olhar vermelho arregalou-se e um som indefinido e um tanto agudo escapou por sua garganta. Ele agiu exatamente como uma criança flagrada poucos segundos antes da execução de uma travessura.

– A-Ah, Rod! O que há com você, aristocrata?! – ele riu nervosamente – Eu não me oponho a vê-lo tão enérgico, durante a noite, mas saiba que alguém menos incrível poderia ter se assustado com a sua reação a minha majestosa entrada!

– Você certamente se assustou. – retorqui, asperamente, cruzando meus braços sobre meu peito.

Kesesese! V-Você acreditou mesmo nisso, jovem mestre? – ele perguntou, ainda rindo forçadamente, sem afastar-se da porta – E-Eu não me assustei ou algo assim. Eu apenas fui intensamente surpreendido pela sua presença...!

– Eu não pretendo discutir sobre as suas péssimas mentiras, quando há tópicos mais relevantes para serem discutidos. – repliquei, aproximando-me dele – Senhor Gilbert, o seu retorno em um horário, como esse, não é aceitável e eu devo criticá-lo efusivamente. Eu já havia reclamado anteriormente dessa conduta e não posso...!

– Sim, sim. Desculpe-me, querida mãe. – ele disse, revirando os olhos, em um tom de escárnio – Por um momento, eu pensei que havia retornado ao incrível apartamento que divido com alguém apenas dois anos mais velho do que eu, mas parece que acabei me dirigindo acidentalmente a sua casa...

– Implicar comigo não lhe trará qualquer benefício!

– Ah, esse é um engano seu, jovem mestre. – ele replicou, sorrindo perversamente – Implicar com você parece-me uma atividade mais divertida do que escutar as suas reclamações, então, eu farei isso.

– A sua estupidez não possui limites?!

Discutimos por um longo tempo, todavia, não chegamos a um consenso. Gilbert se recusava a deixar de agir de um modo irritante e eu me recusava a vê-lo como algo além de um irritante. Finalmente, desisti de discutir com ele, dirigi-me ao meu quarto e deitei-me, sentindo que minha cabeça pesava mais do que todo o restante de meu corpo.

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Espanto.

Essa é a palavra mais adequada para definir meu sentimento imediato, quando Gilbert casualmente anunciou, durante a noite de domingo, sua intenção em assistir outra animação japonesa comigo. “Desconfiança” seria o nome do posterior.

Eu não podia entender aquilo.

Nossa terrível convivência não havia sofrido qualquer melhora no domingo. Novamente, evitei falar com Gilbert, encará-lo e permitir que ele utilizasse minimamente o piano. Gilbert, por sua vez, não teve qualquer interesse em melhorar meu humor e, esporadicamente, lançava-me um olhar impaciente, como se não compreendesse como eu não percebia que eu era o culpado por nosso desentendimento.

Nós sequer estávamos conversando, mas ele pretendia assistir a uma animação japonesa comigo, como se essa fosse uma ação perfeitamente natural.

Como eu poderia compreendê-lo?

– Eu não vejo por que eu deveria assistir a algo com você, senhor Gilbert. – declarei, sentado ao lado dele, no sofá, com uma voz despida de gratidão ou afeto.

– Porque o seu aborrecimento abrupto e injustificado provavelmente está sendo provocado pela sua menopausa e distrair-se seria uma ótima forma de esquecê-lo? – tomei essa sentença como uma questão, apesar da vírgula de sua frase ser praticamente imperceptível.

– Nunca lhe ocorreu a ideia de que você poderia ser o culpado pela minha raiva?

– É claro que não, Rod! – ele riu, debochadamente, estendendo sua mão. A sua expressão sugeria que ele via uma grande comicidade nessa possibilidade impensável. – Por ser tão incrível, eu nunca irrito alguém, sem possuir essa intenção!– ele comentou, com um pequeno sorriso, enquanto agitava suavemente seu rosto.

– Você constantemente me irrita.

– Eu tento. – ele sorriu. Depois, seu semblante adquiriu inesperada seriedade. – Dessa vez, não foi esse o caso.

–...Eu não acredito nisso. – murmurei.

– Hã?

– Você está tentando me irritar. De um modo um tanto cruel, na verdade.

Eu não conseguia parar. As palavras escapavam por minha boca, como se desabassem dela.

– Hã?!

– Você me disse que iria me ajudar a melhorar meu piano! – exclamei, encarando-o com mais mágoa do que rancor – Você me prometeu! Inicialmente, eu não acreditei nessa promessa... – minha voz tornou-se um doloroso sussurro melancólico - Você não imagina o quanto fiquei feliz, quando pensei que havia uma possibilidade que você a cumprisse.

– Rod...

– No entanto, ao invés de ajudar-me, você simplesmente está me fazendo assistir a várias animações que não possuem nenhuma relação com os meus propósitos! Quantas noites você pretendia me fazer desperdiçar, antes de admitir que essa era apenas uma brincadeira?! Você está se divertindo, vendo que estou tão desesperado que estou disposto a usar qualquermétodo para conferir alguma vida ao meu piano?!

Eu não conseguia parar. Eu simplesmente não conseguia parar. Eu não queria parar. Aqueles sentimentos que sufocavam-me por dentro, vinham como uma chuva que gradativamente torna-se mais violenta.

– Rod, eu...

Eu não tinha força para detê-los. Eu não queria detê-los!

– Você não possui consideração pelos meus sentimentos!

– Como? – o tom dessa pergunta foi um pouco mais grave e severo do que suas tentativas iniciais de interpelar-me, todavia, eu estava demasiadamente exaltado para importar-me com essa discreta mudança e prossegui minhas ardentes exclamações.

– Você sabe que eu não quero que você passe um longo tempo no apartamento dos seus amigos! Por que você faz isso?!

– Rod, escute...

– Por que você debocha dos meus esforços para melhorar o meu piano?! O que há de cômico nos meus empenhos?! Eu sei... Eu sei que não conseguirei tocar como você, por mais que eu tente, mas... Eu preciso tentar! Eu amo o piano! Eu não o toco meramente como um entretenimento! Tocá-lo é uma necessidade física, mais importante do que a minha sede e mais natural do que a minha respiração! Como alguém que o toca, com tamanho descaso, poderia compreender o significado da minha persistência?!

– Rod, você precisa se acalmar...

– “Você precisa se acalmar”... – repeti, com escárnio - Não há necessidade que você aja como um hipócrita. Eu sei que você está apenas tentando evitar o assunto, novamente.

– Rod, nós não falamos sobre...

– Por que você está ignorando aquela noite?! – minha agressividade retornou rapidamente.

– Rod, do que você está...?

– A noite em que fomos ao apartamento de Francis! A noite em que bebi excessivamente e vi-me obrigado a voltar em suas costas! A noite em que você prometeu me ajudar a melhorar meu piano! A noite em que eu declarei que possuía ciúmes de você!

Houve um profundo silêncio.

– V-Você... Você... – eu balbuciei, usando minha mão para cobrir a minha boca - Você não precisa externar tanto a sua aversão pelo que eu disse! E-Eu... Eu não queria dizer nada realmente relevante...! Eu estava alcoolizado! Não houve um significado profundo nas minhas palavras! Você não precisa deixar tão evidente o seu repúdio pela ideia de que... Bem... Pela ideia de que... Eu tenha sentimentos românticos por você.

–...

– Que irônico. Apesar dos seus assédios constantes e da naturalidade com a qual você se deita com outros homens e mulheres, a sua reação ao chegar à errônea conclusão de que sinto algo por você foi uma tentativa estúpida de desprezar a minha suposta confissão... Gilbert Beilschmidt, você é a última pessoa pela qual eu me apaixonaria, então...!

Nesse momento, eu não pude continuar a falar. Gilbert tomou meus pulsos com força e, em um movimento rápido e firme, pressionou-me contra o sofá e lançou-me um olhar tão sério que perdi inteiramente a capacidade de reagir. Por mais intensa que fosse a minha vontade de exigir que ele se afastasse, nenhum som escapava pela minha garganta.

– Eu sei disso. – ele murmurou, em uma voz baixa e grave – Eu não acho que você sinta algo por mim.

Gilbert se calou. Ele não ousou me encarar, enquanto admitia seus pensamentos, mas seu silêncio permitiu que seus olhos, por fim, encontrassem os meus. Seu olhar vermelho era firme, sério e ansioso. Esse era o momento em que eu deveria dar uma resposta.

–...

No entanto, eu ainda não havia recuperado a minha voz.

Eu não conseguia pensar. A sensação das mãos de Gilbert atadas em meus pulsos, sua respiração acelerada e quente contra o meu rosto e a intensidade escarlate de seu olhar impediam a ordem de minhas ideias.

Após um angustiante momento de silêncio, Gilbert abaixou seu rosto e suspirou brevemente, resignado com a minha incapacidade de retorqui-lo. Em seguida, soltou um de meus pulsos e usou o outro para me erguer do sofá e carregar-me até o piano, sem explicar-me seu intento.

– Sente-se. – ele pediu, com suave autoridade.

Eu deveria ter recriminado a sua petulância. Gilbert não possuía o direito de exigir-me nada. Em fatos, era ele que me devia muitas desculpas. Infelizmente, não pude externar minhas queixas, pois Gilbert ainda segurava meu pulso e esse simples gesto era suficiente para manter-me em silêncio.

Sentei-me de forma quase automática e esperei por meu colega de quarto que se dirigiu ao seu quarto, trazendo, ao voltar, duas partituras.

Ele sentou-se ao meu lado, colocou uma das partituras sobre o piano e estendeu seus braços.

– Rod, - ele disse, com um sorriso fraco, enquanto lia a partitura a sua frente - você prestou atenção nos filmes que assistimos ou estava ocupando sua mente com teorias conspiratórias a respeito do incrível eu?

– E-Eu não poderia deixar de estar atento ao conteúdo desses! N-Não é o meu interesse fazer acusações injustas...!

– Sim, sim, jovem mestre. – ele falou, em um tom desinteressado, ainda observando a partitura. Senti o rubor em minhas faces intensificar-se, ao perceber que ele não me levava a sério.

“O que ele está fazendo?” – perguntei-me, observando atentamente seus movimentos. Eu não entendia o que ele pretendia me mostrar, contudo, percebendo que ele tocaria o piano, esperei em trêmula ansiedade.

– Jovem mestre, esse é o momento em que devo explicar minhas intenções. Confesso que pretendia adiá-lo um pouco mais... Argh. Como eu poderia imaginar que você seria tão impaciente? Um aristocrata como você deveria estar habituado a lidar com procedimentos burocráticos! – ele exclamou, olhando para mim, como se fizesse uma acusação.

– Há algum propósito em sua argumentação incoerente? – questionei, com severidade.

– Prepare-se, Rod! – ele exclamou animadamente, ignorando meu questionamento – A minha justificativa é incrível demais para ser expressa em palavras, portanto, eu me expressarei, através desse piano!

Revirei os olhos e abri a boca para replicá-lo, mas fui impedido pelo som de notas estranhamente familiares.

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Quando Gilbert começou a tocar o piano, antes que eu pudesse ser dragado pelos sentimentos da composição, fui tomado por uma imagem. Uma imagem perfeitamente nítida que eu via como se estivesse a minha frente.

Uma floresta com grandes árvores, repleta de flores, envolta pela imensidão azul do céu.

Por que eu via esse cenário, quando havia uma intensidade quase dramática, naquela composição?

Por alguma razão, eu conseguia enxergar aquela cena. Por um motivo igualmente desconhecido, ainda que eu não entendesse racionalmente a associação entre ela e a música executada, sentia a combinação entre os sentimentos que ambas traziam. Percebi que elas se complementavam.

A inocente alegria de crianças brincando pelos campos. O respeito e fascínio dos homens, pela imensidão verde que os cerca e a consciência de que aquele lugar praticamente não sofria as mudanças do tempo que tanto os afetava. Eu conseguia identificar essas emoções, através de cenários que vinham a mim como lembranças distantes, ainda que eu nunca houvesse as vivenciado. Eu via uma senhora trabalhando nos campos, duas meninas rindo e correndo, a floresta, as estradas de terra, as casas, antigas e simples, cercadas por plantas...

Perguntava-me como eu poderia reconhecer tão facilmente as emoções envoltas, naquele cenário, quando não havia vivenciado aqueles momentos por sempre ter habitado regiões urbanas. Aliás, de onde ele havia surgido? Por que uma floresta? Por que o campo?

De repente, um elemento adicional veio a minha imagem e tudo tornou-se claro. Obtive, por fim, minha resposta.

Sobre uma das gigantescas árvores de meu cenário, estava um estranho ser denominado “Totoro” tocando um instrumento de sopro cujos sons espalhavam-se pela paisagem.

– Essa composição... – murmurei, ainda tomado pelos efeitos da intensidade de minha realização.

– “The Wind Forest”, Joe Hisaishi. – ele respondeu à pergunta que eu não havia feito, sem cessar sua execução – Parte da trilha sonora de Tonari no Totoro.

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Gilbert não exibia uma vasta diversidade de emoções. Eram raros os momentos em que ele demonstrava sentimentos diferentes de um divertimento sádico, sendo esses breves e discretos. Eu não poderia criticá-lo por isso. Similarmente a meu colega de quarto, eu apreciava a minha estabilidade interior e me esforçava para esconder as minhas acidentais oscilações internas. Todavia, as emoções escondidas pelo riso debochado de Gilbert e minha expressão austera eram reveladas, quando ele tocava o piano.

Felicidade. Melancolia. Ira. Tristeza. Ele conseguia expressá-las no piano, junto a outros sentimentos que não podiam ser nomeados. O piano de Gilbert parecia externar uma parte oculta de seu coração e conseguia comunicar-se diretamente com o meu. Quando ele executava uma composição, eu não conseguia concentrar-me em detalhes técnicos ou dados. Era completamente imerso por sua performance e a sentia tão intensamente que descobria, em mim, sentimentos que eu não sabia possuir.

Quando ele tocou a The Wind Forest, eu, novamente, fui tomado pela beleza e sinceridade da sua expressão no piano. No entanto, dessa vez, houve um elemento adicional. Havia uma sincronia entre nós. De certo modo, sempre houve certa sincronia entre nós, quando ele tocava o piano. Eu sentia a emoção que ele expressava e era completamente absorvido por essa. Todavia, não conseguia entender como Gilbert havia alcançado aquela percepção sobre a composição. Eu não conseguia ver uma imagem.

Entretanto, ao ouvi-lo tocar a The Wind Forest, eu pude enxergar o que Gilbert provavelmente estava visualizando no momento. As árvores. As folhas verdes sendo agitadas pelo vento. Um ser mitológico passeando por uma floresta. Eu conseguia ver a mesma imagem que Gilbert. Eu podia entendê-la.

O que me deixou feliz. Muito feliz. Mais do que gostaria de mostrar a meu colega de quarto.

Quando a apresentação terminou, lancei um olhar demorado a ele. Um olhar de realização que continha algum assombro e, sobretudo, admiração. Evidentemente, eu não esperava que essa fosse percebida por ele.

Eu não sabia o que deveria dizer. O olhar escarlate de Gilbert tornara-se sério novamente. Eu me perguntava se havia o ofendido com minhas acusações infundadas.

– É a sua vez, jovem mestre. – ele sorriu brevemente, antes de me entregar a segunda partitura.

Entendi o significado desse gesto. Eu a apanhei com cuidado, como se aquele objeto pudesse se desmanchar com um contato mais rude. Era uma partitura vermelha e em sua capa, em letras de forma, havia o título “The merry-go-round of life – Joe Hisaishi”.

Um pequeno sorriso escapou por meus lábios.

– Essa é outra composição pertencente à trilha sonora de Tonari no Totoro?

– Sem chances. Se tocássemos composições da mesma animação, você insistiria em comparar nossos pianos e se deprimiria, de novo, pois as minhas habilidades são tão incríveis que qualquer um que quisesse alcançá-las acabaria chorando!

– Essa é uma suposição bastante arrogante. – retruquei, franzindo as sobrancelhas, em uma expressão reprovativa, enquanto examinava a partitura em minhas mãos.

Kesesese! Que insulto original, jovem mestre! Devo aplaudir sua criatividade?

– Fique quieto. – solicitei, tentando conferir severidade ao meu tom, mas transmitindo involuntariamente algum afeto a ele.

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The merry-go-round of life.

Após ler a partitura, pude identificá-la. Era o tema principal da animação Howl’s Moving Castleque sofria variações, durante o decorrer do filme. Esse reconhecimento trouxe-me a confirmação do que eu supunha ser a intenção de Gilbert e provocou-me uma intensa ansiedade quanto a minha execução daquela peça. Eu queria tocá-la. Queria ver o cenário da composição e refletir apropriadamente o sentimento presente nesse. Essa expectativa gerou, em mim, uma ânsia mesclada à animação e receio.

Como eu poderia evitá-la? Após presenciar a apresentação de Gilbert e, pela primeira vez, enxergar nitidamente a imagem que essa possuía, eu estava entusiasmado com a possibilidade de visualizar um cenário, enquanto tocava o piano. Quando eu tocava, a música se limitava a notas e movimentos e eu não queria isso. Eu queria utilizar o piano como instrumento para a comunicação entre almas, como Gilbert fazia. Almejava comover, surpreender e entreter as pessoas que me assistissem. Deixá-las tão atônitas e impressionadas quanto Gilbert deixava-me. Eu desejava sinceramente isso, portanto, estava com medo.

Essa era a minha primeira oportunidade para melhorar consideravelmente meu piano. Logicamente, eu estava feliz por recebê-la, mas... o que aconteceria se eu falhasse? Talvez, ao tocar as teclas do piano, mesmo reconhecendo a música e compreendendo sua imagem, eu não conseguisse senti-la ou externar os sentimentos dessa. Esse desapontamento seria tão profundo que eu temia senti-lo.

“Além disso, depois de perceber que não consegui alcançar os resultados que ele esperava, Gilbert pode desistir de mim.” - concluí, fitando o piano com receio e sentindo essas palavras afundarem-se pesadamente em meu corpo.

Gilbert poderia desistir de mim. Essa era uma possibilidade concreta e era assombroso como ele ainda não tinha o feito. Eu havia o acusado injustamente e descarregado minhas frustrações nele, como um adolescente rebelde que se julga incompreendido. Por muito menos, eu teria expulsado Gilbert do apartamento. Entretanto, ele estava ao meu lado. Não parecia atingido pelas minhas ofensas e explicava-me pacientemente o motivo das suas ações.

Gilbert não sabia, pois mantive uma forçada expressão indiferente, durante toda a minha análise da partitura, mas eu reconheci verdadeiramente o que ele havia feito por mim. Eu era profundamente grato a Gilbert. Seria terrivelmente embaraçoso contar-lhe isso, portanto, eu esperava que a qualidade de minha execução fosse suficiente para satisfazê-lo. Uma performance satisfatória seria um elogio indireto que ele, em sua arrogância, não deixaria de perceber, pois seria uma indicação de que seus “incríveis” planos haviam decorrido conforme suas expectativas.

Consciente disso, eu me perguntava o que aconteceria, caso eu sequer pudesse tocar como ele desejava.

Gilbert poderia desistir de mim. Eu estava ciente dessa hipótese e não podia conter meu medo de que ela se concretizasse. Sua rejeição me atingiria como um golpe físico, e não sabia como o suportaria.

Resumidamente, eu estava entusiasmado com o que havia acabado de vivenciar, durante a apresentação de Gilbert, e com a pequena probabilidade de que eu finalmente conseguisse imergir voluntariamente em minha execução de uma composição, mas o meu receio de falhar não permitia ficar verdadeiramente feliz e tornava as minhas mãos mais gélidas do que o vento frio daquele outono.

Após uma longa e hesitante leitura da partitura que eu tocaria, convenci-me de que não havia um modo de fugir daquilo. Eu precisava tocá-la.

– Rod. – chamou-me Gilbert, apanhando minha mão, enquanto eu colocava a partitura sobre o piano. Eu iria reclamar daquele contato e daquela interrupção, mas ele adiantou-se e disse, sorrindo – Você imagina por que razão eu decidi que você deveria tocar justamente a “Merry-go-round of life”, dentre todas as composições que poderia ter escolhido?

– Não. – respondi honestamente – No entanto, imagino que sua resposta será algo como “porque sou incrível”.

Kesesese! Pensando melhor, também é por isso! – ele riu. Depois, estendeu sua mão e disse, com um sorriso orgulhoso e um tanto debochado – No entanto, houve uma razão mais específica, jovem mestre.

– Devo perguntar qual seria essa ou a sua resposta será apenas um comentário implicante e desnecessário?

– Eu tive a impressão de que você poderia compreender os sentimentos dessa peça, em específico. – ele disse e seu sorriso adquiriu inesperada suavidade.

– Por quê?

– Eu não faço ideia! – ele exclamou, rindo – Bem, a protagonista é uma velha, então eu posso ter feito uma associação inevitável! O que acha, jovem mestre?

– Eu sabia que acabaria assim. – lamentei, cobrindo meu rosto com minha mão esquerda, a única disponível, visto que Gilbert ainda segurava a outra.

Meu colega de quarto continuava a rir fartamente de seu próprio comentário implicante que me proporcionou uma latente irritação, mas esvaiu consideravelmente meus temores. Como ele podia me aborrecer daquele modo, quando, supostamente, estava sendo gentil? A sua aptidão para fazer comentários desagradáveis em momentos importunos era notória. Minha impaciência normalmente teria motivado-me a afastar sua mão, contudo, percebi que ela aquecia eficientemente a minha e convenci-me a, apenas por essa razão, permitir que aquele contato se prolongasse.

Foi Gilbert que tomou a iniciativa de desvencilhar-se de mim.

– O que me diz, jovem mestre? – ele sorriu - Eu posso assisti-lo executando uma performance que, inevitavelmente, será menos incrível que a minha?

Minha resposta limitou-se a um som aborrecido que apenas aumentou o sorriso de Gilbert. Apesar de ligeiramente ofendido com a sua colocação, naquele momento, nenhum receio importunava-me. Em poucos segundos, com apenas algumas palavras, ele havia conseguido mudar inteiramente o meu ânimo. Era perturbador perceber os efeitos que aquele tolo provocava em mim e eu não podia deixar de me recriminar por ser tão influenciável.

Terminei de ajeitar a partitura e encarei o piano com determinação. Eu o tocaria.

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Um início melancólico marcado por algumas notas introdutórias em andante. Ao tocá-lo, não fui tomado por uma imagem, mas percebi o seu significado. Ele expressava o cotidiano maçante e bucólico da protagonista, uma personagem insegura e conformada com sua vida vazia. Eu conseguia entendê-la. Eu podia colocar-me em seu lugar, pois entendia perfeitamente o que a afligia.

“Melancolia, insatisfação contida, insegurança...”. – pensei, acompanhando as nuances da composição.

Surpreendentemente, após a introdução, vinham notas rápidas e alegres, em um tema repleto de euforia. Por que isso ocorria? O que havia mudado? O que aconteceu, após a protagonista ser amaldiçoada?

“Ah.” – recordei-me, enquanto tocava vividamente - “Ela encontrou o Howl.”.

Era essa a explicação. Eu estava certo disso. A mudança na direção da composição devia-se a uma mudança no espírito da personagem. Como aquela composição, ela, inicialmente, encontrava-se em um estado de pessimismo e tristeza, contudo, seu encontro com Howl alterou significantemente seu destino. Ela encontrou problemas, preocupações e chateações que nunca teria, caso não tivesse o conhecido. Todavia, sem ele, a protagonista nunca teria se desviado de seu conveniente cotidiano para presenciar o fantástico e conhecer diversas emoções que compensavam o tumulto que a envolvera. O tema da composição torna-se alegre, assim como a protagonista, e tão agitado quanto o destino que ela decidiu aceitar.

Eu realmente conseguia entendê-la.

Os sentimentos de alguém que foi arrastado de sua rotina calma e insípida para vivenciar o caos e, de algum modo, descobrir nele uma felicidade que ela desconhecia... Por alguma razão, eu os entendia muito bem. Sendo franco, eles me pareciam familiares.

– Você continua desonesto consigo, não é, jovem mestre?

Demorei um momento para perceber que não havia sido Gilbert que havia dito isso.

Eu, simplesmente, havia imergido em uma imagem e, por alguma razão, meu colega de quarto estava nela. Havia sido o Gilbert dessa imagem que havia me dito essas palavras cujo significado era desconhecido por mim.

A minha concentração nos sentimentos da peça, finalmente, provocou-me o efeito que eu desejava. A minha mente abstraiu-se do que havia ao meu redor e manteve apenas o que era necessário para a minha execução. A minha consciência das notas que tocava e uma imagem.

Eu e Gilbert estávamos andando sobre as nuvens de um céu intensamente azul.

“Por que ele está aqui?” – perguntei-me, envergonhado e frustrado por tê-lo incluído em meu devaneio, mas tentando focar-me na alegria de ingênua de saltar sobre as nuvens, que combinava muito mais com aquela parte da composição.

O que há com essa redução no tempo, Rod? A minha incrível presença o desnorteou tanto? Kesesese!

“Mesmo em minha imaginação, ele continua agindo como um tolo.” – concluí, com aborrecimento.

Não aja com hipocrisia, Rod. Você sabe quais são os sentimentos da Sophie. Você os conhece.

“De certo modo, eu posso entendê-los.”

– Claro que os entende! Você já os vivenciou! Você está sentindo-os, agora, não está?

“Como assim?”

– Nesse momento, você não está apenas executando notas, Rod. Você está vivenciando a música. Apenas isso seria o bastante para torná-lo feliz. A minha incrível presença e apoio são adicionais que não podem ser ignorados, mas...

“De fato. Eu estou feliz e consigo entender as escolhas e emoções vivenciadas por ela.”

– Esse é um cenário agradável, Rod.

“Sim.”

– Saltar nas nuvens é divertido.

“O Gilbert original não diria linhas tão infantis sem se constranger.”

– Infantil? Essa é a sua imaginação. O motivo, pelo qual, estamos aqui e eu estou dizendo essas linhas é porque você acha que saltar nas nuvens é divertido.

Sorri discretamente e observei a imensidão anil na qual se encontravam as nuvens, como manchas brancas em uma pintura. Saltei da nuvem onde me encontrava para uma menor, que estava relativamente próxima a minha anterior.

Eu admitia que aquilo era divertido.

Fui surpreendido por uma nova mudança no tema que, novamente, tornou-se melancólico.

As nuvens escureceram e pude ouvir o soar distante de alguns trovões.

“O que foi isso?”

– Ah. A hesitação e preocupação da personagem. Ela conheceu o Howl e se apaixonou por ele, vivenciando diversos momentos alegres, no entanto...

“Vivenciar momentos felizes, não indica que você sempre estará feliz.”

Exatamente. Apesar das alegrias, também há dificuldades em um relacionamento. Ela as sofreu bastante, durante o filme. Eu não me refiro apenas à ação...

“Você se refere à cena da chuva.”

O sorriso dele tornou-se mais largo. A cena da chuva mostrava por que o tema melancólico devia ser retomado. Apesar de ter conquistado a felicidade, ela ainda era uma garota insegura. Ela não poderia simplesmente adotar uma atitude confiante e ignorar as suas preocupações, por mais que tentasse parecer forte.

Gradualmente, as nuvens perderam sua coloração cinza e adquiriram tons róseos e alaranjados.

O tema alegre retorna. Você compreende essa oscilação, jovem mestre?

“Eu entendo. Os sentimentos da personagem não são estáveis. A composição acompanha essa variação. Assim como ela sofre decepções, também recebe surpresas deleitáveis.”.

– Precisamente. Você consegue acompanhar essas mudanças, Rod?

“Eu me esforçarei.”

As cores das nuvens variavam junto às notas, adquirindo tons alegres ou tristes, assim como a música.

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Quando encerrei minha execução, a minha imagem foi rapidamente dissolvida, como se absorvida pela realidade. Os tons azuis, róseos e alaranjados foram substituídos pelas cores neutras de meu apartamento. Eu não via nuvens, apenas móveis. O meu retorno ao concreto foi súbito e intenso.

A sensação que tive, ao terminar a Merry-go-round Of Life, era similar a que possuímos ao despertar de um sonho que nos leva a uma realização. Minha respiração era rápida, mas insuficiente. Minhas mãos permaneciam sobre o teclado, trêmulas e dormentes, incapazes de se mover. Eu estava completamente feliz e surpreso com meus próprios resultados e tive muito orgulho do meu pequeno feito.

Eu havia visto uma imagem! Havia compreendido a composição! Não me limitei a ler uma partitura! Minha perfomance acompanhou os sentimentos da composição e os meus. Sentimentos que, momentaneamente, pude compreender tão bem! Meu avanço era modesto, mas significativo. Eu tinha a consciência de que apenas havia visto aquela imagem, pois essa era uma composição composta para um cenário específico que eu já havia visualizado em um filme. Em resumo, eu apenas havia a enxergado, devido à praticidade do método educativo de Gilbert. Eu estava ciente disso, mas decidi desconsiderar essa informação. Sentia-me tão feliz que pude desprezar com facilidade, o que normalmente teria me afetado. Aquele sentimento alegre que saltava em meu peito perdurou intensamente, mesmo após o término de minha execução.

"Pergunto-me se existem outras composições que me permitam saltar sobre as nuvens." - pensei, sem conseguir evitar um olhar demorado e afetuoso para a partitura a minha frente e o surgimento de um tênue sorriso em meu rosto.

Por estar tão feliz, fui capaz de pensar em linhas tão constrangedoras e inacreditáveis. Por estar tão feliz, voltei-me para Gilbert, sem pensar, com um sorriso inevitavelmente fixo ao meu rosto.

Apenas quando percebi a proximidade de seu olhar escarlate, dei-me conta de que minha ação havia sido um erro. Um trágico erro. Gilbert estava tão próximo a mim. Céus. Tão próximo. Nunca percebi que a distância entre os bancos de duas pessoas que estão em um mesmo piano era tão curta.

Meu rosto, imediatamente, foi tomado por um tom escarlate. Meu sorriso foi cessado e meu olhar, desviado para o chão.

Aquela não era a primeira vez em que eu me encontrava próximo a Gilbert. Em fatos, nós tivemos uma considerável quantidade de contatos físicos muito mais impróprios do que nossa atual situação. Entretanto, a diferença entre esses momentos e este estava na ordem dos meus sentimentos. Quando meu colega de quarto assediava-me, eu não podia sentir nada além de raiva e constrangimento, o que era apenas natural considerando-se quão inadequada era a sua conduta. Todavia, naquele momento, eu era incapaz de me sentir aborrecido com Gilbert. Se senti alguma fúria, ela foi rapidamente sobreposta pelos sentimentos que me dominavam no momento. Eu sentia gratidão por meu colega de quarto. Possuía uma grande admiração por ele e uma gotícula de algum sentimento confuso que decidi ignorar.

O que eu deveria dizer para aquele tolo que sempre me ajudava? O que deveria dizer para aquele idiota que, de algum modo, compreendia-me tão bem? Como eu poderia me desculpar pela injustiça dos meus insultos?

Após um longo silêncio, no qual não pude ver seu rosto, pois meu olhar era intencionalmente desviado desse, finalmente, tomei fôlego e perguntei, com o rosto ainda abaixado e muito vermelho.

–...Por que você não me revelou suas intenções? Se você tivesse me explicado, eu não...!

– Espere, jovem mestre. - interrompeu-me Gilbert, um pouco impaciente - Por favor, não comece a falar como se achasse que eu pretendia fazer uma surpresa ou algo similar. Surpresas não são nada incríveis, Rod. Elas são tão clichês que me fazem rir. Digo, a história do homem que passou o dia sendo desprezado pela esposa, filhos e amigos e, ao anoitecer, volta para casa e descobre que esses estavam organizando sua festa-surpresa de aniversário é batida demais! O incrível eu não faria algo tão previsível quanto uma surpresa! - após fazer essa declaração, agitando seu rosto, com os olhos fechados, como se, com esse gesto, tentasse externar seu completo desprezo por qualquer forma de surpresa, ele prosseguiu, sorrindo que poderia externar tanto animação quanto deboche. - Eu tive motivos mais razoáveis para evitar contar-lhe a profundidade de meus incríveis procedimentos. Você sabe, Rod, eu conheço você e suas manias aristocráticas. Nós moramos juntos há meses! Eu estava certo de que, caso contasse os meus métodos, você se esforçaria para decorar cada detalhe da paisagem dos filmes, a sincronia entre a passagem das imagens e a das notas... Argh. Como seria chato!

– Eu não faria...!

– Rod. - ele falou meu apelido com um tom cansado, como se não tivesse disposição para defender um ponto obviamente correto.

–...Suponho que eu faria isso. - admiti, constrangido e aborrecido por ver o quanto meu comportamento era previsível para as pessoas que me conheciam.

Kesesese! Claro que faria! - sorriu Gilbert, arrogantemente - O incrível eu declarou isso, então essa é uma verdade inquestionável!

– Você é tão presunçoso...

– Bem, minhas presunções certamente se mostraram úteis, não acha, jovem mestre? - ele riu - De qualquer modo, eu gostaria que a experiência de tocar o piano se tornasse algo mais natural para você, Rod. Sabe, há vários estilos e modos de se tocar o piano e nenhum é mais certo do que os outros. Com exceção ao meu, claro, que é superior ao de todos, mas, como eu disse, a humanidade ainda não possui sabedoria suficiente para alcançá-lo. O Shostakovich tocava mais rápido do que as partituras das suas próprias composições instruíam. O Horowitz era o único pianista que conseguia executar uma das melhores performances de uma execução, cometendo erros ao tocá-la. Há vários modos de se tocar o piano, Rod, então não vale a pena que você se compare a outros pianistas. Descobrir as emoções presentes em uma composição e expressá-la ao seu modo é mais interessante. Por esse motivo, eu aluguei os filmes da Ghibli e os assisti com você, sem explicar minhas razões. Eu estava certo que você me entenderia, quando tocasse o piano...

O semblante de Gilbert possuía alguma seriedade, embora esse estivesse sorrindo e isso me chocou tanto quanto suas palavras. Ele parecia tão maduro!

– Senhor Gilbert, você... - comecei a falar com uma voz carregada de comoção e respeito.

–...Além disso, eu achei que seria divertido torturá-lo um pouco, jovem mestre! Kesesese!

– Senhor Gilbert, você é um tolo.

Eu não duvidava que uma parte das motivações de Gilbert para não me contar por que estávamos assistindo animações japonesas com o propósito de melhorar a minha imersão em composições fosse seu mero prazer em implicar comigo. Entretanto, eu também sabia que esse não havia sido seu único propósito e essa convicção teve um forte significado para mim que não me vi capaz de expressar abertamente. Não demonstrei gratidão ou arrependimento. Por outro lado, Gilbert também não se comportou como se os esperasse. Após a sua explicação, ele riu da minha réplica mal-humorada, perguntou-me se eu já havia jantado e, recebendo uma resposta negativa minha, ofereceu-se a preparar algo, o que recusei firmemente.

Por um momento, aguardei com ansiedade e apreensão que ele falasse sobre o conflito que tivemos, antes de ir ao piano. Eu queria falar sobre isso. O que era intrigante, visto que eu também sentia algum medo em voltar àquele tema. De qualquer modo, eu esperava que Gilbert se expressasse, fornecendo-me uma oportunidade para me desculpar polidamente e encerrar aquela noite. Todavia, contra as minhas expectativas, ele apenas sorriu, disse que precisava dormir e deu-me as costas, enquanto eu o encarava. Perplexo e imóvel.

Aquela cena era excessivamente familiar.

Por ser tão familiar, ela me fez recordar de que Gilbert, apesar de ter explicado seus métodos para me ensinar a associar imagens a composições, não havia dito por que ele estava ignorando a declaração que eu havia feito a algumas noites atrás.

Ele realmente pretendia continuar a ignorá-la? Por quê? Ele não teria...?


Eu sei disso. Eu não acho que você sinta algo por mim.


...

Ao lembrar-me das palavras de Gilbert e da extrema seriedade com a qual ele as pronunciou, deveria ter sentido alívio e conforto. No entanto, eu não conseguia me sentir assim. O meu coração estava dolorosamente comprimido.

Eu esperava que aquela dor fosse apenas culpa. Eu desejava que fosse apenas culpa.

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Nossa segunda-feira foi muito diferente dos dois dias anteriores. Extremamente diferente, para ser sincero.

Como não havia pedido desculpas a Gilbert por ter brigado com ele, sem uma razão convincente, durante todo o dia, esforcei-me para que minhas ações compensassem meu erro. Durante a manhã, eu saí cedo para comprar ingredientes e pude preparar um enorme café-da-manhã para meu colega de quarto. Fiz uma torta de pêra, sucos, geleias e saladas. Foi um grandioso café-da-manhã e senti-me muito orgulhoso em tê-lo preparado. Não é necessário comentar que Gilbert também ficou bastante satisfeito com minha repentina generosidade e devorou avidamente sua refeição matinal. Algo parecido ocorreu, durante o almoço. Mais uma vez, eu decidi me esforçar e preparei uma torta de carne que, definitivamente, seria do agrado de meu colega de quarto. Ele, novamente, demonstrou grande entusiasmo pela refeição.

Além desses atenciosos gestos, meu tratamento com Gilbert adquiriu alguma suavidade. Eu não passei a sorrir para ele e ainda utilizava o termo 'senhor', antes de dizer seu nome, mas, ao meu modo, estava tratando-o com consideração.

Usualmente, eu teria acreditado que minhas ações eram suficientes para agradecer a gentileza de meu colega de quarto e retornaria aos meus modos habituais e à minha preocupação constante com o piano, mas, dessa vez, não pude fazê-lo. Eu sabia que Gilbert não conseguia perceber a minha gratidão e recriminava-me por isso. O meu orgulho tornava-me incapaz de demonstrá-la. Dizer sentenças simples como "Obrigado. Eu fico muito feliz com o seu apoio e sou sinceramente grato por tudo o que fez." era algo impossível para mim. O meu rosto ardia intensamente e eu tinha o estranho desejo de bater minha cabeça repetidamente em algum móvel sempre que imaginava-me falando isso.

Apenas fazer as refeições de Gilbert não mostrava nenhuma expressão particular de afeto. Eu já havia feito refeições para ele. Era um dever meu, devido a um acordo entre nós. Além disso, eu não conseguia expressar diretamente as minhas emoções. O que me levou a apelar para um último recurso.

– Er...Rod? - Gilbert franziu as sobrancelhas.

– Sim?

– Você está se sentindo bem? - ele perguntou, com desconfiança, quase cuidadosamente.

– Essa pergunta está começando a se tornar repetitiva.

– Jovem mestre, você não pode estar bem. Digo, você está...! - ele se calou, como se não soubesse como pôr seu comentário seguinte em palavras.

Sua expressão de estranhamento manteve-se em seu rosto, mas esse adquiriu uma tonalidade rósea. Era um pouco divertido vê-lo ficar constrangido com algo assim, quando ele não apresentava qualquer pudor em situações completamente impróprias. Eu poderia ter dado uma breve risada, se não estivesse igualmente nervoso com minha própria iniciativa. Eu sabia que meu rosto estava vermelho.

– Jovem mestre, você está com febre?

A verdade é que eu estava começando a irritar-me com as perguntas de Gilbert. Ele não percebia que eu não gostaria de conversar sobre aquele assunto, pois seria impossível respondê-lo de um modo que não me provocasse extremo constrangimento?!

– Rod, você...?

– Eu estou com frio! - finalmente exclamei, um tanto irascível, sem me mover - Apenas isso!

Esse foi meu argumento para explicar por que eu estava repousando minha cabeça no ombro de Gilbert, enquanto assistíamos ao filme daquela noite. A verdadeira explicação para a minha iniciativa seria o meu desejo de estabelecer uma comunicação indireta com meu colega de quarto.

Gilbert sabia que eu detestava contatos físicos e não os tolerava. Eles eram demonstrações de demasiada intimidade e não podiam ser permitidos facilmente. Havia, portanto, um imenso significado no fato de que eu havia o tocado, por minha própria iniciativa.

Eu sabia que havia o grande risco de um mal-entendido, mas aquilo não me importava. As minhas intenções eram perfeitamente nobres e eu as explicaria solenemente, caso meu colega de quarto se enganasse quanto as minhas intenções. Ademais, eu absolutamente não aceitaria um contato mais intenso do que aquele. O meu único motivo para encostar-me em Gilbert devia-se a minha vontade de exprimir minha gratidão e a minha oposição a dizer linhas embaraçosas. Apenas isso.

No entanto, eu reconhecia que aquela posição era um tanto confortável. Eu não tinha a mínima intenção de comunicar isso a Gilbert, mas eu estava bastante satisfeito com ela. A temperatura de Gilbert era mais elevada que a minha e o contato entre nós, de fato, aquecia-me apropriadamente.

Ele deve ter entendido o meu silencioso monólogo repleto de fervorosas explicativas, pois fez um som cético, encarou-me com intensa suspeita e, após alguma reflexão, encostou sua cabeça sobre a minha e voltamos a assistir ao filme. Ignorei meu juramento de censurar outra forma de contato e concentrei-me na animação que assistia. Era extremamente difícil censurar Gilbert e, para ser franco, eu não sentia disposição para fazê-lo...

...Estava realmente frio.

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A imagem de um trem em uma composição chamada The Sixth Station, huh? Ah, Rod, o incrível eu está perplexo com a imprevisibilidade dos seus pensamentos.

Essa voz carregada de sarcasmo veio de um Gilbert imaginário que, inexplicavelmente, invadia novamente uma imagem minha. Ele estava sentado em um dos bancos do trem e era o único passageiro nele. Fitava-me como se esperasse que sentasse-me ao seu lado. Seu olhar não sugeria uma proposta, mas a natural convicção de que eu faria esse gesto.

"Eu não penso nessa imagem por entretenimento e, sim, por praticidade. Ela me pareceu adequada para tocar essa composição, então não é necessário que eu a torne complexa. Em fatos, isso me desviaria do meu real intuito." - justifiquei-me, aborrecidamente.

A resposta de Gilbert foi uma risada repentina e vigorosa.

– Kesesese! Você está se explicando para si mesmo? Impressionante, jovem mestre! Somente alguém tão aristocrático poderia adicionar esse caráter filosófico a uma cena imaginária! Se você imaginar alguns velhos amigos como Kant, Descartes, Nietzsche e algumas cervejas, nós poderemos ter uma conversa divertida!

"De modo algum." - com uma expressão austera, afirmei minha resolução de não transformar a minha imagem em um devaneio incoerente.

– Conforme queira, jovem mestre.

Aquele Gilbert não possuía a mesma disposição para discutir comigo, que o original possuía. Ele deu de ombros e continuou a esperar que eu me sentasse ao seu lado. O trem não se moveria, antes que eu fizesse isso. Como não havia benefícios em permanecer em pé e não vi nenhum risco em aproximar-me de um Gilbert que existia apenas em minha mente, aceitei sua indireta imposição, dirigi-me ao seu banco e sentei-me com ele. A distância que nos separava não era tão desprezível para ser questionada por mim, mas que era suficientemente próxima para que nossos ombros roçassem.

Quando estava acomodado, finalmente lancei um olhar ao exterior do trem e deparei-me com a visão de um vasto mar azul que, misteriosamente, não possuía ondas. O céu estava igualmente azul e a claridade alaranjada que entrava pelas janelas de vidro sugeria que estávamos em uma tarde ensolarada.

Um cenário que remontava a cena de Sen to Chihiro, mas não era absolutamente igual a esse.

– Vamos, Rod? – propôs Gilbert, e o trem, lentamente, começou a se mover.

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Gradativamente, o trem adquiriu velocidade até que essa se estabilizasse em um ritmo moderadamente veloz. Pelas janelas, eu via um cenário azul e estável mover-se no sentido contrário ao do trem. Enquanto eu admirava sinceramente a paisagem que me cercava, Gilbert a encarava, profundamente pensativo.

Isso é suficiente para você, Rod? - ele perguntou, de repente, lançando um olhar distante a algum ponto fora do vagão.

"Como assim?"

Você pretende deixar que essa composição se limite à apreciação do cenário de um trem passando pelo mar?

"Há algum problema com essa interpretação?"

Bem...Há! - ele exclamou, firmemente.

"O que seria?"

Ela é extremamente chata!

Suspirei. Eu havia percebido que havia certa monotonia no modo como eu estava guiando a composição, no entanto, fiz um esforço para ignorá-la. Era mais cômodo executá-la desse modo e eu não me sentia motivado a mudar drasticamente aquela paisagem.

"Eu não preciso mudar o meu modo de...".

– Quais eram os sentimentos da protagonista, nessa cena, jovem mestre?

Assustei-me ao realizar que havia sido o real Gilbert a fazer essa questão. Escutar, subitamente, a sua voz e, com isso, sentir o quão próximo ele se encontrava, provocou um momentâneo sobressalto em meu coração, contudo, rapidamente, consegui me recompor e tentei não ser retirado da imagem que havia formado.

– Eu não sei... Penso que ela estava um tanto assustada. O que é perfeitamente natural, considerando-se que o personagem que ela amava estava muito ferido. - respondi ao Gilbert real, esperando um complemento do outro. O trem ganhou velocidade e chacoalhou, quando fiz essa insegura afirmação.

– Errado, Rod. – disse o Gilbert verdadeiro, mas conferi essas palavras ao Gilbert que estava sentado ao meu lado, em um trem - Ela não estava sentindo medo. Ela estava sentindo apreensão. Você consegue diferenciar esses sentimentos?

O trem retornou ao seu ritmo normal.

– Exemplifique.

– Pois bem. Apreensão, jovem mestre, seria o seu sentimento ao concluir um banho, perceber que há pessoas na sala e verificar que você se esqueceu de trazer roupas consigo, sendo obrigado a passar de toalha, caso elas demorem.

– E o que seria medo?

– Medo seria o seu sentimento se uma das pessoas na sala fosse o Francis.

– ...Compreendo. - admiti, percebendo que, ainda que houvesse uma enorme divergência entre a situação da protagonista e o exemplo de Gilbert, era possível entender claramente o seu ponto - Nesse caso, "receio" seria uma palavra mais adequada para definir seus sentimentos do que "medo".

– Exatamente. – o Gilbert de minha mente sorriu com arrogância e o tom do verdadeiro sugeria que ele havia feito o mesmo. - Embora no início do filme, ela fosse uma garotinha covarde e chorona, ela sofre consideráveis transformações em seu decorrer.

– Esse é um modo cruel de analisar a personagem. - repreendi-o, suavemente.

– Cruel? Eu estou sendo franco, jovem mestre! O quê? Você se sentiu ofendido pelos meus termos? Eu deveria ter dito que ela era uma pessoa sensí...!

– Fique quieto!

Kesesese!

Gilbert riu malignamente. Devido a nossa proximidade, pude sentir o ar morno de sua expiração tocar delicadamente o meu rosto. O que me incomodou mais do que o seu deboche em si.

Vi-me incapaz de lidar com esse desconforto e forcei-me a não desviar minhas emoções do piano.

A paisagem por trás das janelas começou a mudar. O céu começou a escurecer. Não com a escuridão anil trazida pela noite, mas com a escuridão cinza de uma tempestade a se aproximar.

– No início, Rod – disse Gilbert, como quem conta uma história de tempos distantes – a protagonista era uma garotinha covarde e chorona. Ela estava reclamando por ter que se mudar e estava com medo de entrar em um túnel escuro! Quem poderia dizer que ela iria adquirir coragem para lidar com deuses furiosos e confusos, para desafiar uma feiticeira e para controlar o ataque do namorado dela que, a propósito, era um dragão?

– Entendo. Ela adquiriu certa coragem, durante o decorrer do filme...

– “Certa coragem”? – ele riu novamente. Ele deveria parar com isso! Aquela sensação em meu rosto era tão perturbadora! – Rod, você tem medo de caminhar entre os blocos do apartamento, quando anoitece!

Quis dar uma resposta inteligente e confiante, entretanto, por não conseguir negar o que ele me dizia, percebi que não havia uma réplica que me satisfizesse, naquele contexto.

O céu havia perdido completamente o azul. Estava fechado, profundamente cinza, acompanhando uma forte onda de melancolia entre as notas da composição.

– Se ela adquiriu coragem, o que você acha que ela está pensando, nesse momento? – ele me perguntou e não precisei pensar por mais de dois segundos para respondê-lo.

– No peso das suas decisões.

Houve um momento de silêncio. Pensei ter dito algo estúpido e já ia complementar minha resposta com algo que me parecesse mais sensato, quando ouvi Gilbert fazer uma exclamação de divertida surpresa.

– O aristocrata que mora comigo está dando uma resposta tão abstrata? – o Gilbert que estava no trem, ao lançar essa retórica pergunta, voltou seu rosto em minha direção e arregalou os olhos em espanto - Que orgulho! É claro, com os meus incríveis métodos educativos, eu não poderia esperar menos de você, mas eu não imaginava que os resultados seriam tão rápidos! Acho que a minha grandiosidade é maior do que, eu, em minha modéstia, poderia supor!Kesesese!

Percebi que aquele comentário seria o mais próximo de um elogio que eu ouviria de Gilbert e o escutei com contentamento e algum embaraço.

– Ela está um pouco insegura e melancólica, mas tenta reunir forças para prosseguir. – falei, novamente tentando ignorar minhas próprias emoções para centrar-me nas de uma personagem – Esses são os sentimentos dessa composição. É uma ideia simples, mas estaria correta?

– O que você acha?

– Por favor, diga a sua opinião.

– O que você acha? – ele repetiu, um tanto impaciente, enfatizando a palavra “você”.

Pensei por alguns momentos. Havia algum erro em minha imagem? Havia outra forma de expressar a música que tocava?

Diante de mim, eu via um mar congelado. Um cenário coberto por neve. Os cristais de gelo caiam velozmente pela janela do trem, carregados pelo vento forte e gélido do inverno. O que estava a minha frente provocava-me uma mistura confusa de sentimentos. Era uma cena extremamente bela, mas melancólica. Minha mente gerou um cenário belo e triste que me provocava, simultaneamente, uma sensação de fascínio e angústia. Uma sensação que mal me permitia respirar.

O que surgia em meu interior, vendo aquela imagem, era similar a oposição de sentimentos de uma personagem que conhecia um mundo novo no qual vivenciava dificuldades e conquistas que a marcariam de modo definitivo.

Naquele momento, havia uma firme união entre os sons que eu extraía do piano, a imagem que via, uma parte da protagonista e uma parte de mim.

– Penso que sim. – afirmei, com determinação.

– Nesse caso, jovem mestre, você está certo. – o semblante do Gilbert de minha mente tornou-se tão firme quanto a voz do verdadeiro, depois, ele inclinou-se ligeiramente em minha direção e acrescentou, sorrindo – Mostre-me a imagem que você está vendo, Rod.

“Eu já estou a mostrando para você, seu tolo.” – pensei, contendo um sorriso e imaginando qual seria a reação de Gilbert, caso soubesse que era um dos personagens de minha imagem.

Por que não descobre a minha reação, jovem mestre? Eu estou ao seu lado! Digo, eu estou ao seu lado em minhas duas versões! Fale para o incrível eu sobre a minha imprescindível presença em sua mente!

“Nada me motiva a agir desse modo. Essa revelação não seria benéfica. Você poderia interpretá-la erroneamente.”

Francamente, Rod, você não é excessivamente consciente quanto ao modo como recebo as suas ações e declarações? Quando eu dei motivos para que você acreditasse estou o interpretando mal?

“Eu...”

Eu não acho que você sinta algo por mim.

A intensidade dessa lembrança atingiu-me como uma colisão. O impacto de ouvi-la sendo novamente proferida por Gilbert, ainda que por um Gilbert que apenas existia em minha mente, foi tamanho que não consegui manter a existência de meu colega de quarto no trem. Ele, subitamente, tornou-se um invasor. Sua presença tornou-se terrivelmente dolorosa para mim. Ele desapareceu e, até o fim de minha execução, apenas o cenário comovente e bucólico de um oceano coberto por gelo foi mantido. O trem tornou-se mais escuro e insuportavelmente vago.

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Com a conclusão da música, senti-me desorientado.

Eu estava perdido. A minha imersão em minha composição havia sido tão sincera, tão profunda que demorei um momento para entender o que deveria sentir ao retornar a realidade.

Após um momento, que me pareceu demasiadamente longo, acalmando meu coração e um tremor que percorria meu corpo, percebi que deveria me sentir feliz. Foi necessária apenas essa realização para que uma onda de deleite subisse por mim.

Eu havia conseguido. Eu havia tocado com uma imagem. Eu havia tocado com sentimento. Com a minha imagem. Com os meus sentimentos. O meu piano apático e oco havia expressado algo tão belo! Eu mal sabia que poderia tocar algo assim! Eu duvidei que poderia tocar algo assim!

Eu estava tão feliz, tão feliz, que sequer pensei no que fazia, quando, em uma cena similar a que havia ocorrido na noite anterior, voltei meu rosto a Gilbert, com meus olhos preenchidos de sentimentos que transbordavam do meu peito.

Novamente, fui surpreendido pela proximidade de Gilbert, que encontrava-se no banco ao lado do meu, ainda que racionalmente soubesse que ele se encontrava a uma curta distância. Novamente, aquela distância pareceu menor do que costumeiramente aparentava.

Entretanto, aquele momento foi diferente de qualquer um que eu tivesse vivenciado com Gilbert. Ele foi diferente de qualquer momento que eu tivesse vivenciado.

Percebendo a desconfortável situação em que havíamos sido colocados novamente, por meu descuido, Gilbert lançou-me um olhar surpreso. Surpreso e sério. Ele estava tão consciente de quão curta era a nossa distância quanto eu. Todavia, não a aumentou. Tampouco, eu o fiz.

Eu sabia que deveria desviar meu olhar do que vinha de Gilbert. Minha mente gritava um alerta de que eu deveria me afastar, evitá-lo, ignorá-lo. No entanto, eu não consegui. Dessa vez, no momento em que meus olhos encontraram-se aos de Gilbert, vi-me incapaz de afastá-los. Eu não conseguia parar de fitá-los, como se não houvesse mais nada a ser observado nesse mundo.

Aquele momento era diferente dos anteriores. Eu sentia isso. Eu sentia a expectativa de que algo grande aconteceria.

Uma expectativa que aumentou assustadoramente quando percebi que Gilbert, lentamente, aproximava-se de mim, ainda sério.

A minha sensação era a de ter engolido algo frio que descia por meu corpo. Meu nervosismo era tamanho que eu conseguia sentir os meus batimentos cardíacos em meu pescoço. Eu não era capaz de fazer o movimento voluntário de desviar meu rosto, mas via-me fazendo diversos movimentos que não planejava, como, por exemplo, mexendo minhas mãos inquietamente sobre minhas pernas.

Gilbert continuou a inclinar seu rosto em minha direção de uma forma torturantemente lenta. A respiração dele, que antes tocava apenas a lateral de meu rosto, agora aquecia ardentemente os meus lábios, como se os preparasse para algo. Em breve, não seria mais possível afastá-lo. Esse era o momento em que eu deveria detê-lo.

Contudo, não consegui encontrar em mim qualquer disposição para resistir.

Aquele era Gilbert. Como eu poderia me afastar dele? Como eu poderia evitá-lo? Eu não poderia fazer isso, quando descobria, em mim, a crescente necessidade de mantê-lo ao meu lado, de maneira cada vez mais próxima.

Ele havia compreendido os meus sentimentos, embora eu não entendesse os seus. Ele me provocava raiva, mágoa e angústia, mas em igual intensidade, produzia, em mim, alegria, confiança e conforto. Antes que eu percebesse, a minha vida foi ligada irreversivelmente a dele. Antes que eu realizasse, Gilbert havia se tornado alguém importante para mim e meu desejo de afastá-lo tornou-se mais uma obrigação do que uma vontade.

Eu sabia que deveria afastá-lo. O seu olhar encontrava-se perigosamente próximo ao meu e parecia prestes a esmagá-lo. Eu deveria resistir. Entretanto, não era isso o que eu gostaria.

Eu não queria afastá-lo. Eu o queria próximo a mim. Mais do que nos encontrávamos, no momento. Eu queria desesperadamente que ele encerrasse definitivamente a distância entre nós, antes que eu adquirisse coragem para aumentá-la.

Portanto, fechei os olhos e esperei.

Por um momento, pude escutar o som da respiração acelerada de Gilbert e ela deixou-me ainda mais nervoso do que antes. Principalmente, quando senti que algo quase tocava os meus lábios, deixando uma sensação-fantasma nesses. Essas sensações retiraram todas as forças dos meus membros e nada pude fazer, além de continuar a esperar.

De repente, os sons foram cessados, assim como a sensação da respiração de Gilbert e da proximidade entre nossos rostos. Não entendi o que havia acontecido e, estarrecido, abri os olhos.

Gilbert havia retornado a sua posição original, embora ele certamente não tenha feito isso com a casualidade de alguém que não havia percebido o que havia ocorrido entre nós. Apesar de estar sorrindo, ele parecia ferido.

– ...A última pessoa, não é? – perguntou Gilbert, amargo, aparentemente para si mesmo.

– H-Hã? – gaguejei, ainda confuso e ansioso, sem entender o significado dessa questão. O meu coração ainda batia fortemente.

– Parabéns, jovem mestre. – ele comentou, com o mesmo sorriso cansado – Os seus avanços em relação ao piano são incríveis. A evolução das suas interpretações está sendo mais rápida e impressionante do que eu previa. Pelo visto, em um prazo menor do que eu imaginava, você não estará mais precisando de mim.

- Eu...!

Tive a forte ânsia de dizer algo, mas não sabia precisamente o que deveria dizer e acabei sem conseguir expressar o que queria. O meu próprio silêncio angustiou-me severamente.

– Boa noite, Rod. – disse Gilbert e dirigiu-se ao seu quarto, sem que eu pudesse impedi-lo.

Permaneci por severos minutos, sentado ao piano, tentando compreender tudo o que havia acontecido, desde o momento em que havia terminado de tocar a The sixth station. Esforcei-me para compreender o que havia acontecido, entretanto, percebi que era invadido por uma forte mistura de confusão e mágoa ao pensar nisso e decidi apenas dormir e ignorar o que havia ocorrido. Era o que eu poderia e deveria fazer, considerando-se que Gilbert havia feito o mesmo.

A minha maior angústia não se devia ao fato de que eu não conseguia entender Gilbert. Desde o início de nossa convivência, eu não entendia. O que pesava em meu peito e me provocava aquela intensa ânsia por fôlego era o fato de que eu não conseguia mais entender o que havia comigo.

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Notas finais do capítulo

Maldito Nyah! e seu limite de 20.000 palavras por capítulo...¬¬