Obaka-san! escrita por Mayumi Sato


Capítulo 7
07. Gnossiene nº05.(Satie)


Notas iniciais do capítulo

YAY! Finalmente, encerrei esse capítulo! Ah! O próximo será MUITO divertido, então eu estava ansiosa para escrevê-lo!
Muito obrigada pelos comentários maravilhosos que vocês estão fazendo, queridos leitores! Vocês mal fazem ideia do quanto eles me deixam feliz!
Por favor, divirta-se com a sua leitura e, como um presente relativamente atrasado de aniversário, façam com que os comentários dessa fic alcancem o nº50!/o/
PS: Alegretto = Leve
Moderato = Contido
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[EXTRAS]
* Há, há, há! Tremam diante da grandiosidade do meu incrível capítulo!
* N-Não é como se eu tivesse escrito esse capítulo, por causa de vocês...Não me interpretem mal!
* Quem precisa dos seus estúpidos comentários, nesse capítulo ridículo, seu idiota?!
* Vamos todos comentar o capítulo, sim? Sim?:3
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http://www.youtube.com/watch?v=rOwsS9hdr3I&list=PL3648F0177AE76819&index=29&feature=plpp_video– Gnossiene nº05(Satie)

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07.

– Gnossiene nº05 -

O mundo estava girando.

Essa foi minha primeira impressão, quando finalmente tive forças para abrir os olhos.

O que estava acontecendo? A minha cabeça doía tanto... Onde eu estava?

Eu estava voltando com Gilbert para o apartamento... Ele estava me carregando. Onde fomos? Por que ele havia me leva...?


Bem-vindo ao lar de Francis Bennefoy, meu caro, Roderich! Acredito que você perceberá a grande estima que possuo pela beleza e por tudo que é belo!

Meu nome é Arthur Kirkland. Como você deve ter percebido, sem muito esforço, eu sou o colega de quarto de Francis.

O quê? Você está com vergonha de tocar, na frente dele?

Eu levarei esse nobre aristocrata ao nosso apartamento. Seria perigoso deixá-lo tão vulnerável, quando você está por perto...

Em resumo, no início de cada encontro, nós sorteamos uma composição para apresentarmos, ao término desse.

...

Eu odeio a forma como o meu coração dispara, quando eu escuto o seu piano.

Eu não consigo evitar esses sentimentos desagradáveis.

De repente, as lembranças colidiram em mim, com a intensidade de um atropelamento.

Meu desespero crescia à medida que as recuperava.

"Não..."

Não... Não. Não, não, não, não, não...

Com ciúmes. Talvez, eu realmente sinta ciúmes quanto a você.


NÃO!

"Eu quero morrer! Morrer!" – pensei, enquanto cobria-me completamente com o cobertor, como se ele fosse meu escudo contra os males do mundo. Eu não iria mais me levantar. Minha existência se findaria, sobre aquela cama. Eu não conseguia parar de agitar meu rosto, como se tentasse despertar de um pesadelo terrível. - "Eu não posso voltar a encarar o Gilbert! Nunca mais poderei encará-lo! Eu não sairei mais desse quarto e cessarei qualquer contato com ele!".

Gilbert havia alertado, na noite anterior, que eu deveria conter minhas palavras ou me arrependeria delas. Sua previsão não poderia ser mais precisa. O arrependimento me destruía por dentro!

"Tantos perdem a memória, quando bebem demasiadamente! Por que o mesmo não ocorreu comigo?!" – lamentei, sinceramente, com meu rosto afundado em minhas mãos.

De repente, batidas na porta anunciaram o profundo crescimento do meu horror.

Gilbert. Somente poderia ser ele. Quem mais bateria a porta de meu quarto, durante uma manhã?

Eu não poderia vê-lo! Eu não queria vê-lo! Eu me recusava a vê-lo!

As batidas persistiram, assim como minha determinação em não abrir a porta. Eu nunca a abriria. Ele não poderia respeitar minha silenciosa decisão de nunca mais vê-lo? Para mim, sua saída seria mais prazerosa do que qualquer tentativa de melhorar meu humor.

Mais batidas.

"Quando você pretende desistir, seu tolo? Evidentemente, eu estou fingindo estar inconsciente para ignorá-lo. Entenda isso e tenha a cortesia de se retirar.".

Novamente, as batidas vieram.

"Eu não irei responder... Não posso responder. Minha resposta seria uma vitória para Gilbert e permitiria a sua aproximação... Eu não quero que isso aconteça! Eu mal consigo lidar com meu nervosismo por ele estar batendo na porta! A sua entrada, definitivamente, seria um golpe final!".

Batidas. Batidas. Batidas.

Elas estavam me aborrecendo. Era realmente irritante ouvi-las em uma incessante frequência, quando minha cabeça doía tanto. Ele não poderia desistir? A vida de alguém que desperdiça tantos minutos, apenas para debochar de seu colega de quarto, apenas poderia ser classificada como lamentável. Ele deveria entender que...

Outras batidas vieram, findando o restante de minha paciência.

– Pare de me atormentar, seu tolo! Você realmente não reconhece o quão desprezível é a sua conduta?! Por favor, encontre uma forma de diversão mais sadia do que me atormentar! O seu sádico prazer em perturbar-me é deplorável! - berrei essas sentenças, em um único fôlego.

Houve um inesperado silêncio, após minhas enérgicas ofensas. Esse não me provocou conforto, mas apreensão. Era inimaginável que Gilbert houvesse se atingido com as minhas reclamações, afinal, ele, cotidianamente, ria delas. Eu não poderia deixar de suspeitar do modo brando como ele as recebeu. Acreditava que aquela era típica brisa que antecede a tempestade e tive essa firme convicção até ouvir uma voz baixa e ligeiramente assustada, responder-me, por trás da porta.

– Senhor Roderich, perdoe-me o incômodo... – desculpou-se, timidamente - Sou eu, a proprietária.

...

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Minha garganta doía. Minha cabeça doía. Meu corpo doía. Minha consciência doía.

Ainda assim, encontrei forças para receber com compostura a visita de minha proprietária e de unir-me a ela em uma refeição matinal. Não sei como consegui disfarçar os sentimentos que ferviam intensamente, por trás de minha expressão perfeitamente calma, mas o fiz com suficiente esmero para evitar questões indesejáveis da proprietária ou, pior, sua pena.

Eu tinha vários motivos para minha interna agitação. Não era alguém dramático a ponto de procurar avidamente razões para explosões emotivas, como alguns fazem. Antes de Gilbert, eu sequer sabia que era capaz de possuir esses sentimentos que sempre desprezei, devido ao meu apreço pelo uso da razão como forma de encarar problemas. A convivência com ele me tornou capaz de adquirir uma vasta diversidade emoções confusas. Como eu o detestava por isso.

Eu sentia vergonha. Havia bebido excessivamente, confessado o meu sentimento de rivalidade em relação ao piano de Gilbert e feito uma declaração que nunca diria se estivesse consciente. Além disso, havia exposto um comportamento bárbaro a minha proprietária. Todos esses eventos haviam sido constrangedores a ponto de me provocar o sincero desejo de me esconder em algum lugar no mundo, onde nunca pudessem encontrar-me, e permanecer nele, até o fim dos dias. Um desejo que, evidentemente, não poderia realizar. O que era uma lástima.

Eu sentia raiva. Gilbert havia sido o culpado por tudo aquilo. Antes de sua chegada, eu nunca havia me humilhado, dessa forma. Ele era tão idiota que me fazia agir como se eu também fosse um. Ademais, ele deveria ter cuidado de mim, na noite anterior! Se ele não tivesse me ignorado para conversar com seus amigos boêmios, nada disso teria ocorrido!

Eu não sabia se deveria sentir irritação ou contentamento pelo fato dele ter pedido à proprietária que essa cuidasse de mim, durante a minha "épica ressaca", segundo as palavras do próprio. O seu cuidado havia sido desmerecido pelo fato dele ter revelado minha condição, ainda por cima, usando termos como esse.

A sua ausência, naquela manhã, não me ajudava a definir como eu me sentia em relação a ele, por isso, detestei-a francamente.

Eu já havia tomado comprimidos para a minha dor-de-cabeça e meu enjoo, mas esses efeitos do meu desleixo ainda não haviam passado. Eles pareciam punir minha conduta irresponsável. Eu estava comendo a canja que a minha proprietária me trouxe e refletindo se teria, ou não, condições para ensaiar meu piano, naquela manhã, quando ela fez uma colocação completamente súbita e inesperada.

– Você e o senhor Gilbert me parecem muito próximos, senhor Roderich.

Arregalei os olhos. O alimento que descia por minha garganta, quase voltou, quando ouvi esse comentário. Engasguei-me e comecei a tossir incessantemente. Foram necessários dois copos de água para o alívio dessa sensação dolorosa.

Enquanto apanhava meu copo vazio, minha proprietária parecia ligeiramente confusa com a minha reação. Bem, de que outro modo eu poderia reagir? Ela escolheu as palavras erradas, no pior momento para dizê-las. Eu não queria ouvir uma afirmação de minha intimidade com Gilbert! Principalmente, em um momento como aquele! Um momento em que um significado perigoso e completamente inapropriado poderia ser relacionado com a indesejável proximidade que nos unia! Eu havia dito sentenças tão embaraçosas a Gilbert que seria um consolo ouvir alguém ressaltar o fato que não tínhamos uma boa convivência, o quão antagônicas eram nossas personalidades e a frequência de nossas brigas, pois, desse modo, eu poderia me assegurar que meu colega de quarto não levaria a sério nada que eu havia dito e eu também não faria isso. Eu teria mais facilidade em interpretar o que havia dito, como os comentários desprovidos de sentido de um indivíduo severamente alcoolizado, ao invés de tomá-los como uma confissão inesperada de sentimentos que eu tentava conter.

– A senhora está sendo sarcástica? – essa foi minha cínica pergunta, quando, finalmente, readquiri minha compostura.

– De modo algum. Estou muito impressionada com o modo como o relacionamento de ambos progrediu. – ela respondeu, imediatamente, sorrindo – Eu nunca o vi expressar-se tão efusivamente, senhor Roderich. Fico feliz em ver que o senhor encontrou alguém com quem pode compartilhar abertamente os seus sentimentos.

– Os únicos sentimentos que compartilho com ele são de ira, frustração e impaciência. – respondi, brandamente, enquanto soprava o vapor de minha colher. Consegui transmitir extrema confiança nessa réplica, ainda que estivesse consciente que dizia uma mentira.

– Não diga isso. – ela riu candidamente - É evidente que os senhores são muito amigos. Você não sabe o quanto fiquei surpresa, quando o irresponsável senhor Gilbert veio ao meu apartamento para pedir-me, pessoalmente, que eu cuidasse do senhor! – ela exclamou, arqueando as sobrancelhas, aparentando ainda se admirar e se divertir com essa lembrança.

– Se fôssemos tão unidos, ele teria cuidado pessoalmente de mim. – falei, involuntariamente, transmitindo algum aborrecimento ao meu semblante, enquanto mordia, com força, minha colher. Essa resposta que deveria possuir meramente escárnio foi dita, por mim, com certo rancor e soou de um modo um tanto infantil.

– Ele não poderia perder aula. – ela me dirigiu o sorriso forçado de uma mãe que tenta convencer seu filho mimado a parar de fazer um pedido inconveniente - O senhor não percebeu, pois o céu está muito escuro, essa manhã, mas já são dez horas, senhor Roderich.

Tamanho foi meu espanto com aquela notícia que esqueci-me de todos os meus pensamentos anteriores. Dez horas? Céus. Como eu poderia tocar o piano? Faltavam poucas horas para o início das minhas aulas e meu corpo permanecia em um péssimo estado. Eu teria condições de praticar, naquela manhã? Eu teria, ao menos, condições de ir às aulas? Eu não queria faltá-las, mas não...!

– Como os senhores são tão próximos, eu gostaria que você o convencesse a fazer algo por mim.

Novamente, ela fez um comentário súbito e inesperado. Dessa vez, ela abaixou seu rosto, mas seus olhos subiram e encontraram-se aos meus, revelando um brilho estranho que me pareceu ameaçador. Como estava sentada, logo a minha frente, na mesa, não pude deixar de perceber esse olhar e o sutil sorriso que escapava pelos cantos de seus lábios. Sensatamente, eu os temi.

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O recital de graduação era um evento oferecido por nosso conservatório que possuía grande reconhecimento. Diversos maestros e produtores musicais o assistiam, esperando encontrar nele, jovens talentosos e pouco reconhecidos, que tivessem acabado de encerrar sua formação. Aquele era um ambiente no qual, certamente, poderiam ser descobertos músicos de qualidade, afinal, nosso conservatório era um dos melhores da Europa e, naquele recital, apenas apresentavam-se os melhores estudantes do último semestre, selecionados após diversas provas.

Para os alunos do conservatório, apresentar-se no recital de graduação era uma ótima oportunidade para conseguir um emprego estável. Para esses maestros e produtores musicais, assisti-lo era uma oportunidade de contratar músicos de qualidade que não cobrariam salários muito elevados, devido a sua inexperiência profissional. Em resumo, a importância do evento se devia aos benefícios que esses dois grupos recebiam, com a sua realização.

Apesar do recital visar à promoção dos alunos do último semestre, esses poderiam, caso fossem selecionados para se apresentarem, escolher um acompanhamento que estivesse em semestres anteriores, mas, na prática, isso pouco acontecia. Nenhum veterano arriscaria sua apresentação tocando com alguém menos experiente, ainda que reconhecesse as capacidades desse.

Por essa razão, fiquei muito espantado, quando a proprietária me apresentou uma lista com condôminos que gostariam de se apresentar com Gilbert, durante o recital da graduação, e me pediu que eu o convencesse a acompanhar um deles.

Ela disse, sem qualquer vergonha ou arrependimento, que havia se cansado de receber reclamações quanto ao meu colega de quarto, na época em que seu comportamento estava mais problemático, e fez um acordo com nossos vizinhos, sem consultá-lo. Prometeu a eles que, se parassem de se queixar tanto, ela conseguiria convencê-lo a se apresentar com eles, no recital da graduação. Normalmente, alunos de semestres mais avançados rejeitariam uma proposta com essa, considerando que Gilbert estava apenas no terceiro semestre, contudo, para convencê-los, ela revelou sua identidade e a enalteceu grandiosamente.

Aparentemente, meu colega de quarto gozava de certo reconhecimento, em nosso conservatório. Eu não poderia estar mais desinteressado nas aptidões de outros pianistas de nosso conservatório, quando estava tão preocupado com as minhas. Por essa razão, até aquele momento, eu desconhecia o fato que ele possuía tamanha popularidade.

Essa influência que ele já possuía previamente, combinada com os elogios fervorosos da proprietária, que afirmou que tocar com ele traria inevitável sucesso à apresentação, foram suficientes para convencer vários alunos de semestres posteriores a aceitarem e desejarem o acompanhamento de meu colega de quarto. O que, finalmente, explicava por que nós não recebemos reclamações, quando Gilbert quebrou nossa porta com o extintor de incêndio, do barulho decorrente de seu conserto ou da imensa quantidade de fumaça provinda de nosso apartamento, quando queimei nosso jantar.

O plano da proprietária havia se mostrado muito eficaz e decorria sem qualquer problema, com exceção a um, que não poderia ser ignorado: Gilbert se recusava a se apresentar com nossos vizinhos.

E ela gostaria que fosse eu a resolver aquilo.

Eu não sabia se deveria me mortificar com a ingenuidade de nossos vizinhos, com o egoísmo de Gilbert, com o recém-descoberto caráter manipulador da proprietária ou com o modo como fui dragado para aquela situação problemática, mesmo que ela fosse paralela aos meus interesses.

Mais movido por minha educação, do que por meu ânimo, aceitei educadamente o pedido de minha proprietária. Eu havia acabado de terminar meu café-da-manhã e minha dor-de-cabeça havia diminuído consideravelmente, graças aos remédios que ela me deu. Não poderia negar uma solicitação dela. Além disso, enquanto ela sorria cordialmente, em minha direção, algo maligno em seu olhar ainda imprensava-me, impedindo minhas chances de fuga.

Aquele diálogo exauriu-me de tal modo que recebi, com o alívio, o som da porta sendo fechada, quando a proprietária saiu.

"Eu preciso dormir." – esse foi meu único e, absoluto, pensamento.

O meu corpo e a minha mente exigiam descanso, pois o alívio das minhas dores físicas, não diminuiu minha indisposição ou descontentamento.

Decidi que repousaria apenas por algumas horas, antes de ir ao conservatório, assistir a minhas aulas. Era evidente que eu não conseguiria treinar, naquelas condições, e eu gostaria de tentar reunir forças para compensar o meu tempo desperdiçado, aproveitando melhor a minha tarde.

Dormindo, eu escaparia de meus pensamentos sobre Gilbert.

Com essa resolução, dirigi-me ao sofá e somente quando minhas costas encostaram-se nele, entendi, de fato, a extensão de meu cansaço. Por um momento, meu corpo pareceu febril e pesado. No momento seguinte, houve apenas a escuridão.

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– Essa é uma incrível expressão de ruína, jovem mestre.

Esse foi o primeiro comentário de Gilbert, após o nosso diálogo da noite anterior. Ele o disse com um deleite quase cruel. O suave tremor no canto de seus lábios sugeria que ele reunia forças para não rir vigorosamente.

Eu me perguntava o que havia de tão cômico em minha expressão aborrecida.

Sim, aborrecida. Por diversos motivos.

Primeiramente, porque o meu despertar foi abrupto e violento. Embora fosse aceitável que me despertassem, considerando-se que, a julgar pela escuridão quase completa da sala, eu havia dormido por um período excessivamente longo, eu não gostaria que tivesse sido daquela forma. Com pancadas rápidas e agressivas em minha porta, ordenando que eu a abrisse imediatamente.

Os meus olhos e ombros pesavam, quando fui receber, a contragosto, o anônimo visitante. Meu humor estava péssimo e a letargia do sono mantinha-se em mim, deixando-me um tanto atordoado.

Ao abrir a porta, adquiri mais motivos para minha irritação.

Gilbert. Gilbert era aquele que batia em minha porta.

Ao defrontar-me com aquele irônico olhar vermelho, percebi que o meu desejo de permanecer descansando seria frustrado. Principalmente, após seu comentário que não transmitia qualquer pena ou solidariedade quanto a minha situação.

Eu deveria tê-lo ofendido. Ele merecia alguns insultos. Uma recriminação também seria adequada. Ele deveria entender que os princípios humanos não permitem que uma pessoa se divirta tanto com a importunação da outra. Era necessário que eu condenasse seu escárnio.

Entretanto, não consegui dizer nada.

Eu sentia que minhas sobrancelhas se franziam e minha boca entreaberta tentava, inutilmente, exprimir alguma sentença coerente, todavia, faltou-me a capacidade de encontrar as palavras certas.

Eu não conseguia pensar!

Quem estava a minha frente, com um sorriso repleto de deboche, era Gilbert. O mesmo Gilbert que havia me provocado tantos problemas. O mesmo Gilbert a quem eu tinha dito sentenças constrangedoras. O mesmo Gilbert que havia pedido à proprietária que cuidasse de mim. O mesmo Gilbert cujo nome era suficiente para impor respeito e obediência em nossos vizinhos, estudantes mais velhos do que ele. O mesmo Gilbert que, segundo a proprietária, tinha um importante relacionamento comigo. O mesmo Gilbert que tinha poder suficiente para provocar, em mim, imenso constrangimento e cujo sorriso delatava a sua intenção em fazer isso.

Havia dezenas de frases que eu poderia ter dito a ele, quando nossos olhos se confrontaram, mas minha garganta não conseguiu produzir nenhum som.

Meu estático silêncio, para mim, se estendeu por um tempo quase infinito, mas, cronologicamente, durou apenas alguns segundos.

Gilbert, noticiando minha ausência de réplicas a sua provocação, deu um breve riso e entrou em nosso apartamento, dando um amigável tapa em meu ombro, ao passar por mim.

– A minha entrada triunfal o paralisou, jovem mestre? Kesesese! – ele riu, enquanto retirava seu casaco e o depositava na porta. Depois, olhou para o teto com algum estranhamento, antes de me perguntar – Ei, Rod, por que as luzes estão apagadas?

"Ah."

Verdade. Estava escuro. Bastante escuro. Por ter acabado de acordar, eu não havia pensado nisso... Que horas seriam? Vestígios de luz dourada ainda iluminavam, ainda que insuficientemente, o quarto, portanto, ainda não havia anoitecido. Entretanto, uma escuridão vagamente anil tomava aquele espaço. Eu apenas podia ter a desapontadora certeza que havia perdido minhas aulas.

– Eu estava repousando. Há algum problema com isso? – perguntei, defensivamente, enquanto tentava aparentar certa solenidade. As minhas costas se apoiaram na porta, enquanto eu a fechava.

– De modo algum, jovem mestre. – sorriu Gilbert, enquanto acendia as luzes – Bem, acho que você não pôde preparar o jantar, estou certo? Não há problema. A minha incrível pessoa irá...!

– Eu o proíbo de entrar na cozinha. – declarei, com absoluta firmeza em minha resolução. – Que horas são? Eu posso prepará-lo.

Gilbert lançou um relance a seu relógio de pulso, antes de responder, casualmente:

– São seis horas, Rod.

Seis horas. Como estava tarde. Eu pensei que ainda fossem cinco horas. Eu realmente dormi por um longo tempo.

Eu me arrependia por ter desperdiçado toda uma tarde, que poderia ter sido dedicada a estudos, graças a um sentimentalismo abrupto que veio apenas para me trazer transtornos. Todavia, meu arrependimento não era total. Devido ao meu longo descanso, meu corpo encontrava-se em condições bem melhores, comparando às que possuía, naquela manhã. Eu ainda me sentia um tanto fraco, contudo, isso não impediria que eu treinasse o piano nem que preparasse o jantar para mim e para meu colega de quarto.

Encaminhei-me a cozinha, coloquei meu avental e comecei a apanhar os legumes que precisaria para a refeição daquela noite.

– O que será o jantar, Rod?

Ouvir a voz de Gilbert tão próxima, de modo tão repentino, provocou uma involuntária contração em meus ombros. Eu não havia percebido sua aproximação, mas ele encontrava-se atrás de mim, com os braços estendidos sobre mim, praticamente, encostando-me contra a geladeira.

– Sopa de legumes com gengibre. – respondi, deixando a minha respiração escapar entre minhas palavras, tentando ignorar a curta distância física entre nós, embora ela me provocasse alguma agitação – Eu sei que você não gosta tanto de sopas, mas esse é um alimento nutritivo.

Ele retirou seus braços, permitindo que eu me dirigisse a pia, enquanto me fitava com algum desgosto.

– E a sobremesa? – indagou, como se exigisse que a sobremesa compensasse o jantar indesejável.

– Eu estou cansado, então prepararei apenas um pudim. Por favor, aguarde pacientemente.

Ele fez um som seco e aborrecido. Depois, depositou, sobre a bancada da cozinha, uma sacola que carregava e se reaproximou de mim.

Recebi sua aproximação com algum resguardo e com severas suspeitas. Gilbert ainda não havia começado a me provocar quanto à noite passada, o que gerava minha defensiva postura quanto a qualquer uma de suas ações. Eu acreditava que ele estava apenas esperando uma deixa para iniciar uma série infindável de deboches.

Entretanto, dessa vez, essa não era sua intenção.

– Regozije-se, Rod. O incrível eu irá ajudá-lo! – ele exclamou, enquanto arregaçava as mangas de sua camisa, com o entusiasmo de um artista que finalmente concluirá a obra na qual trabalhou, durante toda a vida – Passe-me tarefas! Passe-me tarefas! Eu as executarei incrivelmente!

Ergui uma sobrancelha. Gilbert, ajudando-me? Qual era a sua intenção com esse gesto? Eu deveria ficar feliz com a ajuda de alguém que conseguia estragar um macarrão instantâneo?

– A sua ajuda não é necessária. Sendo franco, ela seria incômoda. Sente-se e espere que eu termine. – respondi, duramente.

Um sorriso ligeiramente maligno escapou pelos lábios de Gilbert, enquanto ele envolvia minha cintura, por trás, puxando meu corpo contra o seu.

Aquele tolo! O que ele estava...?!

Jovem mestre, caso você não me passe tarefas, eu terei que me entreter com outra atividade... – ele sussurrou, aproximando perigosamente nossos rostos – Afinal, Rod, seria extremamente interessante praticá-la em uma cozinha...

A implicação em sua proposta provocou uma sensação gélida e elétrica que desceu por meu corpo, em oposição, ao intenso ardor em meu rosto. Céus. Eu deveria estar acostumado com essas ameaças e com essa demasiada aproximação, mas a minha perturbadora reação negava a minha indiferença... Por que eu ainda não havia me acostumado com esses assédios? Eu havia passado por situações similares tantas vezes e ainda assim... Não, não era esse o ponto! Eu precisava me desvencilhar dele! Urgentemente.

– Corte as cenouras. – pedi, solicitamente. Tentei responder calmamente, mas havia um toque de desespero em minha voz.

– Conforme queira, jovem mestre. – sorriu Gilbert, vitoriosamente, desvencilhando-me de mim e centrando sua atenção nas cenouras. Enquanto ele mantivesse esse foco, eu estaria seguro. Suspirei, com alívio, e também tentei me concentrar no preparo do jantar, embora minhas mãos ainda estivessem trêmulas.

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A minha intenção era a de que Gilbert cortasse as cenouras em cubos, contudo, através de alguns relances que lancei em sua direção, pude perceber que ele estava conseguindo alcançar formas geométricas dignas de pinturas abstracionistas, mas muito diferentes de um tetraedro.

Apesar dos resultados ruins que obtinha, era nítido que Gilbert estava se esforçando. Compenetrado e um pouco irritado com sua falta de domínio em relação a sua habilidade de cortar legumes, ele mantinha-se cortando as cenouras, atentamente, encarando-as como se, silenciosamente, as jurasse de morte.

Eu não podia deixar de achar aquela cena um tanto engraçada, embora não quisesse demonstrar isso a ele.

Eu não sabia por que ele me ajudava. Gilbert era egoísta e irresponsável. Por que ele se daria ao trabalho de ajudar-me? Eu tinha certeza que ele apenas estava esperando um momento para iniciar a disparar comentários implicantes que me deixariam com profunda raiva e vergonha. No entanto, não compreendia por que esse momento demorava tanto a chegar.

Gilbert terminou de cortar as cenouras, quando eu já havia concluído o corte de todos os outros vegetais. Ele exibiu a tábua com diversas cenouras em formas irregulares, com a radiante animação que apenas uma criança conseguiria exibir.

– Veja, Rod! As minhas incríveis cenouras! O que acha? O que acha?

O modo como ele perguntava isso negava qualquer possibilidade que minha resposta não fosse um elogio.

– Não estão tão terríveis quanto eu esperava. – respondi, inexpressivo - Deposite-as, nesse prato, e vá para o sofá. A sua ajuda foi suficiente.

– "Tão terríveis", Rod? – ele riu, confiante - Elas estão incríveis! Admita o quanto os meus resultados foram incríveis e o quanto você espera a minha ajuda, aristocrata. A sua timidez apenas irá atrapalhar meus planos para essa noite.

– Que tipo de plano seria atrapalhado pela minha timidez? – perguntei, encarando-o, com antecipada raiva.

Pronto. Era esse o momento.

Ele começaria a despejar contra mim, as palavras que eu havia dito, quando não estava sóbrio. Eu sabia que ele faria isso e estava preparado. Em fatos, eu queria que ele fizesse isso, logo, pois me livraria de uma ansiedade constante.

Kesesese! Você estava pensando em algo pervertido, Rod?! – ele riu, com uma mistura entre surpresa e diversão, encarando-me com olhos ligeiramente arregalados – Eu não esperava essa, aristocrata!

– N-Não era exatamente isso... – com algum constrangimento, dei minha trêmula negativa que não possuía força ou sinceridade.

Eu não tinha culpa! Gilbert sempre fazia propostas maliciosas! Sempre! Como eu imaginaria que, dessa vez, não se tratava disso? Especialmente, após o que eu havia dito, na noite anterior...

– "Exatamente"? – ele exclamou, com um tom ligeiramente surpreso, antes de voltar a rir intensamente.

Os meus olhos estavam pousados nos ingredientes da sopa. Pesados demais para serem erguidos.

– Não se preocupe, Rod. – ele disse, dando de ombros, com um meio-sorriso - No momento, eu não tenho intenções assim, embora pense que você deveria se responsabilizar pela inércia dos meus cinco metros...

"O que você quer dizer com ‘no momento’?! Além disso, eu não me recordo de ter assumido uma responsabilidade tão ímpia!"

– De qualquer modo, já que você está preparando a sopa, diga-me como posso ajudá-lo a preparar o pudim. – ele comentou, com naturalidade, parecendo completamente desinteressado em persistir naquele tópico. O que era suspeito. Gilbert, normalmente, não desperdiçaria uma oportunidade de implicar comigo, após um desleixo de minha parte. Por que ele havia feito isso de maneira tão breve?

Eu não conseguia entendê-lo...

– Pegue o leite, leite condensado e ovos. Eu prepararei o caramelo, pois tenho certeza que você deixará que ele passe do ponto e fique amargo.

...portanto, apenas podia ceder e esperar.

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O pudim estava no forno e a sopa estava sendo fervida. De algum modo, tudo havia decorrido bem. As cenouras da sopa tinham um formato anormal e a massa do pudim estava com mais leite do que o necessário, mas aquele cenário era menos desastroso do que eu previra. Gilbert havia feito o seu melhor para me ajudar e não havia feito piadas sobre a noite anterior.

Nesse momento, eu deveria me resignar com minha confusão, simplesmente aceitar a gentileza de meu colega de quarto e ser grato por ela. Entretanto, uma questão não saía de meus pensamentos.

Por quê?

Por que Gilbert estava sendo tão gentil comigo? Por que ele não havia comentado nada sobre a noite anterior? Suas ações contradiziam todas as minhas suposições sobre a sua personalidade.

– Rod, enquanto esperamos o jantar, eu gostaria que começássemos as suas incríveis aulas... – ele propôs, enquanto apanhava a sacola que havia deixado na bancada.

– Aulas?

– Sim, aulas. Não se lembra da noite passada? – ele fez essa pergunta com considerável espanto, mas sem qualquer ironia.

Infelizmente, eu me recordava dela. Sendo franco, mais do que gostaria. Contudo, não entendia do que ele estava falando. Aulas? Quando havíamos combinado que...?

A minha incrível pessoa irá ajudá-lo a transmitir as emoções apropriadas ao piano. Em resumo, você estará sob as minhas incríveis instruções.

...

Era disso que ele falava? Ele tinha a sincera intenção de ajudar-me? Eu me lembrava de sua proposta, entretanto, encarei-a com tamanho ceticismo que sequer ponderei sobre ela. Percebendo que ele estava disposto a cumpri-la, eu não podia deixar de me sentir surpreso e um tanto animado.

– Você, de fato, fará isso? - essa perguntou soou mais esperançosa do que eu gostaria - Irá me ajudar a melhorar meu piano?

– Evidentemente, jovem mestre. – ele sorriu, carregando a sacola para a sala e depositando-a na mesa – As minhas promessas não seriam incríveis, caso fossem descumpridas. – Gilbert falou isso, enquanto estendia sua mão, com um sorriso de deboche, como se zombasse da minha ignorância.

Enquanto ele retirava algo da sacola, não pude evitar meu intuito de fazer-lhe uma pergunta há muito acumulada em mim.

– Senhor Gilbert...

– Hm?

– Por que você está sendo tão gentil?

Ele ficou quieto por um momento. Apenas por um momento. Depois, riu e encarou-me com algum divertimento.

– Eu estou apenas cumprindo meus deveres conjugais, Rod. – Gilbert respondeu – Além disso, eu sempre sou gentil. – ele ergueu os olhos em minha direção, sorrindo, com intenções traquinas – Gostaria de uma prova, jovem mestre?

– Absolutamente, não.

Kesesese!

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Inicialmente, pensei que a aula de Gilbert se consistiria em dar alguns conselhos, enquanto eu tocava alguma peça no piano, todavia, ele retirou um DVD de sua sacola. Um DVD era um item estranho a ser utilizado em uma lição quanto à execução de uma composição, mas não fui desanimado. O DVD podia ter uma apresentação na qual eu devesse encontrar inspiração. Um documentário tratando de algum pianista ou compositor. Mesmo uma aula gravada era uma possibilidade tangível.

Essa era a minha expectativa, quando me sentei, no sofá, ao lado de Gilbert, com uma proposital distância nos afastando, apesar de suas reclamações quanto a essa necessária separação física.

Quando o filme começou, vi todas essas possibilidades sendo frustradas.

Eu estava confuso. Precisamente, estava perturbado.

Eu entendia que Gilbert tinha a liberdade de utilizar os métodos que achasse adequado para me ajudar e me sentia propenso a respeitá-los, entretanto...

"Como uma animação japonesa, na qual duas garotinhas conhecem um ser estranho, na floresta, relaciona-se ao meu piano?"

Essa pergunta ressoava grandiosamente em minha mente.

Meu vizinho Totoro ou Tonari no Totoro era o nome da animação que assistíamos. Ela contava a história de duas garotinhas que se mudavam com seu pai para uma casa nova, na região interiorana do Japão. A mãe dessas garotas estava hospitalizada e ambas preocupavam-se muito com ela. Por algum motivo, essas meninas se encontravam com um estranho ser da floresta, cujo nome era "Totoro" ou algo similar, fazendo amizade com ele e com sua família. Perto do fim, ocorre um pequeno conflito entre as duas, mas esse ser as ajuda a se reconciliarem, assim, no final, todos estão felizes e a música-tema do filme toca.

Nenhuma das garotas era uma pianista. A mãe delas não era uma pianista. Obviamente, o Totoro também não tocava piano.

Qual era, então, o sentido em assistir aquele filme?

Esperava que Gilbert me explicasse isso. Talvez eu tivesse perdido alguma mensagem subliminar. Talvez aquele filme, nas entrelinhas, deixasse uma lição que eu não havia conseguido extrair.

– O que achou, Rod? Dessa incrível animação?

Eu deveria fazer algum comentário? Não tinha muito para dizer, na verdade.

–... Interessante. – foi minha vaga resposta, enquanto uma expressão confusa se mantinha em meu rosto.

Kesesese! Incrível, não acha?! A Ghibli sempre consegue me impressionar! Esse é um clássico, jovem mestre, então, valorize-o!

Gilbert parecia ter uma grande estima por esse desenho, mas eu ainda não entendia seu ponto em mostrá-lo.

– Por hoje, estamos encerrando, jovem mestre. – ele disse, levantando-se do sofá, deixando-me completamente pasmo com sua resolução. Eu apenas conseguia encará-lo, com minha boca entreaberta, enquanto ele sorria para mim, considerando o fim abrupto de nosso suposto treino como algo perfeitamente natural – Depois de amanhã, teremos a segunda parte dos meus incríveis ensinamentos. Prepare-se, aristocrata!

...Era isso? Ele realmente não pretendia fazer qualquer explicação? Eu não havia compreendido absolutamente nada! Eu sequer podia entender por que havia assistido àquele filme! Como poderia inferir algo quanto ao seu conteúdo?

Não era possível que ele encerrasse o assunto, daquele modo. Essa foi minha conclusão. Como iríamos degustar o pudim juntos, acreditei que ele aproveitaria o momento da nossa refeição para argumentar sobre a - praticamente invisível - relação entre o meu piano e aquele filme.

Novamente, eu estava enganado.

De fato, ele comentou animadamente sobre o filme. Riu das cenas que considerou engraçadas, elogiou as cenas que julgou comoventes e enfatizou várias vezes a sua profunda simpatia pelo Totoro. Apenas isso. Enquanto comíamos e, depois, quando lavávamos a louça juntos, ele falou sobre o filme. Apenas sobre o filme.

Ao terminarmos de guardar os pratos, ele me encarou por um breve momento e esperei, com contida ansiedade, que ele me desse qualquer pista quanto ao motivo que o levou a assistir àquele desenho comigo. Entretanto, ele simplesmente declarou que iria dormir e dirigiu-se ao seu quarto. Por ter me dado às costas, assim que anunciou sua decisão, ele não viu minha expressão bestificada.

O que significava aquilo?

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Na manhã seguinte, acordei um pouco mais cedo do que o habitual.

Eu havia me esquecido de fechar as janelas, ao dormir, portanto, meu quarto havia sido tomado pelo vento forte e gélido do outono. O frio ardia intensamente em minha pele, enquanto a claridade matinal ardia em meus olhos. Como já havia despertado, decidi me levantar. Eu havia praticado pouco o meu piano, no dia anterior. Quando terminei de assistir o desenho que Gilbert trouxera, ensaiei por duas horas. Um tempo insuficiente para compensar o meu dia desperdiçado.

Ao sair, percebi, com algum espanto, que Gilbert estava sentado ao piano, examinando uma partitura, enquanto seu pássaro passeava por seu ombro, parecendo igualmente compenetrado na atividade de seu dono.

– Bom dia. – cumprimentei-o, polidamente, enquanto me encaminhava à cozinha – Esse pássaro já está aqui?

– Está frio. – foi sua prática resposta. Ele a deu, sem retirar seus olhos ou seu foco da partitura a sua frente. – Mesmo um incrível pássaro como o Gilbird precisa respeitar os grandiosos ciclos da natureza.

– Eu não posso dizer que ele está os respeitando, quando vai até seu protetor para se abrigar e conseguir comida. Se ele sente frio, deveria imigrar. Não é assim que os pássaros agem?

Tsk. Seria chato fazer uma viagem tão longa, apenas para escapar do inverno. – ao dizer isso, sua boca lembrou um V invertido, externando seu desgosto com aquela ideia.

– A sua resposta contradiz completamente a sua frase anterior. – retruquei, com contida impaciência. Ele não me respondeu. Começou um inesperado crescendo e o cessou. Depois, recomeçou o crescendo, testando um tempo diferente. Não consegui manter meu aborrecimento. – Eu prepararei panquecas. Você prefere comê-las com geleia, estou correto?

– Kesesese! Correto, Rod! – ele sorriu, enquanto fazia anotações na partitura – Como o esperado da minha incrível esposa!

"Quem é sua esposa, seu tolo?" – pensei, recriminando-o intimamente, enquanto apanhava, no armário da cozinha, o alpiste de seu pássaro e os ingredientes do nosso café-da-manhã.

Lancei um relance a Gilbert. Ele parecia severamente compenetrado em sua análise sobre a partitura. Era interessante observar alguém impulsivo, como ele, dedicar-se seriamente a algo. Principalmente, por saber que seus efêmeros momentos de concentração geravam resultados impressionantes.

– Que composição você está analisando? Alguma obra do Ravel? – perguntei, com curiosidade.

– Schubert. Impromptu, op.90, nº2. – ele respondeu, sem tirar os olhos do piano, enquanto testava o soar de algumas notas.

– Schubert? – estranhei - Por que você está praticando uma composição do Schubert?

– Por quê? – ele teve uma divertida surpresa com a minha pergunta - Eu ainda tenho aulas práticas, jovem mestre!

A menção de Gilbert sobre suas ocupações fez-me recordar do pedido que a proprietária havia feito no dia anterior. Ele parecia distraído, portanto, esse era um bom momento para lançar aquela proposta:

– Lembro-me, agora, que alguns de nossos vizinhos também estarão ocupados, em breve. – falei, com fingida indiferença, enquanto misturava os ingredientes da massa no liquidificador. – Afinal, o recital de graduação está se aproximando.

A única resposta de Gilbert foi um som seco e baixo que transmitia algum desinteresse. Seus olhos vermelhos não se desviaram da partitura.

– Você irá acompanhar algum deles?

– Não. – ele respondeu, sem hesitação. Depois, ergueu-se um pouco para fazer algumas anotações na partitura. Havia uma apatia evidente em suas respostas, que não me revelavam nada além do essencial e comecei a me aborrecer com ela.

– Por que não? – perguntei, dominado por uma frustração que mais se devia a sua indiferença do que à negativa de meu indireto pedido.

– Estarei ocupado.

Evidentemente, aquela era uma desculpa para evitar o início de uma discussão que pouco o interessava. Gilbert, ocupado? Quando aquele tolo esteve ocupado? Eu não podia aceitar a filosofia grega que o ócio era uma ocupação, portanto, desprezei completamente seu argumento.

Reuni fôlego e paciência, para perguntar-lhe:

– Quais serão suas ocupações?

Niyo. Niyo. – ainda lendo a partitura, ele começou a brincar com seu pássaro e não me ouviu.

– Eu darei as panquecas e o alpiste aos pássaros que estiverem na calçada.

Ele voltou-se para mim, com um olhar escandalizado, como se eu tivesse acabado de confessar minha participação em um crime violento. Como eu previra, aquilo havia sido suficiente para capturar sua atenção.

– Como eu dizia, anteriormente, eu posso saber quais serão suas ocupações, senhor Gilbert? – perguntei, passivamente.

A minha boa convivência com Gilbert não se devia a um mútuo afeto entre nós, conforme a proprietária pensava, mas a minha capacidade de suborná-lo.

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–... Rod, eu já disse! Eu sei que os aristocratas costumam explorar as pessoas, mas eu sou incrível demais para me submeter a isso. O velho Beethoven orgulhava-se de sua independência. Eu não poderia ser menos incrível que ele, obedecendo a um jovem nobre! – argumentou Gilbert, abrindo largamente a sua boca, para comer um enorme pedaço de panqueca.

– Eu estou ciente que você estará ocupado com a sua banca, com os concertos de inverno e que, arrogantemente, presume que será convocado para realizar apresentações públicas, em dezembro, ainda assim, insisto que aceite minha proposta e se apresente com um de nossos vizinhos.

– Por que esse súbito espírito de solidariedade, Rod?! Nós não estamos no natal! Desde quando alguém egocêntrico como você se importa com as apresentações alheias?!

– Eu não quero ser chamado de egocêntrico por você! – reclamei justamente, batendo minhas mãos espalmadas sobre a mesa.

– Rod, convenhamos! – ele revirou os olhos - Se você não tivesse a necessidade de se alimentar e dormir, não deixaria o piano!

– Esse é um engano seu. – retruquei, com compostura - O meu foco na melhoria de minhas habilidades não implica minha insensibilidade quanto às pessoas que me cercam.

– Diga o nome de um dos nossos vizinhos. – ele desafiou.

–...

Kesesesese! Você perdeu! – ele exclamou, rindo vitoriosamente, enquanto apontava para mim, como uma criança perversa ao ver seu amigo levar uma queda - Perdeu, jovem mestre!

"Desde quando começamos uma competição?" – pensei, com alguma insatisfação, enquanto erguia meus óculos. No entanto, não fui capaz de respondê-lo. Afinal, Eu não podia negar que não era a minha generosidade que me impulsionava a fazer aquele pedido a Gilbert.

Eu não tinha tanta consideração por meus vizinhos. Não os conhecia nem possuía qualquer vontade de mudar essa situação. Por que me daria ao trabalho de fazer amizade com outros músicos, simplesmente, por que esses moravam perto de minha residência? Não dispunha de tanto tempo livre. Meu piano exigia o máximo de minha disponibilidade.

Por que, então, eu estava sendo tão insistente com Gilbert? Minhas razões eram bastante confusas.

Após a noite em que fui ao apartamento de Francis, esperei que meu colega de quarto abertamente utilizasse minhas confissões embaraçantes para seu entretenimento. Achei que suas piadas e assédios sofreriam um aumento drástico. Estava convicto que ele repetiria minhas palavras constrangedoras sempre que achasse conveniente ou divertido. Apesar de insatisfeito com esse destino, eu já havia o aceitado.

Entretanto, Gilbert não agiu dessa forma.

Ele havia me assediado e implicado comigo, mas não com a intensidade que eu previra. Além disso, parecia estar ignorando completamente aquela noite. A sua suposta aula foi sua única menção ao diálogo que tivemos.

O que havia me desnorteado completamente.

Eu não queria diminuir minha distância em relação a Gilbert. Todavia, magoava-me, quando era ele que a aumentava. Ainda que eu quisesse que ele ignorasse minhas confissões, não gostava de vê-lo fazer isso. Não sabia como lidar com meu colega de quarto nem com os meus desejos contraditórios.

Eu queria convencê-lo a ajudar nossos vizinhos, pois queria reafirmar minha influência sobre ele. Eu queria confirmar o enlace que negaria, caso fosse Gilbert que o propusesse. Minha insegurança levou-me a agir de modo tão infantil que me envergonhava.

– Ainda assim, - persisti, sem conseguir encará-lo – acho estranho que você não tenha qualquer interesse em participar de um evento importante como o recital de graduação.

Ele ergueu uma sobrancelha, atônito.

– Quem disse que não participarei?

A sua capacidade de me irritar com tamanha casualidade era notória. Ele havia dito que não iria participar! Ele! Gilbert! Esse havia sido o motivo de nossa discussão! Aquela era uma tentativa de fazer uma piada? Eu não a considerava engraçada!

– Tomei sua negativa ao meu pedido, como uma declaração da sua ausência, nesse evento. – respondi, meramente, tentando conter minha ira. – Afinal, você não está no último semestre.

– Eu participarei, mas não com um de nossos vizinhos. – ele disse, antes de pegar seu copo com suco de laranja, intocado até aquele momento, e levá-lo a boca.

Algo doeu, em mim, quando recebi sua decisão. Não imaginava que Gilbert havia escolhido alguém para tocar com ele. Quem seria essa pessoa? Seus amigos, Francis, Antonio e Arthur, não estavam no último semestre. Existia alguém, além desses, que possuía a consideração de Gilbert?

"Uma pessoa que conseguiu persuadir alguém tão arrogante é digna de admiração." – pensei, enquanto um sentimento amargo começou a diluir-se em mim, sem qualquer motivo aparente.

– Com quem você tocará? – perguntei, franzindo as sobrancelhas, com um sentimento incômodo pressionando meu peito.

Ele ainda estava bebendo seu suco de laranja, portanto, não pôde dar uma resposta oral, mas ergueu seu garfo em minha direção, apontando para mim, em um gesto que deixava claro a sua inesperada resposta.

Senti minha perplexidade vir efusivamente ao meu rosto.

Ele, finalmente, terminou seu copo e o depositou sobre a mesa, em um movimento rápido e decidido, antes de me indagar, um tanto confuso:

– Com quem, além de você, eu poderia tocar, jovem mestre?

Como posso explicar o efeito que aquela pergunta tão simples e desprovida de significados profundos teve sobre mim? A minha incredulidade tentava impedir a expansão de minha alegria, sem conseguir detê-la. Uma mistura de felicidade, assombro e de algum constrangimento preencheu-me subitamente, de tal forma, que meu peito parecia completamente lotado.

– Não me recordo de solicitar seu acompanhamento. – respondi, secamente, com meus olhos fixamente pousados em meu prato. Embora preenchido por várias sensações incômodas, alojadas em mim, eu não possuía qualquer pretensão de externá-las, pois sabia que apenas a mera existência delas era um problema para mim. Não poderia reforçá-las, delatando-as.

– Essa é uma recusa, Rod?

O modo como Gilbert sorriu, quando me perguntou isso, provou que ele já conhecia minha resposta.

Que detestável.

– Não. – foi minha resposta. Ela foi tão baixa e fraca, quanto firme. Eu me irritei profundamente por tê-la dado, apesar de não ter sentido qualquer arrependimento quanto a essa. Como o previsto, ela provocou intensas risadas em meu colega de quarto.

Nunca imaginei que Gilbert concordaria em tocar comigo no recital da graduação, por isso, não tive qualquer expectativa a esse respeito. No entanto, havia sido ele que havia feito essa proposta, com a arrogante convicção que eu não poderia deixar de aceitá-la. Era importunador perceber que ele estava certo. Eu havia aceitado seu pedido e, apesar de não demonstrar, eu havia me alegrado ao escutá-lo.

O que havia de errado comigo?

Sim, tocar com um grande pianista era uma razão suficiente para justificar a minha satisfação, como músico. No entanto, não foi esse o único sentimento que tive. Minha felicidade veio acompanhada por nervosismo e hesitação, emoções cuja origem eu não conseguia identificar.

Por que estava tão feliz por ser o único que tocaria com Gilbert? Essa era a pergunta que meu lado racional fazia, com acentuada crítica. Ele reiterava que eu deveria desconfiar da excessiva gentileza de meu colega de quarto e da aproximação que crescia entre nós. Era mais seguro manter alguma distância entre nós, eu sabia disso e esse era o meu desejo. Contudo, era difícil concretizá-lo, quando ele me confundia daquele modo!

– Entramos em acordo, então. – ele disse, sorrindo arrogantemente – Escolha a composição que deseja tocar, jovem mestre. Não se preocupe. Eu tentarei não apagar sua presença, com o meu incrível piano.

– Eu não consigo encarar um favor assim, como um gesto gentil. – respondi, encarando-o com latente irritação. – Por favor, toque seriamente.

– Rod, não me peça algo assim! – ele sorriu, com deboche e cinismo, agitando seu rosto, com os olhos fechados – Se o incrível eu tocasse seriamente, todo o recital de graduação seria esquecido, após a minha impressionante performance e diversos alunos perderiam uma ótima oportunidade de se empregarem! O seu espírito filantrópico poderia permitir tamanha fatalidade, jovem mestre?

Minha resposta foi um olhar que continha cólera líquida e ardente. Gilbert a recebeu com um sorriso quase triunfante, antes de conferir o relógio de parede e arregalar ligeiramente seus olhos.

– Eu preciso ir ao conservatório, Rod. – ele disse, levantando-se - Nós terminaremos a discussão sobre a minha gloriosa apresentação, amanhã.

– Amanhã? Por que não essa noite? – eu não pude corrigi-lo, ressaltando que "sua gloriosa apresentação" era, na verdade, minha e que ele seria apenas um acompanhamento, escolhido por mim, pois essa dúvida se mostrou mais urgente.

– Eu irei visitar o Tonio. – ele disse, enquanto retirava sua camisa. A menção a essa visita e seu gesto provocaram pânico em mim – Quando quiser dormir, vá me chamar no endereço dele, jovem mestre. Ele mora no terceiro bloco, no número 220.

O que aconteceria com as "aulas" que havia proposto? Por que ele visitaria Antonio, no meio da semana, recusando o jantar que eu oferecia a ele? Por quanto tempo ele ignoraria a noite em que visitamos Francis, quando a simples menção a sua visita a seu amigo, havia me provocado imediata tensão?

Não pude perguntar isso a Gilbert, pois ele começou a retirar a parte inferior de suas vestes e todas as minhas forças foram direcionadas ao impedimento da continuação desse movimento.

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O meu dia decorreu de modo tranquilo e rotineiro, em contraste com minha inquietude. Não ocorreu nenhum fato que justificasse o crescimento dela nem uma razão para findá-la, portanto, esse importuno sentimento permaneceu em mim, sem oscilações, até a noite.

O meu retorno a minha residência dissolveu minha forçada indiferença.

Vazio. Silêncio. Ordem. Eram elementos que indicavam a ausência de Gilbert e podiam ser percebidos facilmente por mim. Normalmente, eu sentiria alguma apreciação por esses.

Normalmente.

A minha intenção original, ao preparar meu jantar, era a de fazer uma porção apenas para mim, no entanto, acabei preparando o suficiente para duas pessoas. Enquanto degustava meu wienerbacklhendl, o ruído dos talheres parecia insuportavelmente alto, naquele quarto desprovido de outros sons. A mesa, a sala, o apartamento... Eles pareciam maiores do que eu me lembrava. Suas proporções excessivas provocavam-me alguma angústia.

O significado da minha mudança de percepção era óbvio demais para que eu pudesse refutá-lo.

Tentando ocupar-me, treinei meu piano compenetradamente, enquanto esperava um horário adequado para buscar Gilbert. Sim, eu o buscaria. Por que não? Caso não tomasse essa medida, meu sono seria rudemente interrompido, durante a madrugada. O descanso apropriado é algo fundamental para um músico e, para garanti-lo, era apenas natural que eu o trouxesse para nosso apartamento.

Convencendo-me disso, continuei a tocar, ligeiramente frustrado com os meus acidentais relances para o relógio.

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Quando meu punho bateu de maneira fraca e breve na madeira, provocando pancadas tão discretas que poderiam ter sido apagadas pelo vento, eu estava seguro de minhas razões para realizar minha visita. Minha responsabilidade moveu-me até aquele local. Era ela que evitava meu desconforto, quando eu possuía tantas razões para senti-lo. Ela era tão presente em meu espírito, naquele momento, que apenas pude apresentar um semblante dotado de solenidade, ao perceber que Antonio havia aberto sua porta e encarava-me com alguma surpresa.

– O meu colega de quarto encontra-se em seu apartamento? – indaguei, de maneira prática e direta.

A reação do amigo de Gilbert a minha pergunta foi o surgimento de um caloroso sorriso que iluminou seu rosto. Ele recebeu meu franco questionamento, como receberia um cumprimento dotado de afetividade.

– Senhor Roderich! Estou feliz em vê-lo! – ele exclamou, tomando-me as mãos e dragando-me para o interior de sua residência – Sim, o Gil está aqui! Você gostaria de vê-lo? Ah! Na verdade, não é um momento oportuno para falar com ele! O Arthie está o instruindo, pois ele fará uma abertura de um evento, daqui a alguns dias, e seria péssimo interrompê-los. Os ânimos de ambos ficam demasiadamente exaltados, quando discutem. Acredito que a natureza orgulhosa dos dois tenha a culpa por esses conflitos. Não gosto disso, para ser sincero. Não devemos brigar, pois somos todos amigos. Você concorda comigo, senhor Roderich?

Aquele rápido fluxo de informações não foi suficientemente rápido para evitar minha compreensão, todavia, deixou-me um tanto confuso quanto a resposta que eu deveria dar. Como minha réplica não foi imediata, Antonio tornou a falar.

– O senhor jantou? Espero que não! Temos paella para o jantar! Você gostaria de experimentá-la, senhor Roderich? Gostaria?

Eu daria minha resposta, mas, novamente, fui interrompido.

– Não ofereça a nossa comida para qualquer idiota que venha nos visitar, seu maldito!

Esse comentário veio de um adolescente com olhos verdes que refletiam enorme desgosto com a minha presença. Ele estava sentado no sofá, estendendo seus braços sobre ele, em uma posição que acentuava sua perceptível petulância.

– Não diga isso, Romano! O senhor Roderich é nosso amigo! – recriminou-o, Antonio, suavemente – Ele é o colega de quarto de Gil e cuida muito bem dele...!

– Por que eu seria amigo de alguém que cuida de um membro da família Batata, seu idiota? – perguntou Romano, em uma mistura de menosprezo e escárnio, enquanto agitava sua mão em um gesto que reforçava seu desprezo por mim. A agressividade dele era tão aberta e irracional que não pude percebê-la com mais raiva do que espanto.

Perguntei-me qual era o critério que a proprietária utilizava para escolher seus condôminos. Ela, definitivamente, deveria revê-los.

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Enquanto Antonio tentava persuadir Romano a aceitar que eu jantasse com eles, em um gesto que, segundo seu palpite, propiciaria o início de uma linda amizade entre nós, recebi uma oportunidade de observar o recinto no qual me encontrava, visto que o resultado dessa discussão me parecia irrelevante.

O apartamento deles era um ambiente acolhedor, cujo conforto e simplicidade mereciam sincera apreciação. Todos os móveis possuíam cores tênues e alegres. As toalhas e cortinas eram igualmente simpáticas. A tênue iluminação amarelada revelava uma sala que transmitia grande hospitalidade e três instrumentos musicais que repousavam nessa, como os únicos elementos sóbrios daquele local. Um piano, um contrabaixo e um violoncelo.

Arthur e Gilbert encontravam-se, no piano, discutindo. Cada um deles afirmava suas convicções, com uma determinação próxima da violência:

– Ele dedicou essa composição a seus amigos que morreram na guerra! – exclamou meu colega de quarto, batendo, impacientemente, na partitura com a palma de sua mão - Como você espera que eu a toque com um sentimento puramente alegre?!

– Você é idiota? – a réplica de Arthur apesar de mais calma e composta, não deixava de ser uma firme repreensão - Não ignore a intenção original de Ravel, seu estúpido. Eu não posso aceitar que você a execute quase em moderato, quando a composição deve ser tocada em allegreto! Qual será sua próxima decisão pretensiosa, Gilbert? Você tocará Liszt lentamente e irá simplificar Bach?!

– Se não há um desespero ou melancolia contida na aparente felicidade da Forlane, como eu deveria interpretá-la, Arthie? – perguntou meu colega de quarto, com uma insatisfação delatada por seu rosto de uma forma tão direta que chegava a ser cômica. Ele, casualmente, havia ignorado a ironia e ofensas de Arthur, como se essas apenas atrasassem a resposta que ele gostaria de receber.

– Como as instruções remetem: em alegretto. – reiterou Arthur, fechando seus olhos e suspirando, como se aquela informação fosse óbvia demais para ser dita - Ravel disse que a morte dos seus amigos já era suficientemente triste e que ele não precisava colocar essa tristeza em sua composição. Se você questiona tanto o posicionamento dele, escreva uma rapsódia sobre o seu tema!

Kesesese! Você está certo! – exclamou Gilbert, sorrindo arrogantemente, enquanto estendia sua mão - Eu deveria escrevê-la, pois sou incrível! O espírito do velho Ravel se sentirá lisonjeado com a minha reinterpretação! – seu sorriso, subitamente, tornou-se terrivelmente irônico - Quando isso ocorrer, eu devo dedicá-la a você, Arthie?

– Quão estúpido você consegue ser?!

Arthur começou a disparar diversos insultos britânicos em Gilbert, ao que esse apenas ria passivamente, folheando a partitura sobre o piano. Por uma coincidência, ele ergueu seu olhar, no exato instante em que desci o meu. Eles coincidiram e minha presença finalmente foi percebida.

– Rod? – ele arregalou seu olhar, com mais medo do que surpresa. – Quando você chegou?

Novamente, devo ressaltar que detesto usar comparações conjugais para me referir aos momentos de minha convivência com Gilbert, mas, infelizmente, elas se mostram extremamente eficazes, então não posso evitá-las.

A reação de Gilbert a minha chegada realmente remetia a de um marido que foi flagrado por sua esposa em um ambiente suspeito, quando disse que estaria em outro lugar.

Eu não entendia por que ele agia dessa forma. Sim, era verdade que eu não podia evitar algum desagrado em perceber que ele e Arthur discutiam animadamente sobre o seu piano, enquanto, para mim, convencê-lo a tocar, em minha frente, era sempre um desafio. Todavia, Gilbert não poderia ser acusado por essa escolha. Havia muitas acusações que merecidamente deveriam recair sobre ele, mas não essa. Gilbert apenas não gostava de tocar, diante de mim, pois...

– É tão importante deixar de exibir seus erros para ele?

– Obviamente.

 

"..."

Eu não estava preparado para essa recordação. Ela veio acompanhada por um rubor que ardeu como um tapa, em meu rosto, o que tornou aquela cena ainda mais estranha. Senti que Gilbert continuava a me encarar, mas não devolvi seu olhar. Meus olhos observavam atentamente as minhas mãos fechadas, perante meus joelhos.

Arthur, que também havia acabado de realizar a minha chegada, estranhou aquele súbito silêncio e, com cuidado, tentou rompê-lo.

– Senhor Roderich, eu acabei perdendo o decoro, em sua frente, novamente. – disse ele, tenuamente, com uma pequena angústia transparecendo em seu semblante e em suas mãos, que moviam-se nervosamente. Parecia arrependido por sua ação e preocupado com a forma como eu a encararia. - Eu, sinceramente, lamento ter feito isso. Eu não havia percebido a sua presença... – repentinamente, ele arregalou os olhos e seu rosto adquiriu uma intensa tonalidade escarlate. Ele cerrou os pulsos e franziu as sobrancelhas, antes de exclamar, completamente vermelho- N-Não que eu me importe muito com ela!

– "Muito"? Kesesese! Eu percebo alguma melhora em sua capacidade de comunicação, Arthie? – sorriu Gilbert, implicantemente.

– Eu não quero ouvir opiniões sobre socialização vindas de alguém tão intratável! – reclamou Arthur, com absoluta fúria e nenhum constrangimento. De repente, algumas lágrimas surgiram em seu rosto irritado - Uma pessoa tão vil que foi capaz de beber as minhas ales, mesmo sabendo que eu estava as reservando há tanto tempo!

– Você ainda está guardando rancor? Não é nada incrível chorar por uma mágoa tão antiga, Arthie.

– "Antiga"? Faz apenas alguns dias que você fez isso, seu idiota! E eu não estou chorando! – ele exclamou, com pequenas lágrimas ainda acumulando-se em seus olhos.

– Esse é o triângulo amoroso mais ridículo que vi em toda a minha vida. – comentou Romano, com o início de um perverso sorriso que continha intenso deboche.

– Romano, não diga isso! – repreendeu-o, Antonio, com as mãos na cintura - Se existem sentimentos entre eles, nós não devemos criticá-los! Ah! Eu, finalmente, terminei de servir a paella! Vamos jantar, sim?

You bloody git!

Vazio. Silêncio. Ordem.

Era irônico como os elementos que eu rejeitara efusivamente, eram completamente ausentes daquela sala e pareciam-me, agora, tão convidativos.

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Como já havia jantado, antes de dirigir-me ao apartamento de Antonio, não tinha apetite para um prato farto como uma paella. Ainda assim, aceitei cordialmente o seu pedido. Estava interessado em assistir às apresentações de conclusão de encontro dos três. Especialmente, a que Gilbert faria.

Não conseguia compreender seus esforços em não me mostrar sua execução da Forlane. Meu colega de quarto aparentava maior seriedade quanto a essa composição do que qualquer outra tocada por ele. Seus esforços não superavam os meus, contudo, eram louváveis em comparação ao seu descaso habitual. Observar sua dedicação gerou minha expectativa de assisti-lo tocar essa peça.

Minha espera, contudo, não trouxe resultados.

Em minha presença, Gilbert lia sobre Ravel e estudava a partitura, todavia, não havia escutado sua Forlane nenhuma vez. Duvidaria que ele a praticasse, se não tivesse escutado as críticas que Arthur fez quanto a sua interpretação.

Eu não tinha qualquer ideia que Gilbert também possuía dificuldades em entender o significado de uma composição. Ele parecia tão disperso de responsabilidades que passei a acreditar que suas execuções eram instantâneas e tão espontâneas quanto sua respiração. Deparando-me com uma nova visão sobre Gilbert, também fui forçado a me confrontar com minha ingenuidade.

Ludwig van Beethoven. Nicolò Paganini. Eles foram os principais percussores do romantismo. Poderiam, assim, ser classificados como gênios por sua originalidade e capacidade criativa. Contudo, seria incorreto ignorar seus esforços e elogiar meramente a aptidão natural deles para o piano. Aos cinco anos, Beethoven era forçado a treinar várias horas por dia, ainda que chorasse ou adoecesse. Paganini, com similar idade, era privado de água e alimento, por seu pai, quando titubeava quanto ao seu treino. Foi a brilhante percepção musical de ambos que garantiu a grandiosidade de suas obras. No entanto, a dedicação deles foi imprescindível para que suas composições alcançassem o mérito de sua sensibilidade.

Esforço. Inspiração. Esses elementos não se anulavam. A união desses formava resultados significativos.

Eu não sabia o quanto Gilbert se esforçava, as adversidades que ele encontrava ou os métodos que utilizava para superá-las, mas não me faltava curiosidade para conhecer essas informações.

Como um pianista, eu também nutria interesse por sua prática, não apenas por sua conclusão. Eu apenas gostaria que ele entendesse isso.

– Senhor Roderich, percebo que se encontra bastante taciturno, desde que iniciamos o jantar. – observou Arthur, um tanto preocupado.

Apesar da mesa, de modo geral, estar em silêncio, o meu era diferente dos demais. Era um silêncio compenetrado.

– Não se importe comigo. – pedi - Eu apenas estava me perguntando como o senhor possui tantos conhecimentos quanto a uma peça solo para piano, quando almeja se tornar um maestro.

Gilbert, entendendo a minha indireta referência ao evento que havia presenciado, lançou-me um olhar assustado e deixou a paella, em seu garfo, cair pateticamente em seu prato.

– A sua dúvida certamente é pertinente. – disse Arthur, enquanto dava um pequeno riso que continha uma mistura de divertimento e orgulho, como se ele já previsse que um comentário tão ingênuo seria feito – Não é esperado de um maestro que esse possua tamanhos conhecimentos sobre uma composição feita exclusivamente para o piano. Todavia, eu também toco esse instrumento, senhor Roderich, então, naturalmente, compreendo várias composições feitas para ele. – ele deu essa explicação, enquanto sorria, confiante dos próprios méritos.

Seu semblante sofreu uma rápida alteração, quando ele virou o rosto, resmungando, com algum constrangimento:

– E-E eu não me importo com você! E-Eu apenas perguntei sobre o seu estado por educação! Um cavalheiro sempre se comporta dessa forma! N-Não é como se eu tivesse feito isso por você!

– Foi você que solicitou o piano de seu apartamento? – perguntei, ignorando o estranho complemento de sua resposta.

– Logicamente. – após essa rápida resposta, ele fez uma irritada expressão de desagrado, antes de acrescentar, batendo na mesa com seu punho fechado - Como se um bêbado como Francis precisasse de um instrumento digno como o piano! Ele apenas toca o violino, pois, como ele, esse é um instrumento lascivo e afetado! Essa, provavelmente, foi sua única escolha apropriada, em toda a sua existência, e fico feliz que ele tenha a feito, pois eu o mataria, caso ele tocasse em meu piano ou em meu violoncelo!

– Pianos, violinos e violoncelos. Todos são instrumentos igualmente idiotas. Qual é o sentido em uma disputa entre idiotas? – perguntou Romano, com um sorriso sardônico que me provocava um sincero desejo de agredi-lo fisicamente. Um desejo, aparentemente, compartilhado por Arthur que lançava a ele um olhar ainda mais colérico que o meu.

– Quem você está chamando de idiota, seu dependente físico de macarrão?!

– O seu deboche foi tão rude e insensato que não me darei ao trabalho de revidá-lo. – limitei-me a replicar, contendo meu desagrado para evitar uma discussão - Apenas gostaria de saber por que você acha que o contrabaixo é um instrumento tão superior aos nossos.

– Quem disse que eu toco esse instrumento chato, seu desgraçado? – ele falou, com profundo asco, parecendo enojado com essa ideia. – A idiotice dos irmãos Batata já foi transmitida para você?

Como eu disse, havia um piano, um violoncelo e um contrabaixo na sala de Antonio. Como Romano havia ofendido os três, eu não podia inferir qual o instrumento tocado por ele.

– O que você toca, afinal? – perguntei, contendo minha impaciência.

– Eu não preciso responder você, maldito stalker! – ele respondeu, com uma expressão de completo menosprezo, enquanto agitava sua mão em um gesto que confirmava o sentimento presente em seu rosto.

– O instrumento do Romano é o oboé. Ele parece adorável, enquanto o toca! – respondeu Antonio, animadamente, finalmente, tendo sua atenção dragada ao assunto - O chefe fica extremamente feliz ao vê-lo tocar! Ele parece um fauno, passeando nos bosques! É tão encantador!

– Quem quer ser chamado de "adorável" por um idiota como você, seu desgraçado?! – ele berrou, com seu rosto, completamente vermelho, delatando outro sentimento, além da raiva.

Aquela sutil mudança em sua reação não foi despercebida por mim, contudo, ela não me pareceu digna de relevância, considerando-se que ele foi igualmente rude com seu colega de quarto, como havia sido com os seus convidados.

– Ei, Antonio! Não compare seres inocentes como os faunos com a criatura maligna que habita sua casa! – Arthur fez, com severidade, essa crítica completamente inesperada.

– Vocês se irritam com tanta facilidade... – suspirou Antonio, com um sorriso resignado – Romano, eu sei que você não gosta muito de mim, mas você não deveria externar tanto o seu ódio cego...

– Eu direi o que quiser, maldito! Caso não goste, mude de apartamento ou me processe!

Antonio suspirou mais vez. Depois, tornou a sorrir, candidamente, voltando sua atenção a mim.

– Como eu dizia, senhor Roderich, o Romano toca o oboé. O violoncelo e o contrabaixo me pertencem. Eu já terminei meus estudos do contrabaixo, nesse conservatório, mas fui cativado por um concerto para violoncelo que assisti, durante as apresentações de julho e decidi que passaria a tocar esse instrumento. O piano que possuímos é, basicamente, utilizado pelo Gil e pelo Arthie.

– "Basicamente"?

O sorriso de Antonio adquiriu profundo cansaço e melancolia.

– Algumas namoradas do Romano são pianistas e o tocam, quando nos visitam...

Aparentemente, não deveríamos insistir nesse assunto.

– Por que há um piano, nesse apartamento, quando os moradores dele não o tocam? – perguntei.

– Mesmo que eles não o toquem, o Gilbert, com frequência, utiliza-o, então não há problema. – afirmou Arthur, concisamente, retirando o cabelo que caía sobre seus olhos, sem me dar uma real resposta para minha indagação – Se não houvesse esse piano aqui, ele iria apenas para o meu apartamento e eu não suportaria isso.

A ausência de um "Kesesese!" como resposta nos espantou. Voltamo-nos, imediatamente, para Gilbert e percebemos que ele dormia, com a cabeça repousada em seus braços deitados sobre a mesa.

Surpreendi-me ao vê-lo, adormecido sobre a mesa. Primeiramente, porque não havia percebido o seu silêncio, até aquele ponto, devido à intensidade da minha discussão com seus amigos. Além disso, outro fator que me surpreendia era o sono de Gilbert, pois não via um motivo para esse. Não entendia por que ele havia adormecido tão profundamente sobre a mesa de Antonio, quando não havia me mostrado qualquer sinal de exaustão. O tédio por não estar integrado ao diálogo explicaria por que ele dormia assim?

– Ele adormeceu, huh? – Arthur fez essa questão retórica, enquanto observava o rosto de Gilbert, que estava sentado a sua frente, com alguma curiosidade – Eu imaginava que ele estava cansado, mas não esperava que ele fizesse isso. Não me lembro de tê-lo visto dormindo, alguma vez.

Fusososo! A expressão do Gil, quando dorme, é tão inocente! – sorriu, afetuosamente, Antonio, aproveitando-se do fato que estava sentado ao lado de Gilbert, para, carinhosamente, bagunçar seus cabelos.

– Esse idiota acha que nossa casa é um hotel ou algo do gênero?! Antonio! O que você está esperando?! Acorde-o e expulse-o! – solicitou Romano, irritado como o habitual.

Ninguém se dispôs a acordá-lo. Seria algo covarde acordar alguém que dormia tão profundamente.

A expressão adormecida de Gilbert... Eu já a vira, quando organizamos nosso apartamento há dias atrás. Ela era tão indefesa e inofensiva que não parecia vir de alguém como ele. Mesmo a respiração dele era delicada e suave.

Eu estava familiarizado com seu sorriso de escárnio, com seu semblante arrogante, com seu rosto assustado e com seu olhar indiferente. No entanto, estava completamente desarmado para expressões como aquela.

Inexplicavelmente, a vulnerabilidade que ela me exibia, tornava-me igualmente vulnerável. Gilbert apenas estava dormindo. Mesmo ciente disso, eu...

– Bem, acho que terminamos por hoje. – disse, abruptamente, Arthur. Por alguma razão, sua voz assustou-me, despertando-me de meus devaneios e provocando uma contração involuntária em meus ombros e coração – Senhor Roderich, acho melhor que você e esse idiota voltem para seu apartamento e repousem apropriadamente. – ele sugeriu, enquanto se levantava e vestia seu casaco.

– Não haverá apresentações de conclusão de encontro?

– Elas somente ocorrem, quando o maníaco por vinhos está presente. – respondeu Arthur, com desprazer, enquanto ajeitava a parte superior de suas vestes - Não preciso dizer que não essa decisão não foi tomada por mim.

Quando Arthur dirigia-se a porta e eu me perguntava como faria para acordar Gilbert, Antonio o interpelou pedindo que ficasse mais um pouco, para me mostrar o seu piano. Ele insistiu com grande veemência nessa proposta, ignorando os protestos de Romano que berrava frases como "Não impeça a saída dos seus amigos estúpidos, seu idiota!", "Quem quer ouvir o piano desse maldito?" e outras sentenças igualmente grosseiras.

Respeitei e admirei o modo como Antonio desprezava singelamente os insultos de seu colega de quarto. De algum modo, ele parecia encarar cada ofensa de Romano como uma brincadeira inocente. Eu não sabia se aquilo se devia a força de seu espírito ou a sua ingenuidade em não perceber a intenção hostil presente nas palavras ásperas que recebia, mas o respeitei, assim mesmo. Mesmo que ele não possuísse tanta força interior quanto eu acreditava, a preservação de sua inocência, quando ele tinha amigos como Gilbert e Francis, merecia o meu reconhecimento. Ademais, eu era grato pela insistência de seu apelo, pois realmente gostaria de presenciar uma execução de Arthur.

Aliás, esse, inicialmente, resistiu a se apresentar dizendo que estava ocupado. Além disso, não era como se ele se importasse conosco. Nós não deveríamos interpretar mal as suas visitas. Não era como se ele fizesse isso por que queria. Precisamente, esses foram os seus argumentos, ditos com um semblante repreensor, embora uma tênue coloração escarlate tingisse seu rosto.

Apesar dessa relutância inicial, os elogios de Antonio ao piano de Arthur foram tão entusiasmados e incessantes, que provocou a dissolução de sua resolução original. Ao concordar em tocar, ele nos dirigiu um sorriso trêmulo e nervoso que, inutilmente, tentava esboçar a confiança de alguém apenas nos fazia um favor por ser generoso demais para negar os nossos apelos. Embora ele tentasse disfarçar, era visível o quanto estava feliz e um tanto embaraçado com as palavras lisonjeiras de Antonio.

Em contraste, Romano exibia uma expressão completamente insatisfeita.

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Enquanto Arthur, com um sorriso morno e nostálgico, passava seus dedos pelas teclas do piano, comentando, praticamente, para si mesmo, que havia algum tempo que ele não o tocava, um intenso conflito foi travado entre os moradores daquele apartamento.

Pode ser chamado de conflito, um monólogo ardente, repleto de termos ofensivos, no qual a outra parte envolvida, apenas sorri?

De qualquer forma, as reclamações de Romano pareciam relacionadas ao modo como "o bastardo do Antonio" havia feito seu convite ao "estúpido das sobrancelhas gigantes", sem consultá-lo e havia repartido seu jantar conosco como se "estivessem em uma maldita instituição de caridade". Antonio limitou-se a responder que, se tivesse o consultado previamente, ele ainda teria reclamado. Sem conseguir negar isso, seu rude colega de quarto cessou seus argumentos e intensificou suas ofensas até declarar que iria visitar seu irmão mais novo, pois, pelo menos, a quantidade de idiotas em sua residência era menor. Decidido e irritado, ele marchou até a porta e gritou mais alguns insultos, antes de batê-la, com violência.

A minha memória poderia estar me enganando, mas, teoricamente, a pessoa que havia acabado de sair era o amor platônico de Antonio, não era? Eu havia concluído isso, observando os diálogos do grupo de amigos de meu colega de quarto. Apesar de ciente da minha total insensibilidade para sentimentalismos, eu poderia afirmar, seguramente, que não havia qualquer romantismo na convivência entre eles. O relacionamento deles era mais similar ao de um professor compreensivo lidando com um estudante de temperamento difícil do que ao prelúdio de um relacionamento amoroso. Talvez minhas conclusões quanto aos sentimentos de Antonio estivessem incorretas. Se não fosse isso, o amor dele era mais platônico do que eu deduzira.

Após esse tumulto, Arthur e Antonio não mostravam qualquer sinal de perturbação com a furiosa saída de Romano e Gilbert permaneceu no manso silêncio de seu sono. Eu era o único que encarava a porta, mortificado. Quando perguntei a Antonio, se não seria melhor que ele saísse para reconciliar-se com seu colega de quarto, ele moveu seus ombros e respondeu que não seria necessário agir assim. Romano voltaria, quando estivesse com sono.

Eu, definitivamente, havia me enganado a respeito do relacionamento de ambos.

Sem qualquer lamentação, em seu semblante, Antonio convidou-me a sentar ao seu lado, no sofá, para assistirmos à execução de Arthur. Apesar de um pouco atordoado com o fim abrupto do conflito que havia acabado de presenciar, aceitei seu pedido.

Percebendo nossa silenciosa expectativa, Arthur que, até aquele momento, estava apenas lendo a partitura e preparando suas mãos, começou a tocar.

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A Gnossiene nº05. Essa havia sido a inesperada escolha de Arthur.

As Gnossienes não são peças de difícil execução, sob um ponto de vista técnico. Elas são lentas e seguem o estilo minimalista que Satie apresentara, quando esse compôs as Gymnopedias. Essas composições cedem grande liberdade ao pianista, incentivadas pelas instruções extremamente vagas, deixadas na partitura, como "reflita sobre você" e "siga a ponta do pensamento". O compositor sequer especificou o tempo da execução dessas. As liberdades e facilidades técnicas supostamente permitiriam que qualquer um a tocasse adequadamente. Todavia, isso não ocorria.

Ao tocar uma Gymnopedia ou uma Gnossiene era necessário extrair ao máximo a beleza e o sentimento de cada nota. Elas devem ser completamente aproveitadas a fim de transmitirem a profundidade e encanto das composições de Satie. Uma peça como essa pareceria completamente insípida, caso executada por mim, mas Arthur conseguia conferir a ela as dimensões esperadas de uma obra de Satie.

A liberdade de expressão concedida pelas Gnossienes permitia que os músicos a interpretassem de diversos modos. No caso de Arthur, ele a tocava com a felicidade e nostalgia que também eram percebidas em seu discreto sorriso. Eu não podia deixar de admirar o cuidado e carinho que ele parecia possuir por cada nota da composição. Embora a sua execução não acelerasse meu coração, tomasse-me o fôlego ou levasse lágrimas aos meus olhos, ela me provocava um involuntário desejo de sorrir que considerei tão sincero e digno quanto qualquer uma dessas reações. Entendi por que Gilbert era aconselhado por ele. Uma pessoa que não achava necessário tocar uma peça que exigisse grandes capacidades técnicas para provar seu valor, certamente havia atingido um considerável grau de maturidade como músico.

– Gostaria de ouvir algo engraçado, senhor Roderich?

Essa proposta súbita de Antonio despertou-me de minha imersão na música.

– Não, mas creio que você me dirá de qualquer modo e não tenho objeção a escutá-lo. – respondi, desinteressadamente.

Ele riu docemente.

– Você sabia que, originalmente, o senhor não moraria com Gilbert?

Encarei-o, confuso.

– Havia outra opção? – achei necessário perguntar.

– Essa história é um pouco complicada... Em resumo, estava previsto que o seu colega de quarto seria o Romano.

– Sério? – indaguei, com uma mistura de incredulidade e alívio pelo destino que evitei.

– Sério. – o tom de sua voz foi baixo e suave, para não interromper a música tocada. - Sabe, senhor Roderich, apesar de não parecer, a proprietária pondera muito, antes de escolher os colegas de quarto que habitarão em seus cômodos. Uma combinação errada pode ser uma mistura fatal. Algo como uma mistura de elementos químicos que são inofensivos, quando isolados, mas se tornam tóxicos, quando unidos. No início desse ano, o meu colega de quarto concluiu sua formação e se mudou desse dormitório. O mesmo aconteceu com o colega de quarto do Arthie. Essa coincidência, evidentemente, foi proposital. Na época, o Francis era o colega de quarto do Gil e esperávamos que eu e Arthie passássemos a dividir o mesmo apartamento, uma vez que a proprietária opõe-se firmemente a deixar que apenas uma pessoa ocupe um dos quartos. Entretanto, as coisas não decorreram desse modo. Ela decidiu que o Francis deveria morar com o Arthie para que ambos melhorassem sua convivência e, embora os dois resistissem muito a essa ideia, acabaram cedendo. Afinal, ela ainda é a proprietária. Consequentemente, o Gil tornou-se meu colega de quarto, trazendo consigo esse piano. Essa é a razão pela qual esse instrumento está aqui, mesmo que eu e o Romano não possamos tocá-lo. Interessante, não acha? – antes que eu pudesse responder, ele prosseguiu. -Durante o mês de julho, o Romano se tornou um aluno desse conservatório e veio morar, nesse dormitório. Esse fato foi acompanhado por uma feliz coincidência, pois, nesse mesmo mês, você teve um desentendimento com o seu colega de quarto e ele deixou a sua residência.

– Eu não chamaria essa coincidência de "feliz". – repreendi-o, ainda conservando uma amargura com minhas lembranças dos eventos de julho.

Ele deu um riso espontâneo e breve.

– O esperado seria que você e o Romano passassem a morar juntos. Nós achamos que isso iria acontecer. Era a solução mais prática possível.

– Por que isso não ocorreu, então?

Antonio sorriu, desconfortavelmente:

– O Romano disse que não moraria com algum desgraçado que foi capaz de espantar seu próprio colega de quarto...

– Compreendo.

Estranhamente, havia sido a natureza extremamente grosseira de Romano, que eu desaprovava inteiramente, a responsável pelo meu resgate de um futuro terrível.

– A recusa dele foi um problema para nós. Nós havíamos nos mudado, no início do ano, e não tínhamos disposição para nos mudarmos novamente. Outros moradores desse prédio não fariam algo cansativo como uma mudança, apenas para garantir o conforto de um novato...

Houve um breve momento de silêncio, durante o qual, pude admirar as notas da Gnossiene que vinham como gotas de chuva, rompendo o calor trazido pela umidade.

Antonio pareceu especialmente feliz ao prosseguir sua narrativa:

– Foi o Gil que se ofereceu a morar com você, apesar dessa combinação ser a mais inconveniente possível.

– Inconveniente? – estranhei esse termo. "Inconveniente" não era um adjetivo que pudesse descrever meu relacionamento inicial com Gilbert. "Incômodo" era um termo que cabia melhor.

– Inconveniente. – ele afirmou, com segurança - Eu e Gil tínhamos uma ótima convivência. Eu estava esperando que Arthie ou Francis decidissem se mudar, considerando-se quanto brigam. Além disso, não é recomendável deixar dois pianistas morando no mesmo apartamento. Como a extensão da sala não possibilita a posse de dois pianos, colocar dois pianistas no mesmo quarto é um problema para ambos. – ele suspirou, parecendo cansado com a mera especulação desse evento - Eles sempre discutirão sobre os horários do uso do piano e brigarão muito. Parece-me um problema terrível. – ele lamentou. Subitamente, sua voz e semblante adquiriram um caráter melancólico e pessimista - Se eu tivesse que brigar com o Romano, pelo violoncelo...

Não pude evitar o arquear de minhas sobrancelhas, quando escutei essa racional conclusão. Era verdade. Deixar dois músicos com apenas um instrumento para ser compartilhado entre eles era um forte indutor de conflitos. Seria apenas esperado que eu tivesse algumas desavenças com Gilbert quanto a esse assunto. Todavia, eu não me lembrava de qualquer ocasião em que tivéssemos discutido por essa razão. Nós discutimos. Várias vezes. Contudo, nunca o fizemos, devido à divisão do piano.

Essa conclusão me desconcertou.

– Eu fiquei muito feliz ao perceber o quanto você e o Gil estão amigos. Eu pensei que vocês se detestariam! É maravilhoso perceber que vocês são tão próximos e dependem tanto um do outro! Acho que a divisão de horários entre vocês deve ser muito bem estabelecida...

– Nós não temos uma divisão de horários. – confessei, mais para mim do que para Antonio, em uma voz baixa e rápida.

– Hã?

– Nós não temos uma divisão de horários. – repeti, em um tom um pouco mais alto, ainda mais espantado com o significado de minhas próprias palavras, após reforçá-las.

– Não?! – o assombro de Antonio era evidente, não apenas em seu rosto, como em seus gestos que se tornaram mais agitados. Ele movia os braços rapidamente, enquanto inclinava-se em minha direção – Nesse caso, como vocês fazem para dividir o piano, sem brigarem?! Quando você o toca?!

– Eu, simplesmente, toco, quando quero. – respondi, sem pensar e espantei-me com a forma como as minhas palavras soaram egoístas.

Antonio me lançou um olhar perplexo e o manteve sobre mim, durante longos segundos. Após esse atônito silêncio, ele tentou me dar uma resposta apropriada, mas apenas conseguiu murmurar sons desconexos e incompreensíveis, enquanto ria, forçadamente, passando sua mão pela parte de trás de seu cabelo.

Eu entendia seu constrangimento em continuar a falar sobre esse assunto. Em uma bizarra inversão de papéis, eu havia me tornado o vilão mesquinho e Gilbert, a desafortunada vítima. Aquele era um cenário demasiadamente ridículo para a minha aceitação, portanto, usualmente, eu teria o refutado, contudo, dessa vez, não pude agir dessa forma.

Mesmo que Gilbert raramente se dispusesse a utilizar o piano, admito que não ofereci muitas oportunidades para que ele o fizesse. Eu ocupava o único instrumento de nosso apartamento, durante toda a noite e todo final-de-semana, como se esse fosse, inegavelmente, um direito meu.

Houve vezes em que ele quis utilizá-lo? Anteriormente, eu diria que não. Seria convencido que ele não tinha qualquer pretensão de abandonar seu ócio e que seria um desperdício disponibilizar o piano, quando esse não o utilizaria. No entanto, não podia mais fazer essa cômoda afirmação com tanta confiança. Houve vezes em que Gilbert encarava o piano com tamanho desconforto... Ao fazer isso, ele continha seu desejo de me pedir para usar o instrumento?

Havia uma probabilidade ínfima que essa possibilidade fosse verdade, mas... Eu estava sendo acomodado quanto às concedências de Gilbert?

Eu estava começando a convencer-me da ideia que meu colega de quarto não era tão desocupado quanto tentava aparentar. Os seus diálogos com seus amigos, sua exaustão e alguns pequenos detalhes em sua conduta começaram a me sugerir isso. Eu poderia ser inteiramente persuadido disso, se não me restasse uma importante dúvida: quando ele treinava?

Iniciei uma reflexão profunda e severa, analisando meus motivos para abdicar ou não das poucas certezas que eu possuía quanto ao meu colega de quarto, quando Antonio pôde, por fim, encontrar as palavras adequadas a me dirigir e disse-as, afetuosamente:

– Apesar de imaturo, o Gil é uma pessoa muito gentil, não acha, senhor Rod?

Essa sentença cintilou como uma chama, dentro da névoa do meu pensamento. Tentando disfarçar o conforto que ela me trouxe, fui bastante conciso em minha resposta.

– Definitivamente, não.

Antonio riu.

Nem mesmo eu pude identificar alguma sinceridade em minha resposta. Enquanto a dava, tive uma involuntária vontade de sorrir, embora essa não se devesse inteiramente a doce Gnossiene que era encerrada.

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Notas finais do capítulo

Embora esse capítulo talvez pareça uma grande enrolação, ele teve uma GRANDE importância para o desenvolvimento dos sentimentos do Rod, para responder questões antigas, lançar questões novas e preparar a história para futuros acontecimentos importantes. Sério. T.T
Aos violinistas que estão lendo essa fic, eu peço que não se ofendam com os comentários do Arthur ou do Romano. O Arthur possui seus motivos particulares para ter raiva de violinos - além do revanchismo entre instrumentos, natural em orquestras - e eles serão explicados na próxima fic da série!Quanto ao Romano...Bem, ele é o Romano!XD
Eu tentei postar essa fic às onze da noite, do meu aniversário, mas é complicado organizar os capítulos, aqui no Nyah! e eu acabei indo para a madrugada. Gomen. Gomen.
O próximo capítulo será tão meigo e divertido que estou ansiosa para escrevê-lo. Eu acho que demorarei menos tempo para concluí-lo. Cerca de quinze dias, eu acho.
Eu, novamente, agradeço por vocês serem leitores tão maravilhosos e acompanharem essa fic com tanta disposição. Eu continuarei fazendo o meu melhor!Ò.Ó
Por favor, continuem a ler e a comentar essa fic! Bai, bai!:3
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CURIOSIDADE:
Damn you, John Williams! Como você pôde roubar as composições do Mendelssohn para colocá-las com créditos seus nas trilha sonora de Harry Potter?!XDDD
* Evidências do crime:
http://www.youtube.com/watch?v=sAA9Llwx-rU&list=LLTW3qK_2TvGTyYkDiR9GYXQ&index=1&feature=plpp_video
http://www.youtube.com/watch?v=AF6IAcuokdc&feature=BFa&list=LLTW3qK_2TvGTyYkDiR9GYXQ&lf=plpp_video
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