Obaka-san! escrita por Mayumi Sato


Capítulo 2
02. Allegro Scherzando.(Rachmaninov)


Notas iniciais do capítulo

Para os que não sabem, "Allegro" é um termo que significa que a peça(ou o movimento) é rápido.
Esse capítulo possui sugestões sexuais, mas nada que a censura de 16 não tivesse alertado. No entanto, estou avisando a vocês para ninguém se assustar.-_-º
A parte que o Gilbert toca é do momento 1:46 até o 3:00. Por favor, não vejam a parte anterior ou a seguinte a essa. EU ESPERO QUE VOCÊS APENAS ESCUTEM O MOVIMENTO INTEIRO, QUANDO O RODERICH REALMENTE SE APRESENTAR. A PARTE "CHEGOU A MINHA VEZ" SERIA UM BOM MARCO INICIAL.^_^



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http://www.youtube.com/watch?v=Q8KxMmUlmKc&feature=feedlik - Allegro Scherzando(Rachmaninov)

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                                                                   02.

                                                       - Allegro Scherzando -

Admito que minha impressão inicial de Gilbert não foi positiva. Ele me pareceu alguém irresponsável e sem modos. Seu piano me convenceu a aceitá-lo, mas minhas suspeitas não foram reduzidas. Estava convencido que seria árduo conviver com ele.

Confesso que me enganei a seu respeito. Por piores que fossem meus pressentimentos, eles nunca foram tão terríveis quanto a realidade. Desde que Gilbert se instalara em nosso quarto, tive que lidar constantemente com aborrecimentos que jamais pensei que teria. Não apenas sua personalidade era irritante, como sua conduta também o era. Meu colega de quarto parecia ser fisicamente inapto de praticar um gesto simples como, ao retirar a roupa, colocá-la em um cesto. Ele também parecia inapto de tirá-la se não fosse na minha frente, o que me deixava constrangido e desconfortável. Não lavava sua louça, após terminar de usá-la, mesmo que tivesse a utilizado apenas para sorver algum líquido cujos resíduos seriam facilmente removidos da porcelana, caso ele tentasse. Ao terminar de usar um objeto, não o colocava no mesmo lugar. Ao invés disso, simplesmente o lançava para trás, como se, subitamente, ele tivesse se tornado completamente descartável e um tanto desprezível. Meus esforços para manter a ordem nos espaço que utilizávamos estavam sendo derrotados pela bagunça que ele gerava, no que eu via como uma completa demostração do princípio da entropia. O universo tende ao caos. Essa lei física poderia facilmente ser compreendida e aceita por qualquer um que entrasse no local em que residiamos. Havia lixo e roupas sujas por todos os cantos, com exceção ao piano, o único objeto que ele respeitava. Não sei o que seria capaz de fazer se nem ele tivesse sido poupado.

Sempre tentei manter a organização de nosso quarto e, não apenas arrumava meus pertences, como parte daqueles que eram de Gilbert, mas a quantidade absurda de detritos espalhados pelo quarto não podiam ser ordenados no pouco tempo livre que eu tinha. Consequentemente, na manhã seguinte, eu percebia com melancolia e contida fúria que não apenas a desordem do dia anterior não havia sido desfeita por Gilbert, como havia aumentado. Assim, eu sempre limpava o nosso apartamento, mas ele, gradativamente, tornava-se mais sujo.

Além da desorganização de Gilbert, havia outros hábitos seus que me incomodavam. Ele, com frequência, saía para beber com amigos e, ao retornar, durante a madrugada, acabava me despertando, pois sempre esquecia as suas chaves e berrava por mim, até que eu abrisse a porta. Sua conduta também era a responsável pelas reclamações frequentes que eu recebia de meus vizinhos. Os que não estavam dormindo, estavam tentando tocar, duas atividades que eram rudemente interrompidas pela voz elevada e impaciente do idiota que morava comigo. O corredor, diferente dos quartos, não era isolado acusticamente, logo, eu era frequentemente insultado como se coubesse a mim, a responsabilidade pelos atos daquele tolo. Eu não queria tal fardo! Por que eu estava sendo tratado como a mãe de um adolescente problemático?!

Ah, sim. Além do que já foi citado, havia mais uma rotineira ação de Gibert que me incomodava profundamente...

- Hum...A-Ah!

- Kesesese. Parece que você está gostando dos meus cinco metros...

- A-Ah! G-Gil, eu...!

- C-Como v-você o-ousa fazer coisas tão obscenas no meu sofá?! - interrompi aos movimentos imorais de meu colega de quarto com uma anônima garota, completamente horrorizado e constrangido, gaguejando nervosamente, mas deixando evidente a minha ira. Eu já havia presenciado a cenas semelhantes diversas vezes, mas nunca conseguia me acostumar a vê-las! Aquilo era completamente vergonhoso! C-Como ele podia fazer algo assim, sabendo que eu estava em meu quarto e que podia ouvi-lo?!

- Quer participar? - ele propôs, seriamente, ignorando os meus protestos - Ah, mas eu não gostaria que outro cara ficasse com a minha garota, então você será o uke, certo?

- D-Do que você está falando?! P-Por favor, pare com essa indecência! - repreendi-o novamente. Apesar de me sentir embaraçado, eu precisava ser firme com ele ou seria completamente ignorado. Suspirei, ajeitei meus óculos e prossegui em meus apelos, tentando aparentar calma. - Senhor Gilbert, por favor, entenda que o fato de morarmos juntos implica que alguns de seus atos precisam ser censurados e...P-POR FAVOR, PARE DE SE MOVER, ENQUANTO EU FALO!

- Por que você está tão irritado?! - ele perguntou, fitando-me com rancor - Eu o convidei, não convidei? Não tenho culpa se você não se sente preparado para vivenciar algo tão intenso com a minha incrível pessoa. O incrível eu não pode parar, após começar algo assim!

- Eu não me importo com o que você diz! Apenas, pare! Pare! - apesar de meu tom irritado, meu pedido era quase desesperado.

- Sem chances. - ele disse, investindo novamente sobre a dama no sofá, fazendo com que essa produzisse sons que me faziam sentir como se minha alma fosse violada. E-Eu não conseguia mais aguentar aquilo!

- P-Pare com essa indecência...P-Por favor, pare...PARE, SEU TOLO!

- Ah! Chega! - ele, finalmente, perdeu a paciência e bagunçou o cabelo com as mãos, parecendo frustrado. - Mesmo alguém incrível como eu não pode continuar fazendo isso, nessas condições! - sua mão desceu para seu rosto e ele disse, com mau-humor e conformismo, à senhorita cujo corpo era esmagado pelo seu - Argh...Desculpe-me, mas teremos que parar. Culpe esse aristocrata.

- Parar? - ela parecia aflita. Era assustador e inaceitável que uma dama tivesse o desejo de permanecer fazendo um ato tão inapropriado. - Como nós poderíamos parar...?

- Normalmente, seria excitante ter uma platéia, mas eu me sinto como se estivéssemos fazendo sexo, diante da minha avó, então não dá!

- Esse comentário foi ofensivo! - repliquei. - Por favor, vista algo para que possamos conversar!

- Sim, sim. - ele disse, enquanto se levantava e vestia desanimadamente suas roupas, seu tom denotava certo aborrecimento. - Kesesese. Você realmente irá ficar observando, jovem mestre?

Eu não havia realizado que o observava, pois a confusão do momento gerou minha distração, mas, no momento em que noticiei isso, voltei-me imediatamente. Meu rosto ardia intensamente e a risada seca de Gilbert, atrás de mim, sugeria que ele percebia claramente o meu constrangimento, o que o piorava. Ouvi o som da porta sendo fechada. A garota havia ido embora. Senti-me um tanto aliviado com sua saída.

- Então, jovem mestre, - disse Gilbert, por trás de mim, enquanto envolvia meus ombros com um braço e depositava a cabeça em meu ombro esquerdo, parecendo um tanto frustrado. - qual a sua explicação para a sua reação dramática a incrível ação dos meus cinco metros?

Aquele rude comentário exigia uma resposta. Desvencilhei-me daquele excessivo contato e disse, apontando para ele, acusatoriamente:

- Como você pode pedir uma explicação?! Não é óbvio que a sua conduta foi condenável?! Eu já havia conversado com você a respeito disso...!

- Sim, sim. Você me pediu que eu parasse de levar rapazes e garotas para a cama, enquanto estivéssemos morando juntos... - ele repetiu, com uma voz um tanto cansada, as exatas palavras de meu pedido, enquanto revirava os olhos - Essa foi a razão pela qual o incrível eu passou a usar o sofá...

- Não era esse o ponto!

- Não era? - ele franziu as sobrancelhas, em estranhamento - Nesse caso, por que...?

Ele parou de falar, de repente. Isso me deixou apreensivo. Fiquei ainda mais preocupado, quando vi um sorriso arrogante e um tanto perverso surgir lentamente em seu rosto, até tomá-lo de modo irreversível.

- Ah, entendi. - ele disse, enquanto aproximava-se de mim. O quê? O que exatamente aquele tolo havia entendido?? - Compreendo por que você está tão mal-humorado, Rod...

Ele não podia ter compreendido. Não havia qualquer pudor em seu semblante! Ainda assim, decidi me esforçar para acreditar que ele tivesse entendido seu erro. Queria ter essa ingênua esperança.

- Eu espero que você realmente tenha compreendido... - respondi, um tanto repreensivo, enquanto erguia meus óculos novamente.

- Kesesese. - ele riu, maliciosamente, enquanto apanhava meus ombros - Entendi, entendi... - comecei a recuar defensivamente, mas suas mãos não me largaram e a cada passo que eu dava para trás, ele avançava o dobro. O que, exatamente, ele havia entendido?! - Rod, você deseja monopolizar o incrível eu, não é?

Fiquei tão assombrado com aquela conclusão absurda, que simplesmente fiquei boquiaberto, com as minhas sobrancelhas franzindo, expressando involuntariamente meu desgosto. Não consegui emitir qualquer som.

- Isso não dará certo, Rod! - ele declarou, balançando a cabeça, e estendendo a mão em sua explicação, enquanto seu riso parecia acompanhado de um sentimento de pena - O incrível eu não pode se ligar a apenas uma pessoa. Seria uma perda terrível para a humanidade! Kesesese! Eu lamento, lamento, mas se você quiser, nós podemos nos divertir juntos, jovem mestre!

- Você não compreendeu absolutamente nada!

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No dia seguinte, meu cansaço, provocado pela minha discussão com Gilbert, na noite anterior, esmagava meus olhos dolorosamente, forçando-os a se fecharem, mesmo que essa não fosse a minha vontade. Meus ombros pareciam sustentar o terrível peso de algo invisível. Estava completamente exausto. As notas na partitura a minha frente pareciam um enigmático alfabeto, cujas letras se movimentavam e despareciam no papel, mesmo que eu estivesse tão acostumado a lê-las.

- O que há com você, Roderich?- perguntou meu professor, um senhor em seus cinquenta anos, cujas profundas olheiras e sua calvície eram os únicos traços que envelheciam sua aparência.

Apesar de estar com tanto sono, eu havia ido ao conservatório. Era uma tarde ensolarada. No momento, eu estava em minha aula prática.

- Não é nada. - respondi, agitando minha cabeça, tentando me manter desperto - Por favor, desculpe-me. Estou um tanto cansado, mas farei meu melhor...

- Eu sei que fiz uma crítica séria ao seu piano, Roderich, - ele disse, parecendo preocupado - mas eu nunca disse que você precisava praticar a ponto de ficar exausto para compensar suas falhas. Isso não é bom para a sua saúde nem para o seu piano. Repouse apropriadamente.

- Ah, não! Não se trata disso! - apressei-me em corrigir seu mal-entendido - Verdade que estou praticando bastante, mas não é essa a razão de meu cansaço!

- Não é? - ele estranhou - Nesse caso, o que houve? Eu nunca o vi se incomodar com problemas pessoais, Roderich.

- Isso não é relevante. - afirmei, um pouco ríspido, tentando me desviar do assunto - Por favor, permita que eu continue a tocar.

- Isso certamente é relevante, considerando que, pela primeira vez, eu estou vendo você sem conseguir tocar o piano. - sua resposta, um pouco severa, foi rapidamente seguida por um sorriso afetuoso - Vamos. Não há ninguém aqui. Por favor, compartilhe comigo suas preocupações.

De fato, não havia ninguém ali. A sala de aula prática de piano era um imenso espaço de paredes brancas, onde havia dois pianos e meu mestre. Nada além disso. Parecia um ambiente completamente isolado do mundo exterior, com exceção às enormes janelas de vidro que ficavam em uma das paredes e que permitiam a visão do pátio do conservatório, onde havia bancos, árvores e diversos estudantes carregando desajeitadamente um grande volume de partituras. Decidi compartilhar minhas preocupações com meu tutor.

- O meu novo colega de quarto... - falei, ainda pensando em uma forma de expressar o quanto ele era inconveniente -...ele possui costumes despicáveis e uma personalidade terrível. Não sei como lidar com ele. As minhas forças diminuem a cada dia.

- Você nunca foi alguém muito sociável, Roderich...

- Não se trata disso! - repliquei, vendo que ele queria transferir parte da culpa pelo desastroso desfecho de nosso relacionamento a mim, o que era bastante injusto - Ele é alguém completamente desorganizado, que sempre me acorda, quando chega, de madrugada, após sair para beber com os amigos, e que faz atos indecentes, mesmo sabendo que eu estou no quarto! Para lidar com alguém assim, não me bastaria ser sociável, eu teria que ser um mártir...!

- Beethoven era uma pessoa difícil. Mozart também. Às vezes, a personalidade dos gênios é acompanhada de diversas falhas e temos que aguentá-las para que sejamos recompensados com a sua música. - meu professor disse, serenamente, enquanto, suavemente, passava os dedos pelas teclas do piano - Seu colega de quarto deve tocar bem, estou correto? Essa seria a única razão pela qual você não o expulsaria, mesmo quando ele o incomoda tanto.

- Correto... - admiti, abaixando o meu rosto. Sentia-me como um garoto que reconhece sua culpa, após ser repreendido por seus pais - Ele é brilhante. Eu somente o vi tocar piano uma vez, pois nossos horários são incompatíveis, mas o meu coração disparou, quando o ouvi.

- Ele deve ser impressionante. - sorriu meu mestre - Afinal, ele gerou essa expressão tão peculiar em seu rosto...

- Do que você está falando? - retruquei, ofendido com o que ele queria implicar.

Meu professor gargalhou e deu tapas amigáveis, mas dolorosos, em minhas costas.

- Relaxe e tente conviver melhor com seu colega, Roderich! Se você gosta tanto da música dele, tenho certeza que se acostumará com o seu comportamento! O que são algumas garotas, diante da música que uma pessoa produz?

- Ele não traz apenas garotas... - admiti, timidamente, forçando uma expressão séria, com meu rosto ainda abaixado e minhas mãos firmemente fechadas sobre meus joelhos. Minha voz havia soado tão baixa e indefinida que poderia ter se perdido no vento quente do verão.

Meu professor ficou momentaneamente surpreso, mas rapidamente retornou a sorrir.

- Talvez isso seja ainda melhor. - ele riu. Antes que eu pudesse replicá-lo, ele ergueu a palma de sua mão, solicitando meu silêncio, e disse, seriamente - Bem, ainda estamos em uma aula. Você já desabafou sobre os seus problemas, então, creio que poderá tocar melhor o piano.

- S-Sim... - respondi, voltando meu olhar e minha concentração ao instrumento a minha frente.

- Você terá alguns ensaios com a orquestra, antes de vocês se apresentarem. - declarou meu professor, antes que eu começasse a tocar - Por favor, não os perca.

- Estou ciente disso.

Dito isso, comecei a tocar. Por um momento, apenas a música existia.

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Foi desanimador chegar a minha casa e ver lixo por todos os cantos dela, quando eu havia tido um dia tão difícil. Nem o meu próprio espaço me parecia confortável. Suspirei, melancólico, e fui até a geladeira para verificar o que poderia jantar. Foi com desapontamento, mas não com espanto, que percebi que havia apenas cervejas. Eu havia pedido que Gilbert fizesse as compras, pois eu estava sem tempo para realizá-las e esse foi o resultado. Eu já esperava que ele fizesse algo irresponsável, mas não previa que ele sequer compraria qualquer alimento. Ele era um tolo. Eu também havia sido um, ao confiar em seu bom senso.

Sentei-me ao meu piano, deitando nele a minha cabeça que pesava como chumbo.

O que eu deveria fazer?

Em breve, haveria a apresentação de orquestras do conservatório. Elas ocorriam, durante o quente mês de julho, e também no gélido mês de dezembro. Eu havia sido convidado a tocar com uma delas e nós nos apresentaríamos em duas semanas. Aquele era um prazo curto, visto que eu já era criticado por meu mestre, quando ainda nem havia praticado com a orquestra.

Essa é uma peça intensa! Rachmaninov era um romântico! As composições dele eram dotadas de profundo sentimentalismo! 'Sentiment', 'sentiment'! Toque-a com o peito! Toque-a com o corpo! Seja absorvido pela escuridão do Rachmaninov e pela nostalgia de algumas das suas passagens!

"Absorvido pela escuridão..." - pensei, com as sobrancelhas franzidas em uma expressão que mesclava estranheza e compenetração, considerando aquele pedido estranho e bizarro, mesmo que viesse de meu instrutor a quem eu muito respeitava. - "O que ele quer dizer com isso? Eu também não compreendo o que ele quis dizer, quando me solicitou que eu tocasse com o corpo...Como alguém tocaria sem o corpo?".

Suas instruções eram vagas, mas decidi fazer meu melhor para atingir o que ele me propunha, não apenas porque eu tinha consideração pela a orquestra com quem tocaria, mas também pelo fato que eu estava em meu último ano no conservatório, sendo esse o momento ideal para a correção de minhas falhas. Eu deveria absorver o máximo de conhecimento possível, pois, uma vez terminado o meu curso, eu entraria no competitvo ramo dos músicos. A realidade para os músicos que não conseguiam construir fama com seus instrumentos era bastante cruel. Não posso negar que a temia. No fundo, todos os estudantes daquele conservatório deviam temê-la. Essa era a razão pela qual passávamos madrugadas ensaiando composições, violinistas tocavam até seus dedos sangrarem, trompetistas forçavam seus pulmões até o último limite e pianistas, como eu, tocavam até que seus pulsos e mãos estivessem dormentes. Reconhecíamos a grandiosidade da música e temíamos severamente que não pudéssemos viver com ela.

Esse era um temor comum a todos.

- Kesesese! Você não me parece bem, jovem mestre!

-...

Eu o encarava com raiva profunda, mas ele a ignorava e sorria para mim, enquanto puxava minha bochecha. Aquilo era irritante.

- Jovem mestre? Ei, jovem mestre! Jovem mestre! Jovem mestre??

Tomei fôlego e contive minha ira.

- Por favor, não me pertube. Eu irei praticar uma peça.

- Deve ser uma bastante deprimente. Quando entrei, achei que havia um cadáver sobre o piano! - ele exclamou, parecia sério quanto a sua comparação e ligeiramente espantado com os reflexos do meu péssimo humor. - Quem é o compositor?

- O que me deprime não é a peça, mas o fato de ter que tocá-la, enquanto estou cercado por lixo.

- Kesesese! Não se incomode com detalhes como esse, jovem mestre! - ele disse, com um meio sorriso que me parecia um tanto canalha - Um verdadeiro pianista deve se abstrair do que o envolve, quando toca! Esse é um incrível conselho do incrível eu, então o valorize!

- Esse é o quarto em que moramos, então não lhe custaria nada mantê-lo limpo e organizado.

- Isso seria cansativo... - ele resmungou, parecendo cansado com a mera ideia da organização.

- Também seria bom se você parasse de sair para beber. Se não puder fazer isso, pelo menos, pare de perder suas chaves.

- Como as minhas saídas se relacionam ao seu piano, Rod? - ele perguntou, com certa irritação - A sua preocupação com o retorno da minha incrível pessoa não permite que você se concentre?

- Não é esse o ponto. Por favor, pare de distorcer tudo que peço. - decidi fazer minhas justas reclamações, naquele momento. Eu precisava tratar logo de meus assuntos pessoais, para que meus ensaios fossem ininterruptos. - Eu também quero que você faça as compras, conforme havia solicitado antes, e que pare com os seus atos imorais ou que os realize fora desse lugar...

- Ei, ei, jovem mestre! - ele me interrompeu, parecendo se sentir injustiçado com as minhas fundadas acusações - Eu fiz as compras! A geladeira está repleta das melhores cervejas que conheço! Ah! E por que você se incomoda tanto com o que eu faço na minha cama ou no sofá?! O meu antigo colega de quarto achava isso perfeitamente natural!

- Seu antigo colega de quarto aceitava algo assi...? - minha indação repleta de assombro, foi interrompida casualmente por Gilbert.

- Sim, ele é um amigo meu, Francis. Na verdade, acho que eu deveria apresentá-los. Você parece fazer o tipo dele, jovem mestre! - ele sorriu.

Não, eu não tinha interesse em conhecer os amigos dele! Principalmente, um amigo como esse!

AH! Nós estávamos perdendo o ponto da discussão!

- Eu me recuso a conhecê-lo! Da mesma forma, recuso-me a ter apenas bebidas alcóolicas em minha geladeira!

- EI! Isso foi cruel!

- Não, não foi. - respondi, impaciente, finalmente erguendo minha cabeça, mas a apoiando em minha mão direita - Eu apenas desejo que você corrija seus hábitos para que eu possa treinar adequadamente a peça que irei tocar, daqui a duas semanas.

- Se o seu complexo de inferioridade faz com que você se sinta mal ao conviver com alguém incrível como eu, por que você não pede a minha transferência?

Essa foi a sua pergunta. A sua seriedade ao fazê-la não havia sido esperada por mim. Não consegui pensar em uma resposta. Ela encerrou nosso conflito, embora não tenha diminuído o meu rancor.

Comecei a tocar o piano, enquanto ele apanhava uma cerveja na geladeira para, em seguida, bebê-la diretamente na lata.

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Ele continuou mantendo seu comportamento condenável, mas esforcei-me para ignorá-lo. Tinha que manter o foco no treino de meu piano. "Tocar com o peito". "Tocar com o corpo.". "Ser absorvido pela escuridão". Eu ainda não entendia nenhum desses conceitos, mas lutava ardentemente para a melhoria de minha interpretação e esperava que meus esforços, de algum modo, guiassem-me a bons resultados. Além de minhas aulas, também passei a ensaiar com a orquestra, durante a noite. Durante a madrugada, treinava por conta própria. Poucos e esporádicos cochilos compensavam ineficientemente a minha ausência de sono. Eu não poderia parar. Ainda não havia alcançado a "intensidade" que a peça exigia.

Pouco me importava que Gilbert saísse. Eu estaria acordado, quando ele chegasse, então não fazia diferença. Também deixei de me importar com a minha geladeira vazia. Eu não tinha tempo para comer. Na verdade, nada mais me importava. Apenas o piano.

- Ei, jovem mestre. - disse Gilbert, enquanto olhava para mim com a mesma preocupação com a qual um homem verifica se a velha construção em que ele irá entrar, corre o risco de desmoronamento - Você está bem?

- Estou. Não me atrapalhe. - falei, sem interromper os meus movimentos sobre o piano. Faltavam apenas dois dias para a apresentação. Não podia desperdiçar tempo.

- Sabe, eu não tenho qualquer simpatia por um aristocrata como você, Rod, mas eu não quero que você morra, então não se esforce demais. - ele me recomendou. Não parecia dizer isso por gentileza, mas por repúdio a minha exaustiva rotina, presenciada por ele, cotidianamente. Ele parecia se sentir mal apenas em observar-me. Eu não me importava com isso.

- Não se preocupe comigo. - falei, ainda centrado no piano.

- Bah. Se uma incrível pessoa, como eu, permitisse que meu colega de quarto morresse de forma tão estúpida, isso afetaria a minha grandiosa reputação. - Gilbert comentou com calma indiferença - Eu trouxe comida. - ele disse, depositando uma sacola plástica com alguma embalagem que não fui capaz de identificar - Se você quiser se fundir com o piano, isso não me incomoda, jovem mestre, mas tente não morrer, antes que um de nós saia desse apartamento.

Fiz um breve meneio com a cabeça. Não estava me importando com o que ele dizia. Eu apenas pensava em notas. Notas, notas e notas.

- Você irá comer, jovem mestre?

- Sim, irei. - respondi, sem tirar os olhos do piano nem permitir que os movimentos das teclas fossem reduzidos ou pausados. Em resposta, ele fez um som aborrecido e afastou-se de mim. Ouvi o som da porta sendo fechada. Ele havia ido para o seu quarto e, estranhamente, permaneceu nele, durante toda a noite.

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- Você não comeu a incrível comida que eu trouxe para você, aristocrata. - reclamou Gilbert, no dia seguinte, apoiando suas costas na cabeceira do piano, enquanto eu continuava a tocá-lo - Isso me irrita. Coma logo!

- Eu não tenho tempo, no momento...

- Você ao menos está dormindo?

- O que você acha? - perguntei a ele, interrompendo subitamente a música que tocava e o encarando de forma quase agressiva. Meu olhar devia delatar meu péssimo humor.

- Kesesese! Você está horrível, jovem mestre! - ele riu, parecendo divertir-se com o meu deplorável estado. Céus, como ele era incoveniente.

- Se você já terminou de me ofender, eu gostaria de prosseguir o meu ensaio.

- Não, você irá comer, primeiro. - ele disse isso, com bastante segurança - A minha incrível comida não pode ser desperdiçada assim! - ele apanhou a sacola e a estendeu em minha direção, forçando-a contra o meu rosto - Pegue! São biscoitos feitos pelo Francis! Não irão compensar essas duas semanas que você passou sem comer, mas, pelo menos, impedirão que você desmaie! Pegue! Pegue!

- Não quero. - falei, empurrando a sacola. Eu não queria desperdiçar tempo com aquele tolo. Faltava menos de um dia para a minha apresentação e eu ainda não havia conseguido o efeito que desejava - Deixe-me tocar meu piano.

Ele ficou quieto. Achei que havia atendido ao meu pedido, o que foi bastante estranho. Afastei-me, com suspeitas.

- O...O que foi? - perguntei, desconfiando do modo sério como ele me fitava. Fiquei ainda mais assustado, quando sua expressão gradativamente adquiriu um sorriso com um toque de sadismo.

- Há uma maneira incrível de forçá-lo a comer algo, Rod. - ele disse, apanhando um dos biscoitos da sacola - Gostaria de tentar? - propôs, enquanto o prendia com os dentes e aproximava seu rosto excessivamente do meu.

- NÃO!

Minha reação foi imediata, urgente e exaltada. Sendo sincero, sua proposta mais havia me assustado do que me aborrecido, visto que ele realmente parecia capaz de fazer algo assim. Continuei a recuar, enquanto ele se inclinava perigosamente sobre mim.

- O que há, jovem mestre? - ele perguntou, suas palavras soaram estranhamente, devido ao biscoito que ele prendia na boca, mas pude entendê-las - Subitamente, você teve fome?

- Eu os comerei! Eu os comerei por conta própria, então, por favor, pare com isso! - pedi, apanhando rapidamente os biscoitos e os devorando com desespero, enquanto Gilbert ria de mim.

- Ótimo. - ele disse, comendo o biscoito que tinha na boca e parando de avançar, mas sem fazer qualquer movimento que sugerisse que ele pretendia sair de cima de mim.- Depois disso, vá dormir.

- O quê?!

Aquele era um pedido tão absurdo! Ele não podia estar falando sério!

- Explicarei melhor a situação para você, jovem mestre. - ele disse, com um sorriso quase maligno. Seus olhar vermelho esmagava o meu, fazendo com que meu corpo recuasse a ponto de quase cair do banco - Se você não for para a cama por conta própria, eu levarei você. Kesesese! Devo avisá-lo que, quando eu levo alguém para uma cama, ela não consegue se levantar por um longo tempo...

A sugestão implícita em seu comentário provocou um rápido e involuntário erguer de meus ombros e fez com que minha face ardesse. Pela primeira vez, o calor daquela estação me pareceu insuportável. Sua ameaça foi suficiente para provocar em mim tamanho desconforto que apenas pude ceder, torcendo que isso fosse o suficiente para fazê-lo parar.

- Eu irei dormir! - declarei, tentando emitir uma confiança que me faltava, enquanto me levantava rapidamente do piano - Isso será suficiente para atender as suas exigências?

- Claro, claro, jovem mestre. - ele disse, estendendo a mão, com seu típico sorriso com toques de escárnio. - Vá e durma profundamente. Ah! Você não precisa me encarar com tanta desconfiança! Eu sou incrível demais para precisar atacar alguém que está dormindo!

Ele era incompreensível. Essa foi minha conclusão, quando cheguei a meu quarto. Um dos poucos espaços despido de pilhas de roupas sujas e latas de cerveja.

Eu não sabia se Gilbert estava sendo generoso ou não. Suas ações eram estranhas e imprevisíveis. Ele, supostamente, havia sido gentil comigo, mas seus modos eram tão grosseiros e ameaçadores que eu não conseguia sentir qualquer gratidão por ele!

Desisti de pensar nisso. Alisei a colcha de minha cama e bati em minhas almofadas, amaciando-as. Eu iria apenas dormir por alguns minutos. Quando acordasse, compensaria o tempo desperdiçado. Deitei-me com essa expectativa, mas o contato com a maciez do colchão, o suave aroma de lavanda do quarto, sua agradável ordem e a indireta iluminação amarelada de minha luminária provocaram, em mim, uma sensação de conforto que eu não tinha há muito tempo. Instintivamente, sabia qual seria a consequência, caso entregasse-me a ela e tentei resistir, mas minhas pálpebras pesavam tanto e meu corpo estava tão fraco que não pude aguentar. De repente, tudo virou escuridão. Adormeci profundamente.

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Quando acordei, ainda estava desnorteado. Minhas janelas eram de madeira e estavam fechadas, então eu não sabia quanto tempo havia se passado, desde que eu havia adormecido. Eu apenas podia deduzir, com certa amargura, que não dormi apenas alguns minutos, como queria. Meu corpo, um pouco dormente, sugeria que eu havia adormecido por horas. Quantas horas, exatamente? Eu necessitava descobrir isso, com urgência.

Enquanto me levantava, cambaleante, ouvi o Allegro Scherzando de Rachmaninov. Estava tão tonto que julguei inicialmente que aquela música ecoava apenas em minha mente, devido a imensa quantidade de vezes que a toquei. Entretanto, rapidamente percebi que aquele não era o meu piano. Era o mesmo movimento, mas os sons eram totalmente diferentes dos meus.

Abri a porta, abruptamente, e pude ver que a manhã já havia chegado e que Gilbert tocava o piano.

Ele tocava uma das partes mais calmas do movimento. Essa parte era antagônica a peça de Chopin que ele havia tocado anteriormente. Diferente da anterior, acelerada e agressiva, essa era branda e sinuosa. Ainda assim, a forma como ele a tocava...As notas fluiam melodicamente. Eram sons claros e profundos. Havia força em seu piano, mas essa era uma força diferente da que ele havia expressado anteriormente. Era uma força suficiente para tomar todo o quarto, para fazer com que nada além da música existisse por um momento, mas, ao mesmo tempo, sua essência era doce. Ela ressoava gentilmente, transmitindo um sentimento tão vivo que, por um momento, sequer consegui respirar.

Ele percebeu minha presença e parou de tocar, sorrindo arrogantemente para mim.

Rapidamente, senti a sensação morna em meu peito ser substituída por agitação e raiva.

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- Essa é a quarta orquestra a se apresentar, hoje. Ela é formada, principalmente, por alunos das turmas do primeiro e do segundo semestre, mas o pianista convidado é um veterano que está no último semestre. Agradecemos sinceramente ao apoio dele e por sua música. O movimento "Allegro Scherzando", de Rachmaninov, será executado. Como sabem, essa é a peça mais célebre do compositor. Esperamos que a apreciem.

Finalmente, eu estava sobre o palco do auditório da universidade. Era noite e havia apenas uma tênua iluminação amarelada, no palco, de modo que eu não podia enxergar perfeitamente nosso público. Todavia, era nítido que vários vultos estavam lá, esperando pela música de minha orquestra, com o olhar firmemente pousado sobre nós. Todavia, esses vultos não me interessavam. O auditório não me interessava. Eu estava perdido em meus próprios pensamentos.

"Como? Como aquele tolo conseguiu tocar melhor do que eu?! Eu treinei incessantemente! Deixei de me alimentar e de dormir! Por que eu, que tanto me esforcei, perdi para um estúpido que passou todos esses dias, apenas bebendo cerveja?!"

Houve aplausos. O maestro fez uma reverência formal. A música iria começar e eu deveria ficar calmo, mas não conseguia evitar que minha raiva borbulhasse dentro de mim!

Os outros instrumentos começaram a tocar. Em breve, seria minha vez. Eu precisava conter minha ira. Precisava manter o foco...No entanto, eu não conseguia! Pensar que aquele irresponsável, repleto de arrogância, havia superado facilmente os meus esforços sinceros...!

Chegou a minha vez. Lancei sobre o piano toda a minha fúria e rancor. As notas rápidas e intensas foram carregadas com a minha raiva. Meu agressivo rancor mesclou-se com o ritmo impaciente do movimento como se fossem apenas um. Não existia apenas a música. Existia a música e a minha profunda ira.

"Aquele idiota! Aquele idiota!" - pensei, enquanto tocava o piano com todas as minhas forças.

No segundo concerto de Rachmaninov, o mundo da escuridão draga o ouvinte. Isso não é mais 'Tchaikovsky', é, de longe, mais sombrio e pessimista do que Tchaikovsky. A escuridão de Rachmaninov é impenetrável e solene.

Essas haviam sido as palavras de Sabanneyeff. Eu, finalmente, conseguia entendê-las perfeitamente.

Ser dragado pelas trevas...Eu estava familiarizado essa sensação!

"Pessimismo, não é? Ninguém possui mais direito de ser pessimista do que eu!" - pensei, descarregando em um dedilhar feroz e preciso, todas as frustrações que eu carregava há tanto tempo - "Por que ele é incapaz de se comportar adequadamente?! Eu me recuso a perder para alguém tão grosseiro! Eu gostaria que ele, pelo menos, fosse capaz de comprar algo que não fosse cerveja! E o que custa lavar as próprias roupas, ao invés de simplesmente lançá-las sobre o sofá?! Por que ele insiste em tirar suas roupas na minha frente?! Eu deveria processá-lo por atentado ao pudor! Ele me irrita! Ele realmente me irrita!".

Toquei, toquei. Toquei quase ensandecidamente. De modo, que, quando acabei, nem sequer compreendi como havia tocado até aquele momento. Houve um silêncio profundo, rompido apenas pelas fortes batidas de meu coração. Achei que havia cometido uma falha lamentável e quis apenas deitar minha cabeça no teclado e lastimar meu erro grotesco, mas, para a minha surpresa, um homem se levantou e começou a bater palmas.

Vários o acompanharam. As palmas soavam como uma chuva. Minha sensação de alívio foi tão intensa que perdi a força das pernas e não consegui me levantar, quando o maestro veio me cumprimentar.

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- Você fez um bom trabalho. - disse meu mestre, dando tapinhas em meu ombro, enquanto saíamos do auditório do conservatório, ao fim da minha apresentação. - Eu nunca havia visto você tocar assim, Roderich! Na verdade, você me surpreendeu!

- M-Mesmo? - minha reação foi tímida, mas educada - Obrigado.

- Eu apenas estou sendo sincero, Roderich. Eu nunca havia visto um Allegro Scherzando tão violento. Foi bastante interessante! - ele riu. Eu me sentia um tanto frustrado em pensar que aquele resultado havia sido involuntário. - O sentimento de raiva contida, pessimismo...Eles foram transmitidos tão intensamente que minhas mãos tremeram! Eu disse que você deveria ser dragado pela escuridão, Roderich, mas não sabia que meu aluno levaria minhas palavras tão a sério! Eu via uma áurea sombria o cercar, enquanto você tocava! Sério! Além disso, a sua expressão era a mesma de um guerreiro que vai vingar a morte de sua amada!

- A-Ah, mesmo? - ele falava como se eu tivesse absorvido a essência da composição, mas não se tratava disso. Eu realmente estava mal-humorado. - Fico feliz que você tenha gostado. - sorri, forçadamente.

- Entretanto, - ele deu um tom grave a sua voz e desfez seu sorriso - em algumas partes, o sentimento de raiva que você transmitia não combinava com o que estava sendo tocado. A primeira e a terceira parte ficaram excelentes, mas ele não combinou com a melodia nostálgica da segunda...

- Eu peço minhas sinceras desculpas. - abaixei meu rosto, em uma reverência. Ele tornou a rir e começou a bagunçar meu cabelo. Ele estava me tratando como um avô lida com seu neto que quebrou acidentalmente um vaso e começou a chorar. Era comum que ele me desse aquele tratamento, então permiti que ele continuasse a fazer isso.

- Está tudo bem. Na verdade, - ele arregalou os olhos, como se apenas a lembrança fosse suficiente para espantá-lo - eu já fiquei suficientemente surpreso com o fato que você conseguiu transmitir sentimentos ao seu piano, mesmo que, em alguns momentos, tenha sido um sentimento inapropriado. - meu mestre sorriu afetuosamente e tirou a mão de cabelo - Não sei o que você fez, Roderich, mas acredito que, em pouco tempo, verei uma grande evolução em seu piano.

Fiz um meneio positivo com a cabeça. O céu noturno não tinha uma única nuvem e era possível ver a infinitude de estrelas que cintilavam sobre nós. A temperatura havia caído um pouco e abracei meu corpo, em um gesto involuntário. Percebi que ele ainda estava tremendo, assim como estava, no momento em que me levantei do piano.

- Eu acho que irei voltar para assistir às outras apresentações, Roderich. - disse meu professor, olhando de relance para o auditório logo atrás de nós, pude noticiar os sons, um tanto abafado, da primeira parte da Primavera de Vivaldi - Você virá comigo?

- Não, obrigado. - recusei gentilmente - Eu preciso fazer compras.

Acenamos um para o outro e nos despedimos. Enquanto caminhava para o mercado, reparei que meu corpo parecia bem mais leve. Na verdade, havia muito tempo que eu não sentia dessa forma. Pela primeira vez, admiti que a culpa de meu estresse não cabia apenas a Gilbert. As pressões quanto ao meu piano, minha insegurança, a saída de meu colega de quarto...Todos esses elementos já pesavam sobre mim, antes de sua chegada. Metaforicamente, pode-se dizer que o copo já estava cheio em um terço, antes que eu o conhecesse. Quando nos encontramos, ele complementou o restante e, para complementar, espatifou-o no chão.

Todavia, não havia sido ruim ter recebido uma oportunidade de lançar minhas emoções no piano. Eu nunca senti tamanha intimidade com o instrumento com o qual tocava. Nunca havia sentido como se ele fizesse parte de mim. Até aquela noite.

Se Gilbert não tivesse me aborrecido tanto, eu nunca teria chegado ao ponto de extravasar meus sentimentos na minha música. Sua idiotice acabou sendo benéfica, de certo modo. Esse não era meu único débito com ele. Terminada a minha apresentação, minha lucidez começou a retornar e pude perceber que, se tivesse continuado a tocar, sem comer ou dormir, na noite anterior, meu corpo não teria condições de aguentar tocar um allegro. Se meu corpo parecia ter sido esmagado continuamente por um objeto pesado, mesmo que eu tivesse me alimentado e dormido, o que teria acontecido se eu não tivesse feito isso? Eu, provavelmente, desmaiaria em plena apresentação.

Enquanto passava pelas vias desertas e pouco inluminadas do conservatório, constatei, com um pouco de chateação, que não queria que Gilbert fosse embora. Eu sentia que ele provocaria mudanças em meu piano e eu queria vivenciá-las. Não apenas isso...

"Eu quero ouvi-lo tocar o piano..." - admiti.

A razão pela qual eu havia ficado tão irritado havia sido porque, quando ouvi o piano de Gilbert, que tão facilmente superava o meu, senti-me frustrado, pois percebi, naquele momento, que por mais que dominasse as técnicas daquele movimento, eu jamais conseguiria tocá-lo de uma maneira tão envolvente e morna. Eu nunca conseguiria deixá-lo sem ar, como ele fazia comigo. Quando tocava, ele provocava essa desordem dentro de mim, com a mesma facilidade com a qual a provocava em nosso apartamento.

Finalmente, cheguei ao grande portão gradeado do conservatório e fiquei bastante espantado ao ver quem estava nele, acenando para mim, com seu típico sorriso egocêntrico.

- Olá, Rod! Sinta-se honrado! O incrível eu veio aqui para conferir se a sua apresentação não foi tão terrível quanto eu previa!

Fiquei momentaneamente paralisado. Estava surpreso. Aquele era o horário em que ele iria beber com os amigos, mas, ao invés de fazer isso, ele havia me esperado no portão, para perguntar sobre a minha apresentação. Eu não conseguia imaginar por que ele havia feito isso, mas tive um breve sentimento de gratidão.

- Ela decorreu sem grandes falhas. - comentei, retornando a minha postura - Como o esperado.

- Kesesese! "Como o esperado"?! - ele riu debochadamente - Você fala isso com tanta confiança, mesmo que hoje, de manhã, parecesse um estudante que precisou estudar nos últimos momentos para uma prova, no dia seguinte!

- Isso não é verdade!

- Kesesese! Não negue isso, jovem mestre! Se a minha incrível pessoa não tivesse cuidado de você, a sua morte, hoje, sobre aquele piano, seria certa! Kesesese! Você talvez até virasse uma assombração local! Isso seria incrível, não acha, jovem mestre?

-...Muito obrigado. - falei rapidamente, em uma voz fraca e baixa, enquanto voltava meu rosto para o lado, fingindo que ajeitava meus óculos.

- O quê? - ele estranhou. Parecia achar que minhas palavras haviam sido uma estranha alucinação. Tive que repeti-las.

- Obrigado. - repeti, mais claramente, em um volume audível, mas com meu rosto ainda voltado para o outro lado. Eu não queria encará-lo, pois isso me deixaria mais nervoso do que eu já estava. - Eu sou grato pelo que você fez.

O silêncio dele me fez olhar para seu rosto e vi que ele tinha suas sobrancelhas franzidas e a boca entreaberta, em uma estranha expressão.

- Você está com febre, jovem mestre? - ele perguntou, pondo a mão em minha testa - Todos esses dias de treino esgostaram tanto o seu cérebro?

- Q-Que comentário rude! Uma pessoa educada sabe agradecer, quando necessário! No entanto, você não me dá muitos motivos para agradecê-lo e essa é a razão pela qual preciso ser duro com você!

- Sim, sim. Tanto faz. - ele disse, dando de ombros, enquanto colocava os braços por trás da cabeça. Sua aparente indiferença, ao meu agradecimento, deixou-me bastante ofendido e eu já atravessava o portão, quando ele me deteve, segurando meu braço. - Onde você está indo?

- Ao mercado. - respondi, impaciente - Como você parece inapto a compreender que bebida alcóolica não conta como alimento, preciso fazer as compras, por conta própria.

- Eu irei com você! - ele declarou, sorridente, colocando sua mão sobre meu ombro.

- Não há necessidade que você faça isso. - falei, incomodado com aquele contato desnecessário, enquanto tentava me desvencilhar dele.

- Eu irei. - ele repetiu, em um tom mais firme - As minhas incríveis cervejas estão quase acabando e preciso comprar outras.

Era esse o motivo pelo qual ele queria me acompanhar. Embora não houvesse uma real razão para a minha decepção, o fato é que a senti e isso me aborreceu.

- Venha, então. - declarei, caminhando apressadamente em minha tentativa de manter uma distância entre nós. "Cerveja", "cerveja". Ele apenas pensava nisso?

Saímos do conservatório. Havia, fora dele, um mundo completamente diferente. A cidade de Paris era coberta por luzes e sempre parecia estar em uma data comemorativa. Multidões se deslocavam por ela, com rostos que vinham de várias partes do mundo. Ela contrastava bastante com o ambiente quieto e sóbrio, onde estudávamos.

Eu sabia que havia um mercado nas proximidades e decidi caminhar até ele. Não informei nada a Gilbert, que apenas me seguiu, sem reclamar. Ficamos em silêncio, durante um longo tempo, enquanto caminhávamos. Embora esse não fosse desagradável, tive uma repentina urgência de fazer uma pergunta a Gilbert e quis aproveitar a casualidade de nosso momento juntos para fazê-la.

- ...Como você consegue tocar o seu piano com tanta confiança?

- Como é? - ele estava prestes a rir da minha pergunta, quando parei de caminhar e o encarei. Eu havia perguntado seriamente a ele, então gostaria de uma resposta igualmente séria. Ele passou a mão em um dos cabelos, bagunçando-os ligeiramente, enquanto disse, com uma voz áspera e cansada - Argh. Você está falando sério...

- Sim, estou. - respondi, fitando-o para que ele entendesse minha sinceridade.

Ele suspirou e lançou seu rosto para baixo, em um movimento rápido e repentino. Em seguida, começou a falar disparadamente:

- Sabe, Rod, o primeiro concerto do Rachmaninov não foi bem recebido pela crítica. Dizem que o maestro estava bêbado e talvez isso seja verdade, não sei. O que importa é que ele ficou bastante abalado com a desaprovação a sua composição e teve um bloqueio musical que durou muito tempo. Ele somente se recuperou, após um tratamento com hipnose de um doutor chamado "Nikolai-alguma-coisa". Segundo ele, o tratamento com esse cara se consistia em ouvi-lo dizer frases como "Você irá criar composições facilmente", "O seu concerto será excelente"... Através desse tratamento, ele recuperou sua confiança e compôs o seu segundo concerto para piano, a sua composição mais aclamada.

-...Eu não sabia disso. - comentei, surpreso. Eu não imaginava que mesmo um grande compositor como o Rachmaninov se sentia inseguro quanto a sua música. Por alguma razão, isso me deixou um tanto feliz e bem mais tranquilo. Saber que mesmo um gênio da música erudita tinha vivenciado dificuldades e frustrações quanto ao seu piano, deixava-me um pouco mais confortável a respeito dos meus próprios medos.

"Essa foi a intenção dele ao contar esse relato? Acalmar-me?"

Eu já começava a me sentir ligeiramente comovido, quando ele acrescentou:

- Eu e o Rachmaninov somos diferentes, Rod! Eu nunca precisaria que alguém me contasse o quanto eu sou incrível! Eu sempre soube disso! - ele falou, gargalhando chamativamente. Senti certa vergonha em seu lugar e pus a mão em meu rosto, tentando conter meu constrangimento - Eu toco meu piano confiantemente, pois estou certo de minha superioridade! - ele disse, erguendo os punhos animadamente, enquanto seus olhos brilhavam tão intensamente quanto os de uma criança admirando seu herói preferido - Eu sou o melhor e o meu piano é incrível!

Ele não tinha qualquer intenção de me consolar. Provavelmente, queria apenas se gabar. Meu colega de quarto era idiota a esse ponto.

Contudo, voluntariamente ou não, ele havia me acalmado. Eu me sentia bem melhor do que estava há algumas semanas e sabia que isso se devia a ele. Mesmo a sua arrogância havia deixado de me aborrecer tanto e me provocava uma tênue vontade de rir que eu continha por puro orgulho. Não queria agir como se tivesse me acostumado com seu comportamento.

- Por que você está me observando assim, jovem mestre? Está impressionado com o quanto eu pareço incrível, no cenário urbano da França? - ele sorriu sugestivamente.

- É óbvio que não, seu tolo. - respondi, tentando disfarçar um discreto sorriso que escapara por meus lábios, sem uma razão. - Eu apenas estou impressionado com a sua ousadia em se comparar tão facilmente a um pianista como o Rachimaninov. - menti.

Sim, ele era irritante, incômodo e facilmente esgotava minha paciência, mas eu aprenderia a lidar com ele, afinal...

- Ei, Rod! Veja! Aquela loja está vendendo uma das incríveis cervejas que eu trouxe! Vamos comprá-las!

- De forma alguma. É inapropriado que uma pessoa beba com tanta frequência.

- Kesesese. Você está chateado, pois eu não dividi nenhuma das minhas cervejas com você, Rod? Não se preocupe, não se preocupe. O incrível eu dividirá algumas. Não apenas pelo fato que pessoas incríveis sempre são altruístas, como também pelo fato que você, bêbado, seria hilário!

- Não é esse o ponto! Pare de distorcer meus pedidos!

...mantê-lo ao meu lado poderia ser interessante.

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Continua...


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler essa fic e por comentá-la! Os comentários do primeiro capítulo foram um grande incentivo para mim! Espero continuar fazendo um bom trabalho, então, por favor, continuem a ler e a comentar essa fic!>.
Acredito que o movimento, escolhido por mim, foi ideal para expressar a raiva do Roderich, embora, no anime, ele prefira manifestá-la com Chopin.XD
A construção do relacionamento entre os meus personagens é lenta e gradual, portanto, não esperem que o Rod e o Gil se agarrem, de repente, e vivam felizes para sempre. Eu gostaria de demonstrar a construção dos sentimentos deles, um pelo outro, ok?:3
Nesse capítulo, o foco não é o piano do Gilbert - que será focado em outros momentos - e sim, o do Rod. Além disso, o Roderich desse capítulo está completamente sem paciência, pois ainda não se adaptou ao incrível Gil, mas o relacionamento deles mudará com o tempo...Sim, mudará bastante.*risada maligna*
- Momento Curiosidade -
* Rachmaninov era um grande compositor russo que se baseou em Tchaikovsky, outro grande compositor russo. Além disso, Chopin era da Polônia e teve que se mudar, devido a invasão russa e foi após essa mudança que ele conheceu grandes músicos que o influenciaram e provocaram grande melhora em sua música. Rússia, você realmente gosta de música clássica, não é? Kol, kol.
* Para os que não sabem, a razão pela qual o Rússia faz os países bálticos dançarem balé, no filme de Hetalia, seria porque um dos maiores compositores russos era o Tchaikovsky que compunha, sobretudo, balés. "O lago dos cisnes", "O quebra-nozes" e assim vai...:3
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