Obaka-san! escrita por Mayumi Sato


Capítulo 3
03. The Imperial March.(John Williams)


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo e o próximo seriam um só - kol, kol - mas devido a gigantesca extensão que esse capítulo único teria, achei melhor dividi-lo em dois. Não estranhem o tamanho e a velocidade rápido dos acontecimentos do próximo capítulo. Ele seria uma espécie de conclusão desse. Perdoem-me também pelo fato da música em destaque não ter TANTO destaque assim. A REAL música desse capítulo seria a música do próximo capítulo. Eu agradeço pelos comentários e pelo apoio! Que a força esteja com vo...Digo,tenham uma boa leitura!>.
PS: Esses são os links para a versão em piano dessa música e da - cof, cof - outra música que aparecerá no capítulo:
01. http://www.youtube.com/watch?v=doQmsFNGNGY&list=PL793BBB262E98EB88&index=18&feature=plpp_video
02.http://www.youtube.com/watch?v=r8E104yEmtc



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                                          http://www.youtube.com/watch?v=doQmsFNGNGY&list=PL793BBB262E98EB88&index=18&feature=plpp_video

- The Imperial March

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03.

– The Imperial March -

A conclusão de minha apresentação também foi a conclusão do mês de julho. Faltavam cinco meses para a minha formatura. Durante esse período, eu teria que conviver com Gilbert. Algo precisava ser feito para que ele não continuasse a me trazer tantos aborrecimentos, mas era nítido que, para corrigir seu comportamento, não seria suficiente brigar com ele.  Considerando isso, decidi observá-lo para, através do que noticiasse quanto a aquele que compartilhava um quarto comigo, descobrir uma forma eficaz de deter seus maus hábitos. Assim consegui perceber certos padrões em nossa rotina.

Gilbert acordava cedo, todos os dias. Na verdade, mais cedo do que eu. Sempre que eu levantava, às seis e meia, ele já estava acordado. Bem acordado. Normalmente, prestes a tomar seu banho. Uma das coisas que eu gostaria de descobrir seria a razão pela qual ele acordava tão cedo. Após tirar as roupas na minha frente e fazer algumas propostas obscenas, apenas para rir do meu completo desconforto, ele as atirava no chão e entrava no banheiro, para tomar sua ducha. Nosso chuveiro era elétrico, mas ele preferia a água fria, o que me agradava, na verdade, pois contribuia com a redução dos nossos gastos com energia. Enquanto ele tomava seu banho, eu tentava preparava meu café-da-manhã, enquanto me desviava das pilhas de lixo e de fungos que havia no caminho. Eu ia tomar meu café em meu quarto, o único cômodo limpo do apartamento, pois me enojava a ideia de comer algo em um ambiente tão imundo quanto a nossa pequena cozinha. Além disso, a bancada dela, onde, supostamente, deveríamos comer, estava repleta de latas de cerveja e de pratos sujos, o que me impossibilitava de utilizá-la. É desnecessário dizer que a mesa da sala também não podia ser utilizada, por estar repleta de detritos.

Após alguns minutos, Gilbert terminava seu banho e vinha até meu quarto. Apesar de já estar vestido, ele ainda permanecia completamente molhado, como se tivesse esquecido a toalha e apenas vestido a roupa, ao terminar seu banho. Como ele deixava o meu quarto encharcado, eu ia brigar com ele. Ele se aproveitava da minha distração para roubar parte do meu café-da-manhã, o que eu apenas noticiava, quando ele já havia saído. Concluído isso, ele pegava suas partituras e livros, cuja localização ele sempre sabia, a despeito do grau de desordem do apartamento e saía. A maior parte das aulas dele ocorriam durante a manhã. Eu permanecia no apartamento. Minhas aulas eram de tarde.

Durante a manhã, eu estudava teoria musical, deixando a prática para a noite. Não sei o que Gilbert fazia, durante esse período. Durante o horário do almoço, enquanto eu cozinhava, ele retornava. Pedia que eu abrisse a porta, pois sua chave permanecia desaparecida. Entrava, bebia uma cerveja, via-me cozinhando e fazia comentários maliciosos novamente. Normalmente, sobre o meu avental ou sobre o fato que eu seria uma boa esposa. Eu tentava ignorá-lo, mesmo que ele fosse tão irritante. Terminado isso, ele ficava inclinado para fora da janela, parecendo falar com alguém, o que me assustava tanto que eu sequer conseguia perguntar por que ele fazia isso.

Eu almoçava, arrumava o banheiro e ia tomar meu banho. Sempre tomava o cuidado de levar minhas roupas comigo, pois não queria dar a Gilbert a oportunidade de fazer mais sugestões maliciosas ou algo pior. Quando o findava, arrumava o banheiro novamente e saía, deparando-me com a visão de Gilbert, deitado no sofá, lendo alguma coisa, em um caderno que aparentava terrível desgaste, enquanto ria. Eu também não fazia ideia do que havia nesse caderno e, sinceramente, não tinha grande interesse em descobrir, pois previa que seria algo repugnante.

Durante a tarde, eu tinha aulas e permanecia no conservatório algumas horas a mais, para praticar meu piano com maior tranquilidade. Regressava às nove da noite. Duas coisas podiam acontecer, quando eu regressava nesse horário. A primeira seria ver que Gilbert, ainda estava em casa, com as costas apoiadas na cabeceira do piano, enquanto ele comia algo que ele provavelmente havia pedido em um fast-food. Ao me ver, ele sorria para mim, implicava comigo e, sem prestar atenção em minhas respostas, saía, antes que eu pudesse pedir que ele carregasse a chave. A segunda seria perceber que ele estava fazendo algo indecente com um rapaz ou com uma dama no sofá. Se o primeiro caso ocorresse, eu lamentava silenciosamente o seu comportamento e ia ouvir música ou ler algum livro até que ele chegasse, normalmente às duas ou três da madrugada. No segundo caso, brigávamos até que ele cedesse e se despedisse de seu parceiro, pedindo desculpas a ele e fazendo irritantes ironias ao meu respeito. Terminado isso, íamos dormir.

Confesso que eu não conseguia entender como ele nunca tinha ressacas, mesmo que bebesse tanto, como conseguia ser tão animado, com as poucas horas de sono que tinha ou como ele conseguia tocar o piano tão bem, quando eu nunca o via treinar. Minha única conclusão era a de que vida pode ser bastante injusta.

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Apesar de ter feito várias observações, ainda não conseguia compreender vários aspectos do comportamento de Gilbert e não havia pensado em uma forma de lidar com ele. Eu me sentia incomodado com isso. Não imaginei que aquilo me tomaria tanto tempo. Aborrecia-me ter que segui-lo, como uma adolescente apaixonada faria com o seu amor platônico. Eu não queria...!

- Você está bem, Roderich? - perguntou meu professor de análise de estrutura musical. Um homem de cinquenta e três anos, que conservava cabelos castanhos e usava óculos com lentes grossas. Eram duas da tarde e eu estava no meio de uma aula.

- S-Sim... - respondi, franzindo as sobrancelhas, em aborrecimento, e erguendo meu óculos. Eu não podia acreditar que havia pensado tanto em GIlbert a ponto de me esquecer que estava em uma aula. Que estúpido da minha parte.

- Qual o compositor que estamos discutindo, agora?

Eu não fazia ideia. Estive distraído e minha mente se isolou completamente daquele ambiente, por alguns minutos. Sentindo aquela pergunta e os olhos secos de meu professor sobre mim, o pânico me invadiu em porções graduais, mas incômodas. Minha respiração estava acelerada. Ainda assim, tentei manter a calma e usar minha racionalidade. Antes, ele estava falando sobre Liszt, então o compositor mais provável a ser comentado em seguida seria...

- Debussy. - tentei falar isso, como uma resposta, mas ela acabou soando como uma indagação.

- Vivaldi. - ele respondeu, para a minha vergonha, enquanto suspirava, um tanto desapontado - O que há com você, Roderich? Está se sentindo indisposto?

Eu estava me sentindo indisposto. Bastante indisposto. O estresse estava me destruíndo e tenho certeza que o lixo em meu apartamento afetava diretamente minha saúde. Contudo, essa não era uma justificativa para a minha distração. Eu havia cometido um erro e queria pedir desculpas apropriadamente por ele.

- Perdoe-me, mestre. - pedi, fazendo uma modesta reverência - Eu tive alguns problemas pessoais, o que me afetou bastante. Eu peço minhas sinceras desculpas. Espero que você possa continuar sua aula.

- Problemas pessoais...Imagino que devam ser graves, mas, por favor, não torne a se distrair na minha aula. Confundir Vivaldi com Debussy...Sinceramente.

Senti certo menosprezo em seu tom e o considerei injusto. Como ele havia saltado de Liszt para Vivaldi? A diferença de tempo entre os dois era imensa. Além disso, seus estilos nada se pareciam! A falta de desencadeamento lógico das aulas dele era tão condenável quanto a minha distração!

- Está se distraíndo novamente, não é, Roderich? - ele perguntou. Dessa vez, pude ouvir algumas risadas discretas, o que não gostei. De fato, não posso dizer que estava dragado na aula dele, mas eu havia escutado suas palavras.

- Marc Pincerle disse que os concertos de Vivaldi eram, em geral, divididos em três partes, com uma abertura rápida, vívida e majestosa, um... - falei, repetindo suas palavras com outros termos. Ele fez um gesto com a mão, indicando que já havia entendido.

- Roderich, eu queria que você fosse mais parecido com o seu colega de quarto... - ele lamentou, balançando a cabeça - Embora seja tão arrogante, o senhor Gilbert parece apreciar minhas aulas, enquanto, para o senhor, elas parecem uma tortura. Há vezes que penso que você possui vontade de me esbofetear.

Algumas pessoas riram desse comentário que possuía um teor de verdade. Eu não gostava das aulas de análise da estrutura musical, embora essa fosse minha matéria preferida, pois não gostava do modo como o professor a ensinava. Ele era desorganizado e prolixo.

No entanto, no momento, eu não me importei com as risadas ou com a minha oportunidade de explicar os exatos motivos pelos quais eu não gostava de sua aula.  Apenas uma ideia ecoava em minha mente de forma tão repetitiva que era quase confusa.

- O meu colega de quarto é seu aluno?- perguntei, incrédulo -  Gilbert é seu aluno?

- Sim, o senhor Gilbert é meu aluno. - ele disse, enquanto lia algum livro antigo que estava sobre a sua mesa - Vamos voltar a VIvaldi, sim? Gilbert é um grande pianista, mas estamos falando sobre um compositor que compõe principalmente para cordas, sobretudo, violinos, então não há motivos para misturarmos os assuntos...

Mais uma vez, riram. O som das risadas me parecia distante. Eu ainda estava estupefato com a notícia que possuía um professor em comum com Gilbert. Até aquele momento, não havia qualquer elo entre nós. Não poderia conseguir informações, se não as perguntasse diretamente a ele ou as inferisse, através de minhas observações. Todavia, isso havia terminado. Nós tinhamos um conhecido em comum. Alguém que poderia me ajudar a entender a pessoa que morava comigo.

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- O senhor Gilbert é um excelente aluno. - disse meu professor de análise da estrutura musical, em sua sala, solenemente, quando o questionei sobre meu colega de quarto, em privado, ao final da aula. - É bastante aplicado, sempre emite suas opiniões e, pessoalmente, sou um grande admirador de seu piano.

"Ele? Aplicado?"

- Sim, verdade que ele é um tanto inquieto e que é bastante egocêntrico, mas acredito que ele será um dos maiores pianistas formados por esse conservatório. - meu mestre falou isso, com um olhar um tanto sonhador - Afinal, os esforços dele são compensados.

"Esforços?"

- Às vezes, penso que ele se dedica demais para a sua idade. Ele deveria se divertir mais e namorar com alguma senhorita que o fizesse feliz. Ele está apenas no terceiro semestre.

"Dedica-se demais?"

Agradeci por seus comentários e me despedi dele, alegando ter que ir para a minha aula de psicologia da música. A verdade é que eu estava certo que estávamos falando de "Gilberts" diferentes.

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Naquela noite, decidi voltar mais cedo. Estava cansado e decidi treinar o piano em casa, após um longo banho. Quando cheguei, surpreendi-me ao ver que Gilbert novamente estava com o corpo estendido para fora da janela.

Há um limite para o quanto podemos ver coisas absurdas sem questioná-las. Tentamos ignorá-las para não nos envolvermos com elas, mas há um ponto de saturação. Devido a minha enorme paciência, demorei bastante a alcançar o meu, mas, diante das ações absurdas de Gilbert, foi inevitável que ele chegasse.

- O que você está fazendo?! - berrei, com os punhos cerrados. Tentei soar repreensivo, mas o sentimento que me dominava era o de medo.

- Ah, você voltou cedo, Rod. - ele acenou para mim, sem sair da janela.

- Por favor, não ignore minha pergunta. - meu pedido, bastante sério, era quase um apelo.

- O que estou fazendo? - ele perguntou, como se minha indagação o deixasse confuso - Eu estou apenas alimentando o Gilbird.

Ele deu essa resposta como se fosse a mais óbvia possível, embora eu não tivesse a compreendido.

- "Alimentando o Gilbert"? - perguntei, verificando se havia o escutado corretamente e também conferindo sua sanidade.

- Não, o Gilbird! - ele sorriu - O meu pássaro!

- Pássaro? Desde quando você tem um pássaro? - perguntei. Minha voz sutilmente delatava minha indignação. - Você sabe que animais são proibidos e...

Antes que eu terminasse minha frase, ele afastou-se repentinamente da janela e agarrou firmemente o meu pulso, arrastando-me para ela. Ele me segurava com excessiva força e uma dor aguda corria por meu braço. Não era apenas isso que me incomodava, em seu contato, mas o fato que eu estava excessivamente consciente dele.

- P-Pare com isso! - pedi, tentando afastar sua mão, sem êxito. Meu rosto ardia intensamente. Era um pouco constrangedor ver que toda a minha força não conseguia vencer uma parte da sua.

Quando chegamos a janela, ele diminuiu a pressão sobre meu pulso e me aproveitei disso para, rudemente, desvencilhar-me dele. O fim daquele contato foi suficiente para que o meu constrangimento se convertesse em raiva.

- O que você estava fazendo, seu to...?!

Antes que eu pudesse o repreender, minha boca foi calada pela visão de um pequeno pássaro dourado voando para o interior de nosso quarto e pousando no ombro de Gilbert.

- Esse é o Gilbird. - Gilbert disse, enquanto sorria para o pássaro. - Quando ele era um filhote, ele quebrou a pata e eu o resgatei. Desde então, ele me segue por aí. Ele some, de vez em quando, mas costuma voltar.

- Entendo... - comentei, sem conseguir deixar de olhar para a ave sobre seu ombro. Aquela cena ainda me parecia estranha, embora Gilbert parecesse considerar perfeitamente natural que um pássaro livre tivesse se apegado a ele a ponto de fazer esporádicas visitas a sua casa. - Quando você inclinava o corpo para fora da janela era para brincar com ele? - quis confirmar.

- Kesesese! O que mais eu estaria fazendo, jovem mestre?! - ele perguntou, rindo debochadamente, como se eu fosse o estranho, naquela sala. Suspirei e pus a mão sobre a testa.

- Se você não pretende fazer nada além de alimentá-lo, eu não vejo problema. Não é exatamente como se ele fosse seu, então a proprietária não pode reclamar de algo. - finalmente, respondi, enquanto minha voz se mesclava com a minha respiração profunda. Eu não me sentia bem com minha própria decisão e somente a tomei, pois a considerei justa. 

Gilbert sequer me agradeceu. Estava ocupado, brincando com o tal pássaro. Que conduta infantil e inapropriada.

"Somente porque esse pássaro é pequeno, adorável, encantador e amável, isso não significa que ele deveria brincar assim com ele...Somente porque ele é tão bonitinho...Não! Ele definitivamente não deveria fazer isso! Afinal, somos adultos! Se fosse apenas um pouco, talvez não fosse tão terrível, mas...Não, não! Essa não é a atitude de um homem maduro!"

- Kesesese! Você parece estar vivendo um dilema, jovem mestre! - ele riu, enquanto o pássaro saltava para seu braço.

- Fique quieto. - solicitei duramente, enquanto me sentava no piano para tocar o concerto para piano, em G menor, de Dvorak. Ele me fitou de forma estranha, quando me sentei ao piano. Parecia incerto do que via. Não imaginava a razão para a sua reação.

- Você irá tocar o piano? - ele perguntou - Agora?

- Acredito que isso seja bastante óbvio. - respondi, com um pouco de sarcasmo e bastante impaciência, enquanto começava a tocar a peça.

Ele me encarou. Encarava-me continuamente, um tanto reflexivo. Parecia ponderar, antes de tomar uma importante decisão.  Na verdade, seu olhar fixo não me permitia ficar a vontade e atrapalhava meu piano.

- Eu estou saíndo. - ele finalmente falou, para meu alívio. Fiquei surpreso, quando o vi depositar seu pássaro na janela e colocar seu casaco. Ele não estava saíndo da sala. Ele iria sair do nosso quarto. Embora fosse apenas sete e meia da noite. -  Divirta-se, jovem mestre.

- Espere!

Gilbert, um tanto espantado com meu pedido, esperava minhas palavras, com seus olhos vermelhos ligeiramente arregalados. Fui até ele e entreguei a chave que estava no bolso de meu casaco.

- Essa é a minha chave. Eu a confio a você. - falei, depositando-a em suas mãos - Por favor, utilize-a, quando voltar.

- Rod, você sabe que... - sua reação de desgosto sugeria que ele não gostara de meu gesto de confiança. Provavelmente, não queria ter que receber uma responsabilidade. Bem, a ideia de depender tanto dele, também não me agradava, mas se não agisse, ele nunca mudaria.

- Leve-a. - pedi, um pouco mais autoritário - Dessa vez, seja cuidadoso. Você não pode perder essa chave ou ficarei preso, aqui.

- Sim, sim. - ele disse, dando de ombros, e girando as chaves, em sua mão, enquanto saía. - Como queira, jovem mestre.

Não pude ver sua expressão, pois ele já havia dado as costas para mim, mas, de algum modo, sabia que ele devia estar rindo.

Ouvi o som da porta sendo trancada e isso me fez engolir em seco, mesmo que a ideia de dar a chave para ele tivesse sido minha. Na verdade, estava um pouco nervoso, mesmo que achasse bastante improvável que ele fosse tão desleixado a ponto de perder a chave nessas condições.

Decidi ir tomar meu banho. Antes, eu havia começado a minha prática de piano, pois não gostaria de me banhar, enquanto ele estivesse no quarto, por achar que ele provavelmente faria piadas maliciosas, as quais eu não me sentia disposto a ouvir, mas, agora que ele havia saído, não havia razão para esse temor.

Seria bom se eu tomasse banho frios para economizar energia, mas eu não conseguia fazer isso, durante a noite, mesmo que ainda fosse verão. Eu era especialmente sensível ao frio. Liguei nosso chuveiro elétrico e deixei que as gotas mornas escorressem por meu corpo, enquanto eu refletia sobre o motivo pelo qual Gilbert teria saído tão subitamente.

"Isso é anormal. Ele costuma sair às nove. Além disso, ele estava me observando de uma maneira tão estranha..."

O que, exatamente, vi no semblante de Gilbert, quando ele me observava, no piano? Não era escárnio, malícia ou arrogância. Eu estava familiarizado com essas expressões suas e sabia que não era isso que ele transmitia. Havia uma dose de surpresa, mas não era esse seu principal sentimento.

"O que havia com ele?" - questionei-me, enquanto esfregava o xampu, com força, criando uma grande quantidade de espuma.

No momento em que Gilbert, olhou para mim, ele parecia...desconfortável. Sim, era essa a palavra. Por que logo desconfortável? Houve vários momentos em nossa convivência em que ele poderia ter se sentido desconfortável, mas não aparentara isso. Mesmo assim, naquele momento, simplesmente porque fui usar o piano, ele me olhou daquela forma e saiu.

"Talvez ele esteja com medo que eu volte a ficar como estava na época que ensaiava Rachmaninov..." - foi minha melhor conclusão.

A água levou a espuma que restava em meu corpo. Fechei o chuveiro. Envolvi-me em uma toalha já áspera pelo desgaste e fui me vestir para tocar Dvorak. Aquela seria minha primeira noite decente em um longo período e eu deveria aproveitá-la. Mesmo Gilbert não seria estúpido a ponto de perder a única chave do quarto.

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Sonhei, naquela noite. Em meu sonho, a Toccata and Fugue de Bach tocava em um volume alto. Insuportavelmente alto. Meus ouvidos doíam e eu gritava, pedindo que tocassem mais baixo, mas ninguém me ouvia. Por alguma razão, tive uma desesperadora urgência de tocar o piano, mas quando tocava nas teclas, elas não produziam nenhum som. Eu as pressionava com força, mas elas estavam mudas. A música de Bach estava tão alta que eu tinha vontade de provocar, mas não podia fazer isso. Estava em um concerto! Precisava tocar o piano!

Acordei, sobressaltado, com pancadas violentas na madeira de minha porta. Não acreditei no que ouvia. Aquele Gilbert...Ele havia bebido tanto a ponto de esquecer que eu havia emprestado a chave para ele? Seria a primeira vez que ele estaria tão bêbado. Essa não era a única possibilidade. Ele poderia estar fazendo isso pela mera força do hábito. Se fosse esse o caso, eu o mataria.

"Não. Eu não tenho nenhum direito de fazer isso." - pensei, tentando reestabelecer o ritmo de minha respiração, enquanto colocava minha mão em meu peito, sentindo o movimento de minhas costelas e de meu coração acelerado - "Afinal, de qualquer modo, eu não estava tendo a noite tranquila de sono que esperava"

Ele persistiu em suas agressivas batidas, enquanto berrava meu nome. Incomodado com aquele tumulto, levantei-me rapidamente e me dirigi a porta. Não havia me recuperado do sonho desagradável que tive, mas não podia deixá-lo esperando, pois, se o fizesse, ele incomodaria os vizinhos.

- O que você está fazendo?  - perguntei, chateado, quando cheguei a porta - Eu dei a chave a você. Abra logo a porta e entre!

- Er...Rod? Temos um problema.

"Não deve ser o que estou pensando. Não pode ser o que estou pensando..."

- O que é? - perguntei, já encostando meu punho fechado a madeira, prevendo e temendo o que ele diria.

-...Exatamente o que você está pensando... - havia um vago sentimento de culpa em sua voz.

- SEU TOLO!

Graças a gigantesca estupidez de Gilbert, ele não poderia entrar e eu não poderia sair. Era um prisioneiro em meu próprio apartamento. Como ele pudera ser tão irresponsável? Isso era rídiculo. Minha situação era completamente rídicula. Eu sequer tinha coragem de pedir a proprietária que contratasse alguém para produzir uma nova chave, pois sabia que ela riria daquela cena humilhante.

- Eu não me importo em ficar sem a chave, hoje a noite. - Gilbert comentou, enquanto dava uma risada, um tanto estranha e forçada - Ficar sozinho no corredor, durante a noite, é incrível. Eu posso aproveitar para refletir, sob o luar, sobre...!

- Quem se importa com você?! Eu não quero ficar preso aqui!

- Por que não? Há comida, água, um canto para dormir e o piano. Do que mais você precisa? - ele falava isso, com perfeita casualidade, como se realmente não percebesse a gravidade de minha situação.

- Se houver um incêndio, como irei escapar? - falei, temendo verdadeiramente essa possibilidade - E se o prédio começar a desmoronar? O que ocorrerá, caso eu sofra um acidente e não consiga...?

- Kesesese! Rod, você fala como se o nosso quarto fosse um cenário de filmes de ação! - ele zombou de minhas justificadas preocupações.

- Não é um momento para piadas! - recriminei - Por favor, faça algo quanto a isso!

- Você quer que eu faça algo? - houve uma breve pausa - Realmente quer? - o modo como ele perguntou isso, tinha uma insinuação de perigo, mas a lastimável situação em que me encontrava fez com que eu decidisse ignorá-la.

- Não derrube a porta. - foi minha única exigência.

- Sim, sim. - ele respondeu, ainda de forma um tanto perversa - Você é bastante exigente, jovem mestre.

- Se não for capaz de abrir a porta, chame a proprietária.  Ela saberá o que fazer.

- Nada disso. - ele me interrompeu, um tanto aborrecido - Não me subestime. O incrível eu não teria dificuldade em fazer algo tão simples. - dito isso, ele deu uma pequena risada e disse, ligeiramente maligno- Você é o único que precisa se preparar, jovem mestre.

- Por que eu preciso me preparar, quando será você que irá abrir a porta?! - perguntei, assustado.

- Kesesese. Afaste-se um pouco, Rod...

- Eu pedi que você não a derrubasse! - lembrei a ele, indignado, enquanto recuava de maneira tão rápida e nervosa quanto fugiria de um predador.

- Eu não disse que iria derrubá-la. - ele riu.

- Então, o que você fa...?! - antes que eu pudesse terminar minha frase, fui interrompido pelo baque de algum objeto pesado contra a porta, acompanhado pelo som da madeira sendo quebrada.

Houve uma fina nuvem de poeira que irritou meus olhos e minha garganta, impossibilitando-me de ver, de imediato, o que havia ocorrido. Cobri minha boca com o braço esquerdo e esfreguei meus olhos com minha mão direita. Eles ardiam. Muito. Algumas lágrimas deslizavam por meu rosto.

-  Eu sei que fui extremamente incrível, dessa vez, Rod, mas você não precisa chorar! - ouvi aquela familiar e arrogante voz rouca dizer.

Finalmente, abri os olhos. A visão de Gilbert com um sorriso vitorioso, segurando um extintor de incêndio, enquanto a nossa porta tinha um gigantesco buraco, como se tivesse sido atingida por uma bala de canhão, deixou-me em tamanho estado de choque que não consegui respondê-lo.

- Brilhante, não acha? - ele perguntou, nitidamente satisfeito com o próprio potencial destrutivo - Elogie-me! Elogie-me! Ajoelhe-se, perante a minha incrível pessoa!

-...

Não consegui elogiá-lo, nem ajoelhar-me, nem ofendê-lo, nem perguntar o motivo daquele extintor de incêndio estar ali. Estava paralisado, enquanto sentimentos de confusão, espanto e raiva se misturavam tempestuosamente dentro de mim.

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Eu nunca havia permanecido no mesmo espaço que meu colega de quarto por um longo espaço de tempo. Nossas rotinas, bastante diferenciadas, e nosso completo desinteresse em aprofundar nossa relação não permitiam isso. Eu, praticamente, morava no conservatório, enquanto ele parecia possuir instintos nômades que impossibilitavam que permanecesse em casa. Apenas nos encontrávamos em raros, breves e irritantes momentos. Era, portanto, bastante incômodo que eu tivesse que permanecer com ele, durante toda a tarde, enquanto esperávamos a chegada do marceneiro.

Era um sábado e eu gostaria de ter ido visitar uma exposição sobre o corpo humano que estava ocorrendo em Paris. Na volta, gostaria de passar na casa de Elisaveta para fazer uma visita a ela e escutar o seu belíssimo piano. Esses eram meus planos. Não pretendia passar aquele dia laranja de verão ao lado de meu colega de quarto albino com quem eu não tinha uma boa convivência. Todavia, vi-me forçado a fazer isso.

Durante a manhã, eu falara com a proprietária sobre a nossa porta quebrada e ela, após rir bastante do meu relato, ligou para um marceneiro de sua confiança, pedindo seus serviços. Ela dissera que o marceneiro chegaria durante a tarde, mas que esse não havia especificado um horário. Uma pessoa deveria permanecer no apartamento e esperá-lo.

Inicialmente, pensei em deixar Gilbert esperá-lo. Forçá-lo a permanecer em nosso quarto seria como deixar uma criança de castigo. No entanto, previ que ele fugiria, assim que eu saísse e acabei sendo forçado a cancelar meus planos para aquela tarde, para ficar ao lado dele e vigiá-lo. Sim, ficar ao lado dele. Mesmo que eu já estivesse lá para receber o marceneiro, eu não permitiria que ele saísse, pois precisava puni-lo de algum modo.

No fim, o resultado havia sido este: eu e Gilbert havíamos sido forçados a passar uma tarde juntos. O que era um período quase infinito para duas pessoas que apenas se viam por alguns minutos e já brigavam tanto.

Era uma estranha cena. Eu estava sentado no lado esquerdo do sofá, em uma postura apropriadamente ereta, enquanto lia uma biografia de Chopin. Gilbert, sentado na outra extremidade, bebia um refrigerante diretamente na garrafa. Seu corpo parecia esparramado pelo móvel.

- Por favor, não beba algo sobre o sofá. - pedi, sem retirar meus olhos do livro.

Ele fez um som seco com a garganta que sugeria certo menosprezo pelo meu pedido. Continuou a beber sua garrafa, casualmente, como se simplesmente não tivesse me escutado.

- Eu pedi que você parasse de beber sobre o sofá. - repeti, em um tom mais severo, mas ainda tentando focar minha visão nas palavras dispostas sobre as páginas da biografia - Se você derrubar esse líquido sobre ele, com certeza, irá manchá-lo...

- Kesesese! Como se alguém fosse reparar nisso, com o nosso apartamento nesse estado, Rod! Não se preocupe com coisas desnecessárias, jovem mestre.

Ele ria daquela desordem que tanto me transtornava, como um homem aprende a rir dos comentários cruéis de um parente rabugento. Senti minhas sobrancelhas franzirem.

- Não se acostume com a bagunça que você gera. Corrija-a, como um adulto responsável. O meu quarto sempre está arrumado, pois...

- O meu também. - ele me interrompeu.

Involuntariamente, lancei a ele um olhar arregalado. Ele não podia estar falando sério.

- É verdade. - ele respondeu, vendo que eu era incapaz de acreditar em sua resposta. Subitamente, seu habitual sorriso ligeiramente perverso veio ao seu rosto.  - Nós podemos ir até lá, se você quiser conferir, jovem mestre, mas, se fizermos isso, acabaremos bagunçando a cama...!

- Pare com esses comentários inapropriados! - solicitei, afundando meu rosto no livro, para que Gilbert não visse que ele estava vermelho.

Por alguma razão, ele realmente parou. O silêncio retornou. Ele continuou a beber seu refrigerante de cola, mas decidi não importuná-lo. Havia brigado com ele, quando ele perdeu a chave e quebrou a porta, na noite anterior. Havia brigado com ele, naquela manhã, quando o avisei que ele não poderia sair. Havia acabado de brigar com ele, novamente. Cheguei a um ponto em que estava exausto de fazer reclamações que sempre eram ignoradas.

Ele tomou um último e longo gole de sua bebida e, em seguida, fez um "AH!" exagerado. Discretamente, pus-me a observá-lo para ver o que ele faria com a garrafa. Conforme eu previa, ele simplesmente a atirou atrás do sofá. Tomei fôlego, tentando manter a calma e tornei a ler meu livro. Mais minutos silenciosos decorreram.

- Você não irá ao meu quarto?

- Não. - respondi, de maneira automática. Dessa vez, estava realmente concentrado na vida e obra de meu compositor preferido.

- Quando o marceneiro chegará? São três e meia da tarde.

- Eu não sei. - respondi, ainda lendo.

- Estou com fome.

- Prepare algo.

Houve mais um momento de silêncio, antes que eu sentisse o peso sobre o sofá diminuir consideravelmente. Ele havia se levantado. Ergui sutilmente meu olhar, para averiguar onde ele estaria e foi com certa surpresa que percebi que ele estava sentado ao piano.

Gilbert não costumava tocar na minha frente. Havia feito isso, apenas duas vezes, sendo que uma delas havia sido acidental. Eu o veria tocar o piano pela terceira vez.  Admito que esperei por isso com certa ansiedade. Gilbert era um completo tolo, mas o seu piano tinha um forte efeito sobre mim.

"Que música ele tocará?" - perguntei-me, vendo que ele encarava o piano compenetradamente, enquanto preparava suas mãos - "Chopin, novamente? Erik Satie? Bach?"

Ele começou a tocar. Aquela introdução era excessivamente familiar e eu a reconheci de imediato. Por que logo aquela música?! 

- Por que você está tocando a música do vilão de "Guerra nas Estrelas"?! - perguntei, com indisfarçável decepção, levantando-me do sofá, em um movimento quase impulsivo.

- A "Marcha Imperial". - ele disse, em inglês, especificando o nome da música que ainda tocava - Por que eu não a tocaria? Ela é incrível, não acha?! - ele sorriu, com ardente entusiasmo, sem cessar de tocar. Parecia empolgado. Se eu permitisse, ele apenas iria tocar aquilo. Eu não queria isso! Essa era uma rara oportunidade de vê-lo tocando o piano! Ele não podia tocar algo mais profundo?

- Se você pretende tocar o piano na minha frente, ao menos toque algo clássico, seu tolo. - murmurei, sem encará-lo, com os braços cruzados sobre o meu peito.

- Algo clássico, huh? - ele interrompeu seu dedilhar e refletiu por alguns segundos. Depois, deu um grande sorriso - Kesesese! Entendo, entendo! Nesse caso, tocarei algo clássico para você, jovem mestre.

Ele novamente preparou suas mãos. Aproximei-me do piano, esperando pela música que ele tocaria. Ele aparentava gostar de peças rápidas e agressivas, então provavelmente eu escutaria algo de Beethoven, Liszt, Chopin ou Rachmaninov.

Ele começou a tocar uma música com um ritmo inesperadamente alegre...Ela, de algum modo, lembrava uma música de um videogame e me parecia vagamente familiar...Ela era...

"AH!" - a lembrança invadiu-me, como se esbarrasse em mim.

- Por que você está tocando a música-tema de "Super Mário"?! - minha pergunta era, no fundo, uma reclamação.

- Do que você está falando, Rod? - ele riu, tocando animadamente - Você pediu algo clássico. Essa música definitivamente é um clássico!

Afundei meu rosto em minhas duas mãos. Não fazia ideia se ele falava sério ou se estava apenas implicando comigo. Pelo que sabia de meu colega do quarto poderia ser qualquer um dos dois.

"Argh." - meu profundo desgosto contrastava com a animada música que tomava nosso quarto.

Eu apenas queria ouvi-lo tocar Chopin novamente. O seu piano poderia ser suficiente para compensar todos os problemas que ele me trazia. Meu desejo era algo tão simples, mas ele parecia incapaz de atendê-lo.

Meus pensamentos foram interrompidos pela voz rouca e baixa de Gilbert cantarolando algo como "Super-Mario...Yup". Encarei-o. A boca dele se movia de modo extremamente discreto e sua voz soava tão baixa e indefinida quanto um sussurro. Era evidente que ele não queria que eu percebesse que ele cantarolava.

Francamente, achei isso um pouco engraçado.

Meu professor de análise de estrutura musical havia se referido a Gilbert como um dos melhores alunos de nosso conservatório. Nossa proprietária o via como um gênio excêntrico. A pessoa que tocava piano, diante de mim, era, possivelmente, um dos pianistas mais brilhantes da França, mas, em minha frente, tocava uma música de videogame, enquanto cantava timidamente, parecendo uma criança. Um dos alunos mais reconhecidos do melhor conservatório de música da Europa estava fazendo um som similar a "Poin, poin", enquanto tocava o piano.

Não pude deter um riso que escapou de minha boca e a cobri imediatamente, tentando disfarçá-lo.

- No fim, você gosta dessa música, não é, Rod? - ele me perguntou, sorrindo implicantemente para mim. - Aposto que você era viciado nesse jogo. Devia pensar coisas como "O Yoshi é tão adorável"! - ele fez um falseto, em sua imitação. Um falseto que soou de maneira ainda mais cômica, devido à rouquidão de sua voz. A verdade é que estava começando a achar graça daquela situação, mas, em meu orgulho, tentei disfaçar o início de um sorriso que surgia em meus lábios.

- Eu não falo dessa forma e, não, eu não desperdiçava meu tempo com essas atividades improdutivas. - falei, cobrindo minha boca com minha mão, como se estivesse prestes a tossir. Tentei parecer ofendido, mas acho que fragmentos de uma risada escaparam durante a minha frase.

- Kesesese! Você reconheceu a música rápido demais, para alguém que se diz desinteressado por "esse tipo de atividade improdutiva", jovem mestre. - ele riu debochadamente. Eu não podia negar a coerência de seu argumento e ele sabia disso.

- ...Eu joguei algumas vezes, quando era criança demais para entender como estava desperdiçando tempo. - finalmente, admiti - Não era como se eu me importasse muito com o Yoshi..Todos achavam que ele era adorável e eu apenas...

- Você gostava mesmo do Yoshi! - ele constatou, com divertido assombro. Depois, começou a gargalhar. Era uma risada excessivamente alta e um tanto irritante. Ela não parava! Ele ria tanto que não pôde continuar a tocar o piano. Abraçava seu próprio corpo, enquanto ria com todo o seu fôlego. - O aristocrata...O aristocrata jogando "Super-Mário"...!

- Por favor, pare com isso. - pedi, constrangido e um pouco ofendido com a forma como ele ria de mim.

Ele não parou de rir. Peguei meu livro e voltei ao sofá, tentando ignorá-lo, enquanto minha face ardia como o verão. Quando finalmente parou de rir, Gilbert se levantou e se sentou ao meu lado, inclinando-se em minha direção. Achei que ele agiria de modo inapropriado novamente e me preparava para defender-me de seus ataques, quando percebi que seu único intento era o de ler a biografia comigo. 

Embora não gostasse da proximidade excessiva entre nós, considerava melhor lidar com ela, do que com o desagradável comportamento que ele teria, caso ficasse entediado. Não reclamei da pequena distância entre sua cabeça e meu ombro. Passamos a ler. Houve um silêncio novamente. Havia ocorrido vários momentos silenciosos, desde que havíamos nos sentado, ao meio-dia, para esperarmos pelo marceneiro, mas aquele era o primeiro que não era preenchido por tensão e rancor. Era um silêncio calmo e confortável que não ocorria pelo nosso desejo de ignorar a presença do outro, mas pela falta de necessidade que qualquer palavra fosse dita.

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O marceneiro chegou apenas às quatro e meia da tarde, quando eu e Gilbert já estávamos terminando o livro. Sua entrada provocou em mim um sobressalto, que me fez levantar de modo urgente, como se tivesse sido flagrado em uma atividade criminosa. Meu colega de quarto não entendeu minha reação e ergueu uma sobrancelha, em uma expressão na qual podia ser lida claramente a pergunta "O que há com ele?".

- Olá. - cumprimentei o homem que consertaria nossa porta, com um curto meneio de cabeça- Boa tarde. Muito obrigado por ter vindo. - sorri educadamente.

Ele era um homem acima do peso, com os cabelos bastante brancos e um rosto cheio dos profundos sulcos que o tempo desenhava. Sua boca tinha um toque de desdém e lembrava uma letra C deitada.

- Boa tarde. - ele respondeu, enquanto olhava para os arredores do apartamento. Estaria procurando por algo? - Eu sou Dideron. - ele disse, com certo cansaço - Trouxe a porta nova comigo e ela está no corredor. Vocês não escolheram uma, então selecionei a que achei apropriada. Gostaria de vê-la?

Concordei com ele e me dirigi ao corredor, onde uma porta de uma madeira de um reluzente tom castanho, com reflexos dourados, repousava em uma parede. Ela era excelente.

- As medidas serão compatíveis? - perguntei a ele, ainda admirando a qualidade do material. Nossa antiga porta era de um branco distorcido que lembrava as faces pálidas de um doente, além de ser velha e desgastada, portanto, era um tanto satisfatório vê-la ser substituída.

- São. - ele afirmou, com segurança - Eu já substituí várias portas, nesse lugar, senhor Roderich. Eu conheço as medidas daqui, como conheço as do corpo de minha esposa.

Fui incapaz de rir de sua piada inapropriada, mas forcei um sorriso para ser amistoso com aquele que faria um serviço tão bom e necessário.

- Confio em suas habilidades. - comentei - Quanto tempo você irá demorar?

- Cerca de duas horas. - ele disparou, sem permitir uma pausa entre a minha dúvida e sua resposta. Ele parecia ter adivinhado que eu perguntaria isso. - Um pouco mais, talvez.

- Compreendo. - respondi - Nesse caso, irei preparar uma porção para você, no jantar...

- Não é necessário. Apenas me pague, quando eu terminar meu serviço e estarei satisfeito. - ele respondeu, parecendo cansado com minhas tentativas de ser amigável. Vi que não estava lidando com um homem simpático. Em compensação, ele parecia apto a fazer um ótimo trabalho, o que era suficientemente satisfatório.

Entrei e percebi que Gilbert havia ido para seu quarto.  Uma estranha sensação de falta me tomou rapidamente, mas a ignorei, fazendo com que ela desaparecesse de forma tão abrupta quando surgiu. Se aquele tolo havia arranjado algo para se entreter, ótimo. Eu prepararia o jantar. ___________________________________________________________________________

Não sei por que meus vizinhos não reclamaram de mim. Se os berros de Gilbert eram suficientes para aborrecê-los, o barulho da porta sendo quebrada, na noite anterior, e sendo consertada, naquela noite, deveria ter provocado ira coletiva entre eles, mas, surpreendentemente, nenhum deles disse algo sobre a quantidade de barulho que fazíamos. Pelo menos, não em minha frente.

"Será que eles entenderam que reclamar com o Gilbert é mais justo e eficiente?" - perguntei-me, enquanto misturava a carne ao macarrão que preparava. Um som incômodo, similar a um zumbido, vinha da porta que era consertada.

-  Rod, você está cozinhando?! - ele berrou, em seu quarto.

"Céus. Não contribua com o barulho, seu tolo."

- Estou. - respondi, com proposital calma.

- Lembre-se de deixar uma porção para o incrível eu!

- Não farei isso. - respondi, de forma serena, mas firme, enquanto mexia a carne, o molho e o macarrão, com uma grande colher de madeira. O suave vapor que saía do prato formava manchas opacas nas lentes de meu óculos.

- Kesesese! Se você não me der, eu irei roubá-la, de qualquer modo! Você é muito ingênuo, jovem mestre! É fácil enganá-lo!

Enquanto eu me perguntava por que eu e meu colega de quarto vivíamos uma situação parecida com a de um desenho animado, o barulhento som do conserto foi cessado.

- Água. - pediu o senhor Dideron, estendendo sua mão.

Atendi apressadamente ao seu pedido, tomando cuidado para não permitir que minha macarronada fosse queimada. Enquanto ele lançava a água diretamente em sua garganta em um único e preciso gole, pude ouvir um som estranho, repetitivo e agudo vindo da janela. O que era aquilo?

A porta do quarto de Gilbert foi aberta, de repente. Antes que eu pudesse perguntar o que havia acontecido, ele se dirigiu apressadamente para a janela e abriu. O som agudo parou.

- O que você fez? - perguntei, desligando o fogo.

- Era o Gilbird. - ele respondeu, acolhendo o pequeno pássaro em sua mão direita - Ele veio novamente.

- Por que ele o visita tanto? - indaguei, enquanto depositava minha macarronada em um prato. Um dos poucos pratos limpos da casa. - Mesmo que você tenha feito algo gentil por ele, isso não justifica tanta devoção. Ele é um animal. Não pode ser grato até hoje por algo que ocorreu há tanto tempo.

-  Ele me visita, pois reconhece o quanto eu sou incrível e...!

- Não, eu duvido que seja isso. - repliquei, enquanto silenciosamente percebia, com desgosto, que havia preparado comida em excesso. Eu detestava desperdícios.

- É claro que é isso. Foi tão incrível da minha parte, salvar uma ave indefesa, enquanto qualquer pessoa teria o menosprezado! O Gilbird reconhece isso! - ele respondeu, sorrindo com arrogância, enquanto fazia carinho na cabeça do pássaro - Esse é o motivo principal pelo qual ele acompanha o incrível eu, mas também há outros fatores, claro.

- Outros fatores? - repeti, com minha curiosidade sendo atiçada.

- Comida e carinho. - ele disse, e foi realmente estranho ouvi-lo falar algo tão adorável - Como o Gilibird sempre os recebe, ele depende de mim. Por depender de mim, ele sempre me segue. Animais são simples assim. Se você não os trata bem, eles são agressivos ou fogem, mas se você atender às necessidades deles, eles se dedicam incondicionalmente a você.

-...

As palavras de Gilbert ressoaram no âmago de minha consciência. "Carinho e comida". "Não tratar bem", "agressividade", "fuga". "Atender necessidades", "dedicação incondicional". O que ele havia me dito, soara como uma fórmula para mim. Minha impressão podia ser errônea.  Eu podia estar sendo muito simplista quanto a forma quanto encarava nosso relacionamento. Mesmo assim...

- Gilbert, você quer macarronada?

...Eu sentia que a acalentadora luz de uma resposta, finalmente, havia me envolvido.

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Continua...


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Notas finais do capítulo

Quando estava escrevendo esse capítulo, em que o Gilbird aparece, um passarinho com a asa quebrada apareceu em meu jardim e eu o resgatei. Foi uma incrível coincidência e eu decidi chamá-lo de Gilbird. Infelizmente, ele aguentou apenas um dia e morreu. Kyan. A realidade é cruel.-__-
O próximo capítulo sairá BEM rápido. "Quando diabos o Gilbert treina?", "Por que o professor o considera aplicado?" e "Por que os vizinhos não estão mais reclamando?" serão respondidos nos próximos capítulos! Paciência!^_^
Por favor, continuem a fazer comentários! Eles são um grande estimulo!^^