Anne Bergerac: As Portas Da Contradição escrita por Ana Barbieri


Capítulo 6
Capítulo 6




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Capítulo 6

 Iríamos realmente à ópera. Não são raros os momentos em que Holmes deixa a mim e ao Watson sozinhos em casa, enquanto dá um de seus passeios. Seria a primeira vez que eu sairia de casa para um evento social. Ansiosa para assistir ao espetáculo e ao mesmo tempo receosa por certa pessoa estar lá para me desconcertar. Vesti meu vestido azulado, escuro é claro, já que não acho que um tom claro seria apropriado para noite. Tentei, mesmo, prender meu cabelo, contudo ele se recusava a ficar preso e o máximo que consegui foi enfeitá-lo com uma fita da cor do vestido. Bonito, eu acho.

      Chegando ao pé da escada, posso ver Holmes e Watson de pé conversando animadamente. Se estiverem comentando algo sobre o caso sem mim, ficarei muito zangada. Ao me ver, Watson soltou um sorriso de aprovação. Sorri de volta, em sinal de agradecimento e me virei para observar a expressão de Holmes. Não deveria ter feito, pois ao encontrar o olhar dele, vi que me observava de cima a baixo. Parou ao olhar-me diretamente nos olhos e sorriu.

       _ O que foi? Há alguma coisa errada com o meu vestido? – ele soltou uma risadinha ligeira e continuou sorrindo para mim, sem desviar o olhar.

       _ Não. Você está muito bem.

       _ Muito bem?! Holmes, até você pode dizer que Anne está encantadora e especialmente bonita. Pelo amor de Deus.

       _ Eu não ligo Watson. Sabe, ele tem tantas poucas oportunidades de me elogiar, que irei considerar este, o maior elogio que Sherlock Holmes já me fez. – ele ainda olhava para mim. Como se estivesse surpreso por eu conseguir aparentar ser uma dama. É isso que dá, me ver usando avental todos os dias. Porém, devo admitir que já esteja ficando desconcertante. – Vamos?

       _ Claro, só estamos esperando o cabriolé. Devia estar aqui há cinco minutos.

       _ Enquanto não chega, eu vou até o meu quarto pegar uma coisa. Só um minuto. – disse Holmes, saindo escada acima. Aproveitando a oportunidade, não perderia a chance de saber o que eles estavam conversando.

       _ John, o que você e Holmes estavam conversando?

       _ Você não perde nada mesmo não é? – acenei que não e ele continuou. – Bem, ele me contou sobre as suspeitas de que um dos amantes da senhorita Gautier possa ter feito isso. Mas é claro, que isso já era óbvio. O que explica o grito e o sangue no quarto. Holmes também afirma que os cortes foram feitos por algo mais profundo do que uma mera faca, talvez, alguma arma que estivesse fora do quarto, levada com ele após cometer o delito.

       _ E ele não suspeita de ninguém?

       _ Ainda não. A ideia de ir até o teatro foi para procurar algum suspeito. – eu ri alto.

       _ Procurar suspeitos em um teatro? Ele está ficando maluco? Como fará isso?

       _ Também não sei, mas, não se deve subestimá-lo. Você sabe.

       _ Sei... Mais alguma coisa?

       _ Ah... Sim, quase me esqueci. Ele também disse que sentiu cheiro de algum tipo de erva na boca da senhorita Gautier. Me pareceu ser algum tipo de erva medicinal, uma droga tomada em excesso, mas para fins medicinais. Tudo indica que aquela mulher estava com algum tipo de doença antes de morrer. – aquilo colocou meu cérebro para funcionar. Estava a mil. Doença? É certo que isso é comum entre mulheres dessa profissão. Mas, como teria pegado tal doença? Qual seria? Embora seja sensato averiguar isso, só penso em uma única solução. O suposto amante que a matou, a contaminou com aquela doença.

       _ Pronto. Vejo que colocou nossa amiga a par da situação Watson.

       _ Como?...

       _ Vi sua expressão antes de entrar Bergerac. Expressão que já vi várias vezes. Estava pensando... Sobre o caso.

       _ Certo, e preciso dizer-lhe algo que me veio à cabeça.

       _ Depois Anne, nosso coche acaba de chegar. – informou Watson, abrindo a porta. Saí, contra a minha vontade, de braços dados com Holmes. Duas vezes no mesmo dia... Aí já é demais.

       O teatro está lotado. Parece que toda a elite de Londres veio assistir a Don Giovanni hoje. E se eu dissesse que não estou reconhecendo ninguém, você sentiria pena de mim? Acho que não. Nem eu estou sentindo pena de mim. Por que deveria? Estou com o meu melhor amigo e claro, com o Holmes, em uma noite de devaneio cultural. Falando no nosso detetive, ele reservou lugar em um dos camarotes. A vista daqui de cima é majestosa.

        _ Excelente escolha, não acha? – ele me perguntou ao reparar a minha feição de admiração.

        _ Sim. Mas, conhecendo seu gosto pelo... “Viver do bom e do melhor”, não esperaria menos de você Sherlock.

        _ Então acha que eu estou me exibindo?

        _ Não disse isso. Se você acha que está?... O que posso fazer se não concordar.

        _ Não estou me exibindo... Ah, desisto. Não vou estragar a noite discutindo com você. Mas, me aguarde após o espetáculo Bergerac. – eu ri e dei um aceno de cabeça. Me virei para ver quem mais estava nos camarotes. Mary Morstan estava bem na nossa frente, pensei em avisar Watson, mas, ele foi mais rápido e acenou para ela, que retribuiu alegremente. Lord Stanpleton também, mesmo com uma esposa doente em casa.

        Correu tudo bem durante a peça. Foi fantástica, aliás. Não me lembro de ter gostado tanto de uma peça assim há anos. Mais engraçado foi saber que Holmes e eu sorriamos com as mesmas cenas, com os mesmos acordes. Talvez nem tão engraçado assim, já que sempre tive certo conhecimento musical. Deixamos o camarote, mas, não deixamos o teatro. Sherlock também notara a presença de Stanpleton e penso que não perderia a chance de questioná-lo quanto a isso.

         _ Lord Stanpleton! – ele nos olhou com certa surpresa, especialmente para mim.

         _ Senhor Holmes, Dr.Watson, senhorita Bergerac. Sinto muito, mas preciso deixá-los.

         _ Como está sua esposa, Lord Stanpleton? – não me contive. Ele se virou para mim, receoso quanto à pergunta.

         _ Ainda mal, senhorita. Mas teve algumas melhoras desde que receitou o elixir Dr.Watson. Gostaria que voltasse a vê-la, me parece que ela gostou do senhor. O que me deixa surpreso, pois ela não aprovou nenhum dos velhos médicos da família.

         _ Mas claro. Irei com prazer.

         _ Ótimo. Bem, agora vou indo. Senhores, senhora. – saiu. Como eu odeio aquele homem. Sempre anda como se tivesse algo a esconder, talvez até tenha.

         _ Antes de irmos, eu gostaria de...

         _ Pode ir falar com a senhorita Morstan, Watson. O esperaremos. – eu sorri encorajando-o, não era sempre que Holmes demonstrava tamanha generosidade com os sentimentos de Watson. E assim, fiquei sozinha com Holmes. Seria uma ótima hora para jogá-lo do rio, mas estamos muito longe dele agora. – Me acompanha?

         _ Tenho escolha?

         Caminhamos em silêncio até os bastidores. Os atores estavam dentro de seus camarins, assim ninguém notou a nossa presença e embora houvesse muitos, o barulho era pouco. Chegamos até as salas de figurino e ao arsenal do teatro. Saber que havia armas no teatro me deixou fascinada e eu entrei. Milhares de pistolas, espadas, adagas, distribuídas em uma grande sala.

         _ Por que haveria armas aqui? É um teatro afinal de contas.

         _ Para peças trágicas. – caminhei até uma espada estilo francês e a segurei, soltando um suspiro de prazer. – Me esqueci com quem estava falando. – riu ele.

         _ Entalhe feito em prata. É linda. E o que quis dizer com, esqueceu com quem estava falando?

         _ Você sabe o que quero dizer.

         _ Está certo, eu sei. Mas gostaria de ouvir porque acha que uma mulher não pode apreciar uma espada.

         _ Vai querer iniciar uma discussão?

         _ Vou. – respondi empunhando a espada. Ele sorriu e retirou o casaco, fazendo sinal para receber uma espada. Atendi ao pedido. – Le garde. – começamos a duelar. Não era bem uma discussão, mas chegava perto. Tudo o que eu queria agora, era poder arrancar uma gotinha de sangue do rosto dele. – Então? Uma mulher não pode apreciar uma espada, por quê?

         _ Porque não é apropriado para uma dama. Uma mulher nasceu apenas para tratar dos serviços domésticos e se tornar a esposa perfeita. Alguma leitura razoável, de vez em quando. Pelo menos foi o que ouvi dizer.

         _ Mas não é o que você pensa. Então não me serve para nada. – tentei apunhalá-lo no rosto, mas ele me cortou. Literalmente. Lá se vai uma manga do meu vestido.

         _ Quer saber o que eu penso? Então está bem. – dizendo isso, começou a dificultar as coisas. Intensificando os movimentos. – Penso que vocês mulheres são como aranhas, que tecem teias de mentiras, não importando quem fica preso nela. Ainda penso que algumas são tão frívolas que não mereciam a capacidade de pensamento que é atribuída a um ser humano. – cortou um cacho do meu cabelo e a outra manga. – Algumas são ardilosas e usam de sua feminilidade para usar alguns homens, que desprovidos de inteligência, caem como crianças famintas por doces.

        De repente ele parou e começou a tentar atingir o meu rosto. Me esquivei o máximo que pude. Pulei em cima de uma das mesas e cortei o colete dele em dois, o que me deixou muito feliz. Desci da mesa e tive a frente do meu vestido, também cortada, revelando o meu corpete, apenas ele graças a Deus.

        _ Mas todo caso tem suas exceções, embora toda mulher tenha seu defeito, por mais maravilhosa que seja. No seu caso Anne, muito me alegra não ser uma frívola desprovida de inteligência. Ouso dizer que a tem em excesso. Também nunca mentiu seriamente a ponto de meter-se em encrenca. E o mais importante... Por mais esperta que seja nunca conseguiu enganar um homem sequer. – me encurralou. A espada baixando, enquanto me olhava nos olhos... Deixando o braço frouxo o suficiente, para ter a sua espada tomada.

        _ Tem razão. Nunca enganei ninguém. Contudo... – usei minha espada e retirei a dele de suas mãos, ficando com as duas. – Para tudo existe uma primeira vez. Não engano, mas, fazer-me de indefesa para conseguir o que quero, já é outra história. Touchée Sherlock Holmes. Você perdeu... Para uma mulher.

        _ Não... Eu perdi para Anne Bergerac.


        O dia seguinte chegou mais rápido do que eu pensei. Vesti meu vestido preto e o avental e me olhei no espelho. Me sentindo pronta para qualquer eventualidade e vestida como uma criada, ri. Assim que cheguei até a sala de jantar, o vi sentado lendo o jornal esperando pelo café da manhã. Não sei se está lendo mais um dos seus artigos que são publicados no jornal, mas, sua expressão é de total compenetração.

        _ Alguma notícia interessante? – perguntei tentando fazer com que ele olhasse para mim. Depois que o derrotei, ele evitou meu olhar o resto da noite.

        _ Nada. O diário raramente traz alguma coisa realmente interessante. – ele fechou o jornal e me fitou. – Bom dia Anne. Acho que dormiu muito bem, depois do ocorrido de ontem à noite.

        _ Dormi sim, obrigada. Já você, não tenho certeza.

        _ Não tenho do que reclamar.

        _ Não mesmo?

        _ Não. – disse tentando não rir. Continuei meu caminho até a cozinha, onde encontrei a Sra.Hudson terminando de preparar os ovos e o bacon. Corri até onde ela estava e tomei a frigideira da mão dela, fazendo o ovo dar um giro no ar como uma panqueca.

        _ Senhorita Bergerac, poderia se queimar.

        _ A dor seria mínima, se comparada com a minha irritação em ter de ouvir certas pessoas reclamarem que o ovo não estava frito dos dois lados. – ela riu e me deixou no fogão, indo preparar a bandeja.

        _ Realmente espantoso.

        _ O que é espantoso? Sherlock gostar que o ovo esteja frito dos dois lados? Não acho...

        _ Não querida. Refiro-me ao fato de que estou aqui a mais tempo do que você e não me lembro desses pequenos detalhes. Agora você, com apenas dois anos memorizou todos os gostos dele em dias. – eu ri alto e fui colocar os ovos e bacon nos pratos.

        _ Nem tão estranho. Perdoe-me Sra.Hudson, mas, a senhora já está atingindo certa idade... É natural que deixe de analisar os “pequenos detalhes”.

        _ É, talvez seja isso. – é isso. Pelo amor de Deus, o que ela acha? Que eu estou obcecada pelo Holmes e memorizo tudo a respeito dele?

        _ A senhora arrumou o lugar para o Watson a mesa? – ela acenou afirmativamente para mim.

        _ Isso você nunca me deixou esquecer. Melhor irmos logo, Sr.Holmes deve estar impaciente.

        _ Seria ótimo começar o dia com ele gritando conosco. – disse usando meu tom mais irônico e alegre. Caminhamos até a mesa e deixamos tudo pronto. E como sempre, Watson me surpreendia acordando cedo. É a ansiedade para resolver o caso, eu acho. Se sentou ao lado esquerdo de Holmes. Eu me sentei do lado direito. – Não vai nos acompanhar Sra.Hudson?

        _ Não minha querida, já tomei meu café. Vou subir para arrumar as camas. Com licença.

        Me servi e comecei a comer, educadamente, sem aparentar estar tão faminta quanto estou. Afinal, não existe nada melhor do que começar o dia bem... Alimentada. Porém, sinto falta de alguma coisa, não sei o que. Ah, claro, uma discussão matinal, mas, não me sinto disposta para discutir hoje... Engraçado. Deve ser o horário.

        _ Vai visitar Lady Stanpleton agora Watson? – perguntou Holmes. Acho que seria inapropriado Watson aparecer na mansão Stanpleton assim tão cedo, considerando o humor sinistro do dono da casa.

        _ Acho que sim. – admiro sua coragem Watson.

         _ Não acha que está muito cedo? – perguntei tentando convencê-lo a não fazê-lo.

         _ Antes agora, mais cedo, do que em uma hora menos oportuna. Não se preocupe Anne, eu vou ficar bem.

         _ Lord Stanpleton me dá arrepios. Não gosto daquela casa. Me preocupa que vá até lá tão cedo, a delegacia nem deve estar funcionando direito ainda.

         _ O que é isso Anne? Sempre pensando no pior. Eu vou ficar bem.

         _ É bom mesmo, você é o único médico em que confio.

         _ Se está pretendendo fazer uma declaração de amor Bergerac, sugiro que faça logo. – cortou Holmes impaciente. – Isso está começando a me aborrecer.

         _ Parece que hoje você está em um dos seus humores. Eu poderia provocá-lo, mas, não o farei.

         _ Prefere se fazer de inocente e indefesa? – contornou ele segurando outro riso. Não segurei o meu e quando dei por mim, estava rindo junto com ele.

         _ Acho que não sou eu que estou querendo fazer uma declaração de amor nesta mesa. – disse Watson bebendo um gole de café. Paramos subitamente e o olhamos reprovadoramente. Holmes limpou a garganta e disse olhando para mim.

         _ Estava pensando em voltar ao bordel, para procurar mais detalhes sobre o caso. Se estiver certo, penso que a arma ainda está lá. Quer vir? – desde quando você precisa pedir?

         _ Antes, gostaria de pedir um favor.

         _ O que?

         _ Primeiro, a que horas vamos até lá?

         _ Daqui à uma hora. Tempo suficiente para organizar algumas coisas.

         _ Certo. Poderia me emprestar uma camisa, um colete e uma calça? – Watson engasgou com o café e Holmes me olhou surpreso.

         _ Posso saber o fim que levarão essas roupas? – eu ri.

         _ É que... Bem... Fica difícil andar, correr, atirar, até mesmo brigar, usando um vestido. Só gostaria de poder me sentir mais a vontade, enquanto estivermos resolvendo o caso. – ele ia me fazer uma pergunta, mas o detive. – Eu farei os ajustes necessários e uma hora é mais do que necessário para isso. Por favor?

         _ Passou pela sua cabeça, que as pessoas vão comentar sobre isso?

         _ Não me importa. E se nesse seu “pessoas” estiverem inclusos o pessoal da Yard, saiba que já foram inúmeras as vezes que me viram vestida como um... Homem. – Watson engasgou outra vez, tentando segurar o que seria uma risada. Sherlock, a contra gosto, me cedeu às roupas. Impressão minha ou a cada minuto que passa, estou mudando a opinião de Sherlock Holmes sobre as mulheres?



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