Canção Do Desesperar escrita por SleepySeven


Capítulo 3
Ato III




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Em um dos poucos momentos em que agora conseguia pensar com clareza, ocorreu-lhe, com certo assombro, que já havia visto aquilo em algum lugar.

A imagem formou-se logo em sua cabeça: era um desenho. Um desenho animado. Assistira-o certa vez, havia muito tempo, numa época de Natal. Era um daqueles especiais que passavam na televisão e, como toda criança, Teru também gostava daquelas coisas.

Aquela historinha o marcara na infância, pois a tinha guardada na lembrança mesmo depois de crescido.

Era sobre um homem avarento que era visitado pelo fantasma de seu ex-sócio e pelos três espíritos do Natal — o do Natal Passado, o do Presente e o do Futuro. No final, vendo a ruína que suas atitudes o trariam, o avarento tornou-se uma nova pessoa; bondosa, generosa, de boa fé.

Invadido por uma sensação sonhadora de credulidade, pensou na época que seria incrível poder fazer algo assim. Salvar uma pessoa de si mesma. Mudar a vida de alguém.

Quando crescesse, queria ser o tipo de pessoa capaz de conseguir fazer aquilo. Queria mesmo.

Mas, vejam só, que ironia, ele se tornara o avarento!

(Ele riu amargamente e sussurrou para si mesmo que deveria ser o filho da puta do século, depois de Kira.)

Queria ele poder se reconciliar. Queria ele se tornar uma nova pessoa.

Queria ele, aliás, ouvir o som de correntes arrastando no chão pela noite ou receber a visita do encapuzado espírito do Natal Futuro. Seria menos aterrorizante do que qualquer coisa que pudesse imaginar agora. Ou melhor, menos aterrorizante do que qualquer coisa que pudesse ver agora — amedrontado, tremia num canto da cela como um animal acuado.

Diferentemente do intervalo de tempo entre a visita primeira e a segunda aparição, a terceira surgiu quase imediatamente após a segunda.

Essa não lhe falava nada, praticamente não se manifestava, e não era parecida em quase nada com as outras duas.

Era, em suma, uma cópia de Teru.

Era ele adulto e com a aparência que mantinha antes de ser preso, com o mesmo olhar, o mesmo andar e a mesma vitalidade.

Não vestia uma túnica como os outros dois o faziam, nem usava asas ou auréolas — trajava um terno, e este era de corte muito semelhante aos que o próprio Teru preferira em outros tempos.

Mas Teru não se lembrava de ter possuído nenhum que parecesse com aquele. Nenhum dos seus fora branco, nem mesmo os que guardava para ocasiões especiais.

Nem tivera um com uma estampa chamativa daquelas — o moreno prezava a discrição como poucos conseguiam.

Ledo engano. Estremeceu ao constatar que não era uma estampa, eram manchas.

Nódoas vermelhas de diferentes tonalidades espalhadas por toda a vestimenta, que um dia fora branca. Desde os oxfords até o paletó.

Era, sem dúvida, sangue, pois o cheiro desagradável que exalava e invadia o ambiente lhe era inconfundível (pensou a princípio que fosse o sangue do incidente anterior que puía seu próprio uniforme, mas aquele odor forte não vinha dele).

O ex-promotor público, entregue a seu próprio medo, esperou que seu semelhante lhe dirigisse a palavra, mas este somente postou-se numa das extremidades do cubículo (a coluna ereta, os as mãos para trás, com os dedos entrelaçados. Teru por muitas vezes adotou aquela posição, como um gesto inconsciente, durante os julgamentos dos quais participava), observando-o. Encarando-o. Diria até que nem mesmo piscava.

Durante alguns minutos de respiração ofegante e coração batendo mais forte e rápido, o Teru que tremia tentou elaborar algo para dizer ao outro, mas, quando reuniu a coragem necessária, um súbito gaguejar o impediu de completar sua frase. Tentou recomeçá-la, mas também não houve sucesso.

Ainda assim, seu reflexo nada fez, apenas continuou olhando-o com a mesma expressão impassível. Com os mesmos olhos frios que provavelmente só estavam preocupados com a merda do horário, para não acabar se atrasando para sua próxima sessão de assassinatos.

Nesse momento, algo engraçado passou-lhe pela cabeça: aquele ele de terno branco, segurando uma machadinha que ia e vinha em meio a gritos. Ia e vinha, fazendo sangue jorrar dos membros de um pobre homem que gritava. E então ele olhava o relógio em seu pulso. “Minhas desculpas; vamos ter que parar por aqui — estou atrasado para a academia.”

Então você vai fazer isso comigo também?, pensou ele, assombrado-se logo em seguida com a sombria conjetura.

O pensamento, por sinal, não lhe ajudara muito. Ele, antes já abalado, começou a tremer dos pés a cabeça.

Tentou levantar-se do chão (achava, por algum motivo, mais confortável sentar-se e dormir no chão do que na cama da cela. Tinha um infundado medo de que o amarrariam nela assim que fechasse os olhos), mas suas pernas bambeavam tanto que a tarefa se tornava impossível.

Num misto de vergonha e medo, Teru engatinhou para perto do de terno branco-avermelhado.

— D-d-diga, Mikami — disse Teru, agora mais próximo do outro —, é você que veio acabar comigo? É essa a minha p-pe-pe-pena? S-seria um favor para mim.

Nervoso, ele começou a rir do quão ridículo ele soava agora. A voz trêmula e oscilante, o suor frio molhando seu rosto. Quem diria que iria terminar assim?

Os olhos frios da figura que estava de pé o acompanharam, mas, além disso, não houve reação.

Teru sentiu suas vistas nublarem. Que bela hora para passar mal.

— Será que você é real? — murmurou numa voz fraca. — Não vai me responder, certo? Faz sentido.

Arriscou-se a tocar no tornozelo do outro, como que para ter a certeza de que era mesmo verdade. Perceber que as manchas da roupa ainda estavam frescas fez o mal-estar piorar.

“Afaste-se.”

Era uma voz baixa e controlada, mas Teru pôde ouvi-la com clareza. Notaria nela um tom imperioso, mas não teve tempo para isso: viu a mão agarrada no tornozelo ser imediatamente esmagada pelo oxford ensanguentado.

Soltou um grito abafado, tentando puxar de volta a mão que estava sendo pisada.

Aquela era a que doía, enfaixada (“e a que usava para escrever”, lembrou subitamente).

A única coisa que pôde fazer, contudo, foi continuar a gritar de dor, impotente — com a força que o Mikami de terno branco aplicava em sua mão, o outro não conseguia movê-la, por mais que tentasse.

Se saísse com ela inteira, pensou Teru, seria muita sorte.

Quando quase já não conseguia aguentar mais, a pressão sobre sua mão parou. Sentindo o corpo cair pra trás, Teru se afastou, por reflexo, daquele fantasma de branco que ainda o fitava.

Com a respiração lenta e pesada, checou se a mão esmagada ainda tinha condições de se mover. Fez uma careta retorcida. Sim, não estava quebrada, mas o estrago foi grande. Por bem ou por mal, aquilo havia feito o mal-estar passar.

Levantou os olhos. Pensou, por um instante, que o Mikami de terno branco não estaria mais lá. Mas estava. E tão impassível quanto antes. Tentou se acalmar, dizendo para si mesmo que aquele iria embora quando menos esperasse, mas não foi.

Dormia, acordava, e lá estava ele, observando-o. Às vezes o de terno branco andava de um canto para o outro, deixando pegadas vermelhas no chão, ou então começava a murmurar “Deletar” repetidas vezes, mas não fazia mais do que isso.

Chegou o ponto em que Teru perdeu o medo de seu reflexo. Certa vez, sustentou o olhar do outro por um longo período de tempo, como alguma espécie de torneio de “jogo do sério”. Parece que não lhe faria mal nenhum, desde que não chegasse perto.

Ou melhor, devia ser coisa de sua própria cabeça.

É claro, não devia ser mais que isso. A dor e tudo o mais. Iria embora, uma hora ou outra.

Iria embora.

Claro. Iria embora como um sonho ruim.

Tinha certeza.

E essa certeza lhe caiu por terra no momento em que mãos saíram do chão, tentando lhe puxar para debaixo dele.

Na certa precisavam de companhia, para não se sentirem sozinhas; de um amigo para passar a eternidade ao seu lado.

Devia saber que algo assim aconteceria quando acordou e notou que as luzes fluorescentes não estavam acesas. Estava escuro como breu, e ele quase ficou alegre, pensando que de alguma forma havia acordado em casa, seguro na cama de seu apartamento, e tudo voltaria ao normal, mas suas esperanças foram desfeitas quando ouviu o som de passos em algum lugar perto dele.

Oh, não era um sonho. Ele estava mesmo ali. Ele e sua sombra, com seus olhos castanhos (talvez vermelhos) o observando na escuridão. Quem sabe estivesse se aproximando com sua machadinha nas mãos. Ou com seu caderno assassino. Quem sabe.

Mais uma vez, sua risada ecoou pela cela. Daquela vez, o som da própria voz, agora rouca e distorcida, o fez estremecer um pouco.

Preparou-se para o pior, mas, ao contrário do que imaginou, o que vieram foram risadas. Risadinhas infantis. De onde, ele não sabia; parecia ser de longe. Provavelmente riam dele, da forma como ele se assustara com a própria voz ou passara a ter medo da própria sombra.

“Pobrezinho, não sabe que os monstros embaixo da cama não existem.”

“Ué, seus pais não lhe contaram?”

“Acho que ele nem teve pai. Ou então deve ter fugido como um raio. Duvido que sequer lembre-se de como o pai era.”

“Espero que pelo menos a mãe tenha avisado a ele sobre o que acontece com crianças travessas.”

O que acontece com crianças travessas?, quis perguntar para a escuridão, mas a resposta, porém, veio antes que pudesse questionar.

Sentiu as mãos saídas do chão agarrarem seus calcanhares e o puxarem para baixo, ao que o som das risadinhas aumentaram (tinha a impressão de quase poder sentir o hálito dos seres espectrais rindo em seus ouvidos). Por mais que tentasse se segurar em algum lugar, as mãos — agora sentia que eram dezenas — continuavam puxando-o para baixo, para baixo e para baixo.

“Não quero morrer, não quero morrer, não quero morrer” — suplicou, e não saberia dizer se em voz alta ou em pensamentos. — “Estou arrependido! Juro que estou arrependido! Seja lá o que forem, perdoem-me! Oh, malditos, perdoem-me!”

Gritou. Gritou, mais uma vez, com toda a força que ainda lhe sobrava.

E, quando deu por si, estava novamente em sua cela, com as luzes acesas, seu uniforme cinzento limpo e nenhuma de suas mãos enfaixadas.

E ele, sentado no chão, suando, tremendo e ofegando, paralisado como se estivesse em uma espécie de transe.

Só voltou a si quando sentiu uma mão passar preguiçosamente por seus cabelos, acariciando-os.

“Está tudo bem, já passou. Desculpe-me. Está acabando.”

Procurou o dono da mão e deu de cara com os olhos daquele que visitara da primeira vez. Os olhos castanhos por trás dos aros negros da armação dos óculos.

— O que...? Por que...? — tentou perguntar o Teru mais velho, o choro entrecortando suas palavras. Tinha a impressão de que estava chorando mais naqueles dias do que fizera durante a vida inteira.

O Teru Menor aproximou-se do Maior, sorrindo como quem queria consolá-lo, e envolveu-o num abraço.

Quente e gentil, teve a certeza de que aquele era o mais carinhoso que recebeu em muitos anos.

O último daqueles, lembrou-se ele por entre lágrimas, foi o de sua mãe.

Naquela ocasião, como bem se lembrava, não retribuíra. O Ódio queimava em sua alma. Não podia, nem conseguia, retribuir aquele abraço. Só poderia olhar para aquela que desmentira seus ideais com frieza e rancor, e negá-la do fundo de seu coração.

Aquela foi também a última vez que aqueles braços tão gentis, tão afáveis, tiveram a oportunidade de lhe demonstrar afeto. Na mesma semana, ela foi morta pelo maldito acidente que dera início a tudo.

Se tivesse a oportunidade, queria poder rogar por seu perdão — de joelhos, se fosse preciso —, e dizer a ela que foi ele que esteve errado desde o princípio.

O outro, ainda acariciando seus cabelos, esperou que seus soluços cessassem, para então começar:

— Desculpe-me. Foi necessário. Vamos poder descansar logo, logo. Sei como você se sente.

O Teru Adulto fechou os olhos, sentindo vir a dor de cabeça provinda do choro.

—... Quando é que vai acabar? Estou cansado disso tudo — suspirou o mais velho.

— Acabará assim que estiver preparado. — A Criança Teru o mirou com curiosidade.

— Acho que estou.

O Teru Menor novamente olhou-o, dessa vez com o mesmo sorriso triste do primeiro dia que o encontrara.

— Vai passar assim que você menos esperar. — Abraçou o Maior com mais força. — Feche os olhos.

O mais alto também o abraçou. Não entendeu, porém, o que queria dizer com “fechar os olhos”.

Sentiu o abraço ficar mais apertado ainda e, talvez fosse impressão sua, mais quente. Mas não era só impressão. Estava de fato mais quente, e agora parecia estar queimando-o. Queimando-o, podia sentir sua pele arder. Ardia e queimava, que diabo era aquilo?

Tentou desesperadamente soltá-lo, mas não conseguia — o garoto derretia em seus braços. Derretia e tornava-se algo pegajoso, os cabelos negros se misturando com o branco da túnica e o rosado da pele. Tornava-se uma mistura nojenta que fazia o Teru Adulto querer gritar novamente, mas não podia; não podia porque estava derretendo também, juntando-se ao garoto que jazia espalhado no chão.

Que diabo era aquilo? Mas que diabo era aquilo?!

Via a si próprio desintegrar, camada por camada, pedaços por pedaço, músculos e nervos, tudo se desprendendo e caindo diante de seus olhos, derretendo.

E derreteu, até que não sobrasse mais nada.

xxxxx

Se perguntassem a ele, o carcereiro do turno da noite não saberia explicar muito bem o que se passou por ali.

Em cinco anos naquele lugar, vira alguns casos parecidos — aquele lugar não era exatamente o lugar adequado para aquele prisioneiro, mas aquele prisioneiro era o tipo de cara de quem queriam se livrar, e se livrar o mais rápido possível, sem que ninguém soubesse, de modo que qualquer cogitação de transferência seria veementemente negada.

(Não lhe contaram o que o sujeito fez — era confidencial —, mas imaginava que devia ter sido uma merda muito grande. De uma forma ou de outra, saber não era seu trabalho. Seu trabalho era vigiar os encarcerados uma ou duas vezes por noite, um relatório, e nada mais.)

O engraçado é que, nos primeiros dias, aquele não parecia ser do tipo que precisava de uma transferência. Passou os primeiros dias parado, quieto, num estado que ele julgava ser até de catatonia, mas aquilo não lhe surpreendia muito, cada um tinha seu tipo de reação nos primeiros dias.

No terceiro dia, começou a agir normalmente. Parecia até ser um cara comum.

No quarto dia, porém, teve uma crise que o manteve amarrado até o seu sétimo dia. Parecia realmente transtornado — ah, sim, devia ter sido mesmo uma cagada colossal.

No sétimo dia, acalmou-se o suficiente para ser liberado das amarras. Falava sozinho, às vezes gritando, às vezes falando baixo como se contasse um segredo, mas estava bem mais calmo do que antes.

No décimo dia, simplesmente parou. Parou, e veio logo um aviso da sala de vigilância para que fosse lá dar uma checada. Chamou o guarda assistente e foi lá ver o que havia de errado.

Quando entrou, encontrou o prisioneiro — Teru Mikami, ou algo parecido — sentado num dos cantos da cela. Chamou-o e, sem obter uma resposta, chacoalhou-o. Chacoalhou-o até que caiu para um lado, imóvel. Achou que os olhos fechados sugerissem uma espécie de sono bêbado, daqueles que não acordam por nada, mas o efeito dos calmantes já deveria ter passado há muito tempo, na certa.

Aquele homem estava mesmo morto. E o que lhe dava nos nervos é que não parecia haver motivos para a morte repentina: simples e puramente caiu duro, de uma hora para a outra.

Mas questionar não era o seu trabalho. Seu trabalho era vigiar os encarcerados uma ou duas vezes por noite, um relatório, e nada mais.

Talvez agora comunicar que haveria uma cela vaga para a manhã seguinte, mas não mais do que isso.


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Notas finais do capítulo

Acho que essa é a primeira fanfic que termino, sem contar com one-shots. Que felicidade! (Se bem que plano original era para que essa aqui fosse uma one-shot, então...)
O "desenho" referido no início do capítulo é a adaptação do conto "A Christmas Carol", de Charles Dickens. As adaptações pra animação ficaram bem conhecidas, e acho até que tem um filme bem recente com o Jim Carrey.
Fiquei com um pouco de pena do Mikami pelo final, deu até um aperto no coração na hora de digitar (coração mole dos infernos(?)), mas gostei muito de ter escrito a fanfic.
O que acha de deixar um review? A Seven curte trocar ideias com gente nova, e seria bem feliz para ela saber que mais alguém leu.
Enfim, obrigada aos que acompanharam, espero que tenham gostado ^^



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