Canção Do Desesperar escrita por SleepySeven


Capítulo 2
Ato II




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Teru sentiu o próprio corpo escorregar contra a parede fria de sua nova morada, vendo com o canto dos olhos o brilho vermelho de uma das duas câmeras mover-se em sua direção.

Zzzz. Era assim: brilhavam e zumbiam (ou ao menos tinha a impressão de que zumbiam) toda vez que notassem algum movimento, e então se apagavam mais uma vez.

Zzzz. Estremecia toda vez que ouvia um deles.

Estar consciente tornara-se para ele uma tortura pior que a morte — o sono profundo e sem sonhos no qual estava absorto antes lhe parecia uma opção encantadora e irrecusável.

Somente o fato de pensar que não sairia daquele lugar por sabe lá quanto tempo conseguia fazer o estômago Teru revirar, nauseado: os poucos dias de cárcere conseguiram fazer com que se esquecesse quase por completo de como era ser livre.

Não que um dia houvesse realmente parado para pensar no que a liberdade era, e talvez nunca tivesse sido livre de fato — seus afazeres o impediam —, mas, céus!, daria tudo por um gole do café que sempre tomava durante o horário de almoço dos dias de trabalho.

Fazia agora dois dias após a interrupção das doses do tranquilizante que lhe estava sendo injetado, mas o torpor ainda parecia afetá-lo com tanta intensidade quanto antes.

Tudo o que sobrara daquele que um dia fora ele era uma face cansada e de certo modo envelhecida (se houvesse um espelho em que pudesse se olhar, veria que a barba falha que crescia em seu rosto e que o cansaço que se instalara em seu corpo o faziam parecer uns anos mais velho do que realmente era).

Mas, mais do que tudo, o que mais incomodava Teru era a falta do que fazer.

Fora um dia um homem de horários apertados. O Senhor Mikami, o Promotor Mikami. De certo, ostentava a posição com algum orgulho, por ter conseguido chegar naquele patamar tão alto e por ter se tornado uma pessoa tão digna.

Diferentemente de Teru, aquele que hoje não conseguiria andar de cabeça erguida, e que agora via aquele mesmo tempo de antes ser dividido entre comer (quando lhe levavam as refeições), dormir e olhar para o nada.

Às vezes, quando sua inquietude se tornava grande demais, fazia um alongamento, às vezes não. Às vezes resmungava, se lamuriava, quase que sem perceber, como uma espécie de instinto.

Queria arranjar alguma forma de acabar com aquele martelar.

Era uma dor que sentia, que doía cada vez mais e mais, e que se alastrava a cada zunido das câmeras, que martelava a cada vez que se dava conta de que não havia conserto para as decisões que fizera, a cada vez que se sentia frustrado pelos minutos que se estendiam mais do que deveriam.

Chegava às vezes ao ponto de quase gritar para que alguém, por favor, fizesse aquilo parar, que se arrependia por tudo o que fez, mas a consciência que ainda lhe sobrava tinha certeza que aquilo não adiantaria de nada, o que o fazia controlar-se novamente e voltar a mergulhar em seus pensamentos.

Por outro lado, o ambiente não parecia ajudar muito a diminuir sua angústia: sua cela, como pudera observar, era de um tamanho que não era grande, mas também não era pequeno o suficiente para ser considerada desconfortável. Ainda assim, não podia deixar de sentir por ela uma certa antipatia, talvez até pavor: nos seus tempos de colégio, lugares como aqueles nunca significavam boas coisas.

Significavam, talvez, risadas de zombaria, humilhação e olhares repletos de Maldade.

A Maldade que ele combateu, que ele odiou e execrou por toda a vida.

E que o fizera lutar para findar com ela e que se voltara contra ele, o jogando-o numa cela imunda.

Aquele era um fim tragicamente irônico, pensava ele, para alguém que só quis ver a felicidade de seus semelhantes. Porque, era verdade, nada o fazia mais alegre do que ver o sorriso das pessoas que o cercavam.

Agora que podia andar livremente pela cela (mas foi-lhe dito que privilégio lhe seria retirado caso apresentasse qualquer “sinal de agitação”), no entanto, podia ao menos procurar por algo que lhe servisse para distrair.

Tentou primeiramente contar a passagem das horas, se guiando pela quantidade de vezes que lhe levavam comida, mas falhou todas as vezes e, além do mais, aquilo só fazia aumentar sua agitação.

Tentou imaginar também há quantos dias estava ali, mas a tarefa também era impossível, pois não sabia por quanto tempo esteve desacordado.

Passou então a tirar, com as unhas, lascas da parede para saber quantos dias se passaram (aparentemente, se havia alguém vigiando as câmeras, esse alguém não fez objeções: provavelmente entendia as dores do pobre homem). Teru sabia que certamente não conseguiria marcar com exatidão, mas pelo menos era um bom passatempo.

Marcou uma, duas vezes e logo se cansou. Os dias passavam devagar demais e o espírito de Teru estava demasiado inquieto para continuar com aquilo.

E, além do mais, não sabia se suas contas estavam certas. Teru odiava a incerteza, não importava qual fosse a situação.

A lembrança do menino vestido de anjo que dizia ser ele revirava em sua memória. Suas palavras lhe atormentavam.

Teru, que tantas vezes viu a morte de perto, nunca havia parado para pensar na sua própria. E não sabia dizer se a ideia lhe assustava ou não. Na verdade, não conseguia pensar em algo que lhe fizesse ter vontade de viver, mas morrer ele também não queria.

A morte e Teru andaram por toda a vida de mãos dadas. Ele nunca a temeu, sempre achou que ela viria na hora certa e para as pessoas certas.

Ele mesmo ajudou a morte. Ele ajudou a morte e a Deus. Ele decidiu quem deveria ser punido, quem deveria viver ou não.

E foram tantas as pessoas que ele já nem conseguia mais se lembrar.

Será que chegavam a duzentas?

"Talvez", pensou.

Começou a contar nos dedos o número de pessoas que se lembrava de ter vitimado (tinha exímia memória, afinal de contas), falando seus nomes em voz alta.

Perdeu as contas e recomeçou mais uma vez.

Mais uma vez, não deu certo.

Lembrou-se das marcas nas paredes e resolveu fazer outras, para que assim se tornasse mais fácil contá-las.

Uma marca, duas marca. Kira, grande filho da puta. Três marcas, quatro marcas. Ele chegou a chamá-lo de Deus. Seis marcas, sete marcas. E amou-o com todas as forças. Oito marcas, dez marcas.

Ele abriu mão de sua vida por aquela justiça.

E lutou pelo que era certo.

E agora estava rastejando.

"Deletar."

Teru parou de falar o nome dos criminosos que morreram por suas mãos e repetiu para si mesmo mais uma vez, baixinho, aquela palavra que lhe era tão conhecida.

"Deletar."

Soava meio bobo agora. Imbecil, até.

"Deletar..."

Teru sentiu as lágrimas descerem involuntariamente pelo seu rosto. Soluços também vieram. Fechou os olhos e chorou mais uma vez, num pranto copioso que durou por algum tempo (quanto tempo foi? Como poderia saber?).

Esfregou as mãos nos olhos para secar as lágrimas. As lágrimas, no entanto, não secaram. Parecia até que seu rosto ficou mais úmido quando as esfregou nele.

Abriu os olhos, vendo o que era o líquido viscoso em suas mãos.

Sangue.

Começou a desesperar-se. Eram os seus dedos sangravam.

Olhando com mais calma, reparou que foram as lascas da parede entraram em suas unhas e abriram feridas, mas estava tão entretido com suas contas que não se incomodou com a dor ou com o sangue. Continuou marcando a parede.

E a parede estava repleta de marcas; as mais recentes, sujas de vermelho.

Havia contado quatrocentas e sessenta e três. Sem dúvida havia mais pessoas, mas ele não lembrava mais do nome delas.

Quatrocentas e sessenta e quatro. Afinal, iria acabar se juntando a elas.

Sentiu o sangue manchar suas roupas. Não estancava.

Nesse momento, Teru começou a suspeitar que não houvesse ninguém vigiando as câmeras. E, se houvesse alguém, esse não devia dar a mínima importância para ele. Na verdade, deviam estar até se divertindo com sua dor.

Pressionou a mão ferida em suas roupas, o que não adiantou muito: o sangue parecia tão corrente quanto antes.

O Ódio tomou conta de Teru novamente. Fincou as unhas — ou o que restava delas — nas palmas das mãos.

Talvez, se a ferida piorasse muito, conseguiria que o tirassem dali.

(Vã esperança. No fundo, sabia que o máximo que conseguiria era ser nocauteado por mais uma aplicação de tranquilizantes.)

Estava prestes a esmorecer quando, para sua surpresa, uma mão agarrou a sua.

Um grito se formou em sua garganta, mas faltou-lhe a voz necessária para soltá-lo.

O que via era só a mão e um pedaço de braço agarrando seu pulso, como se o corpo houvesse ficado preso na outra metade da parede.

E isso não era lá muito diferente da verdade: o corpo que era dono da mão atravessou a parede, revelando a figura de um garoto.

O garoto vestido de anjo.

— Você por aqui mais uma vez. —disse Teru, mais constatando para si mesmo do que falando com o garoto, ao que tentava recolher, por impulso, a mão que estava presa na do outro.

— Hã? Mais uma vez? Não me lembro de ter te visto antes — respondeu ele, com uma expressão que era meio de surpresa, meio de dúvida.

Teru não saberia dizer se o pior era a dor que sentia ou que caçoassem dele.

Encarou o garoto, prestes a dar uma resposta mal-educada, quando percebeu que esse não era o mesmo que lhe visitara há uns dias atrás.

Esse era diferente. Era um pouco mais velho.

A auréola de arame deste estava rompida ao meio, o rosto, com marcas de hematomas, a túnica branca, rasgada e suja. As asas de pelúcia estavam também foram estragadas, o enchimento delas saía pelos buracos do pano.

O adolescente ignorou o mal-entendido e, apesar das condições de suas roupas, rasgou um pedaço da túnica e usou-o para envolver a mão ferida do Teru maior.

E, por um milagre, parou de sangrar.

— Pronto, melhor assim — disse, ao terminar seu trabalho. O tom que usava, porém, não era o de quem tentava confortar. Era um monótono, típico de quem fazia mecanicamente algo que era de obrigação. — Era você que estava chorando?

Não esperou uma resposta do Teru Adulto e logo continuou:

— Você até que é bem barulhento, hein? Até tentei vir antes, mas não consegui. — O olhar que tinha era vago, vazio, como se estivesse olhando-o sem de fato vê-lo.

O maior ia fazer uma objeção, mas o Adolescente Teru novamente tomou a frente.

— Eu sei que é meio chato ficar aqui e tudo o mais, mas, se quer acabar logo com isso, por que não tenta? Pessoas como você só dão trabalho para os outros.

Aquelas palavras eram como uma bofetada na cara do Teru mais velho, que primeiramente postou-se quieto, sentindo o peso delas, para então encher-se mais uma vez de fúria.

“Absurdo!”, protestou ele.

Havia sido desde sempre uma pessoa bastante responsável e repudiava as que não faziam por merecer, que se tornavam um fardo para a sociedade, então, de que forma dava trabalho para os outros?

— Absurdo? Eu não acho. — Nesse momento, o Teru maior teve a certeza de que, não importava quantos argumentos utilizasse, aquele garoto de expressões tão duras não iria mudar de ideia. — Absurdo é fazer-se de coitadinho e não assumir o que fez com hombridade. Absurdo é a quantidade de gente assim lá fora apodrecendo o mundo... Até mesmo na minha classe, é um absurdo. Eu tento fazer com que melhorem, mas eles raramente me escutam...

O Adulto Teru acompanhou o menor com os olhos, vendo-o agitar-se, andando de um lado para o outro, vez e outra tropeçando nos buracos de sua roupa.

— Meus cabelos. Diziam que me faziam parecer uma menina. E eles sempre puxavam. Sempre. Doía muito. Cortar faria tudo mais confortável, mas... Se eu cortasse, significaria que eles estariam certos, não é? E eles não estavam certos.

Ele parou, como se refletisse.

— Minha mãe também gostava dos meus cabelos. Ela sempre dizia que eram bonitos, mas disse também que eu deveria cortá-los mais curtos. Ela também não estava certa.

Aquela menção fez o mais alto arrepiar-se.

— Ela só quis o seu bem — gaguejou ele, ainda meio incerto sobre as palavras que deveria ter usado.

— Não. Está tudo bem agora. — Não havia nenhuma mudança perceptível na expressão do menino, mas o Adulto Teru tinha a certeza de ter visto uma fagulha de alegria acender-se nos olhos dele. — Ela não está mais aqui. E não estou mais triste por causa disso: foi como tinha de ser.

— Foi coincidência.

— Talvez você esteja certo — respondeu, sem muita hesitação. — Mas aconteceu da melhor forma possível. É comum que o castigo venha para os que não acreditam na força da bondade. Assim como vai acontecer com você.

O Teru Adulto sentiu nojo. Negou os argumentos do Adolescente Teru, sendo reprimido com palavras que exalavam um ódio crescente de seu interlocutor.

Saturado com a discussão, o maior baixou a cabeça e, sentado no chão, abraçou as pernas. Com as amarguras que tomavam sua mente agora, não tinha vontade de continuar aquela conversa.

Quando levantou novamente a vista, não encontrou mais o garoto rondando sua cela.

Sentiu um pouco de alívio pelo fato, mas, ao se deparar novamente com a falta do que fazer, quedou-se uma vez mais em desgosto.

Cogitou então, que talvez, se dispusesse dos meios necessários, fosse mesmo melhor dar um ponto final naquilo tudo o quanto antes.

Mas, como não havia saída, teria de aguentar o martelar por mais quanto tempo tivesse de ser, mesmo que não quisesse.


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Notas finais do capítulo

Bem, olá e obrigada por todos que estiverem acompanhando, de coração. Até que estou me divertindo escrevendo essa fic. A propósito, o próximo capítulo é o último.
E, se acham que essa que vos escreve merece, deixem um review: não custa nada e faz a felicidade de uma humilde escritora. Até a próxima o/



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