Undead Revolution escrita por caarol


Capítulo 22
Mãos de Sangue - Parte I


Notas iniciais do capítulo

Fiquei particularmente feliz com o andamento deste capítulo, apesar de ter saído mais comprido do que eu pretendia.
Enfim, espero que gostem, e boa leitura!



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Localização: Interestadual 80 - Residência da família Cross

10 dias após o Surto.



Red apertou os olhos. Pontos brilhantes dançaram à frente de sua vista e marteladas latejantes ecoavam das têmporas até sua nuca. Sentiu os músculos de todo o seu corpo atordoados, sua mão formigando com o peso da arma de fogo que carregava e o cano frio da espingarda roçando levemente em sua panturrilha, como se tentando acordar a garota de seu transe atormentado.

Voltou a abrir os olhos vagarosamente. Uma rápida olhadela por baixo do fio marejado que se formava em seus olhos úmidos relanceou às pernas brancas e inertes de Spencer Cross - e ao curativo que ali acomodava o fruto de um possível desastre. As manchas vermelhas de sangue, provavelmente frescas, encharcavam as bandagens.

Baixou o olhar para os frascos e remédios na mesa de cabeceira e para as ampolas repousando ao pé da cama de Spencer. Algo de muito errado estava acontecendo, algo desencadeado pelos donos daquela casa... algo que resultara numa consequência terrível.

Pensamentos conflitantes voltaram a inundar a mente de Red. Teria a menina injetado aquela dosagem absurda de tranquilizantes nela mesma e misturado com todos aqueles remédios fortes? Sua intenção era provocar a própria overdose? Ou sua mãe e seu avô estavam envolvidos? Savannah mataria sua própria filha?

E o que o cachorro tinha de envolvimento nisso tudo?

Red fitou o curativo novamente. Tentou relacionar o machucado ao cão quase-zumbi da cabana dos Cross, mas achou a possibilidade relativamente absurda – a mãe manteria sob cuidados o animal que quase arrancara metade da coxa da própria filha? Não, provavelmente não fora o cachorro que mordera a menina. Porém, caso tivesse sido ele, isso só poderia significar uma coisa...

Estouros característicos libertaram a ruiva de sua tempestade de ideias. Eram tiros, tiros vindos lá de fora da casa.

Eles haviam finalmente chegado.

Com um movimento rápido, empunhou a espingarda com força e correu em direção à saída do quarto. Estancou bruscamente na soleira da porta para lançar uma última olhada à Spencer, morta na cama. Novos disparos. Com um chacoalhar de cabeça simplesmente deixou os aposentos da menina, e aproveitou a deixa de que não avistara nenhum morto-vivo pela janela para descer rapidamente para o primeiro andar - Road precisava saber o que havia acabado de acontecer antes da situação lá fora piorar.

Esquecendo-se completamente de Germany e Sam, que estavam a poucos metros dali no quarto virado para o outro lado do casarão, Red desceu as escadas aos tropeços e com as sobrancelhas arqueadas em aflição.





Sam virou a cabeça para trás, fitando a porta fechada do quarto onde estavam. Passos pesados no corredor e ruídos de alguém descendo para o andar de baixo chamaram sua atenção.

– Ger, ouviu isso?

Germany, ajoelhada no piso frio, os cotovelos apoiados no batente da janela aberta e com a espingarda posicionada para fora, virou sutilmente a cabeça para o lado onde o menino estava, numa tentativa de ouvir seus sussurros. Suas mãos seguravam a arma de fogo com determinação, deixando os nós de seus dedos esbranquiçados e pequenas gotas de suor brotarem de sua testa. Pôde avistar alguns dos mortos se aproximando muito ao longe, mas poucos deles já estavam próximos o suficiente para Javier tomar a dianteira de alguns metros e já abrir fogo.

– Agora não, Sam. – Murmurou ela, concentrada ora em Hollywood, que dava passos lentos em direção ao latino, ora aos zumbis que caiam inertes no chão.

– Eu acho que eu ouvi a Red! – Continuou o garoto, ainda fitando o corredor.

– Então vá lá ver se ela tá bem.

Com um rápido aceno de cabeça, o menino se levantou às pressas, assustado pelos disparos de Mirrez, e saiu do quarto onde Germany se encontrava, fechando sua porta. Atravessou o pequeno corredor e correu em direção ao aposento onde a ruiva havia se instalado anteriormente.

Entrou de supetão num cômodo que estava com a porta praticamente escancarada. As cores em tons pastéis das paredes e da decoração, com predomínio do lilás e do rosa, serviram para o menino compreender que aquele quarto era o da filha dos donos da casa. Vasculhou o dormitório rapidamente com os olhos, mas não viu a ruiva ali dentro. Então realmente era ela quem ele ouvira descer as escadas.

Fitou por alguns instantes uma infinidade de estranhas caixinhas e frascos com pílulas grandes e coloridas no pequeno móvel de cabeceira, e deteve seu olhar também para a cama, no canto direito do quarto - onde Spencer estava deitada de lado virada para ele, com as costas para a parede e os braços jazendo inertes à frente de seu corpo. Ela estava com a perna esquerda sobre a direita, com pouco à mostra das faixas brancas enroladas na altura do joelho da perna que estava por baixo. Ela não parecia exatamente em uma posição confortável.

O menino desviou os olhos por alguns segundos, acanhado e com receio de tê-la acordado. Percebendo que Spencer continuava estática na cama, e vendo que a ruiva realmente não estava ali, engoliu em seco e começou a sair a passos lentos do quarto, de costas, ainda fitando a menina. Pôde ver por um rápido relance os dedos dela se contraindo involuntariamente antes de passar pelo batente da porta.





Red se dirigiu apressadamente em direção à porta de saída da pousada, lançando olhares receosos por sob o ombro. Temia chegar num momento inoportuno para conversar com seu irmão, que provavelmente a fuzilaria com os olhos se atrapalhasse sua empreitada contra os zumbis.

Pouco antes de chegar à soleira da entrada, voltou os olhos para frente e sobressaltou-se com um quase encontrão com Savannah Cross. A loira também andava a passos rápidos, porém na direção contrária à ruiva. As duas se entreolharam por longos segundos.

Red arqueou as sobrancelhas logo depois e continuou seu caminho para fora da casa sem dirigir nenhuma palavra à loira – o nó na garganta formado pela imagem de Spencer desfalecida ainda impedindo-a de verbalizar qualquer aviso sobre a perda da mulher. Savannah a acompanhou com os olhos até perdê-la de vista, juntando as sobrancelhas em desconfiança.

Ao pisar na varanda da casa, um novo disparo assustou a garota. Virando bruscamente para a direita, pôde ver Hollywood correndo em direção a Javier, que já havia tomado uma boa dianteira e já começava a disparar contra alguns zumbis esparsos que se aproximavam primeiro. Frank passou coxeando pela varanda em direção aos outros dois, rogando pragas aos ventos.

A ruiva desceu os poucos degraus num só pulo e vasculhou rapidamente o descampado com os olhos. À sua esquerda, pôde ver Molotov metros mais à frente, observando algo com o binóculo, e Road já com a espingarda à altura do peito, confuso se olhava para o horizonte de onde vinham os zumbis ou se acompanhava o moreno na esquadrinha do outro lado.

– Road! – Chamou Red, com um grito estridente. O velho Cross inclusive parou por alguns instantes para olhá-la, assustado. – Road, vem aqui, agora! É urgente!

O rapaz levantou uma sobrancelha, ressabiado; mas, percebendo a apreensão da irmã, conversou algo com Molotov e depois correu em direção a ela.

– O que foi, Red?! – Ele estancou ofegante à frente da menina. – Você tá ligada que agora não é uma boa hora pra conversar, né?

– Você precisa vir comigo, agora! Aproveita que ainda não tem muitos zumbis aqui!

– Mas o quê...? Você quer que eu saia daqui? Eles vão infestar esse lugar em questão de minutos, droga!

– Road, por favor!

A súplica nas palavras da garota fez o ruivo hesitar por alguns instantes. Ele, então, suspirou e franziu o cenho, concordando em ouvir o que quer que ela tivesse para falar.

– Vem aqui pra dentro, rápido! – Chamou ela, pegando-o por um dos antebraços e arrastando-o para dentro da casa.

– Ei, onde pensam que estão indo?! – Sibilou Frank, observando os dois irmãos deixando a varanda.

Com um franzir de cenho e um trincar colérico de dentes, o velho seguiu-os até a varanda. “Se esses fedelhos idiotas acham que vão se esconder logo agora, estão muito enganados!” Lançou uma rápida olhada para Hollywood e Javier, vendo que os dois estavam apenas observando a pouca quantidade de mortos-vivos que se aproximava lentamente; os vários pontos escuros, que formavam uma fileira ambulante ao longínquo horizonte, que realmente o preocupavam, mas, se continuassem àquele passo, ainda demorariam alguns minutos para chegar ao seu território.

Virou os olhos para o outro lado da casa e viu que Savannah também não estava mais lá fora. Deviam estar todos dentro do casarão. “Eles só podem estar de brincadeira comigo!”

Permaneceu rondando os arredores por vários minutos, na esperança de todos voltarem lá para fora, mas não viu sinal de nenhum dos três. Com um bufar, o velho subiu a passos fortes os degraus da varanda, decidido a trazer os três de volta para o quintal para acabarem com aquela horda zumbi de uma vez.





Hollywood engoliu em seco. A meia dúzia de zumbis que se aproximara primeiro – e que ele não fazia ideia do porque haviam resolvido tomar a dianteira – já fora rapidamente dizimada pela potente mira do latino Javier Mirrez; mas aquilo não era nada perto da quantidade deles que se aproximava lentamente ao longe. Não estava com o binóculo de Molotov à mão, mas tinha certeza de que eram muitos. Dezenas deles.

Alguns daqueles que já haviam levado os tiros estrebuchavam sutilmente no chão. Uma mulher de meia idade, um adolescente, três homens e uma criança. Javier atirara na cabeça de todos com tamanha precisão que o loiro ficou impressionado. Aparentemente toda a mágoa que acometia o homem havia sido transformada na frieza e entusiasmo absurdos que adquirira a poucos minutos, resultando numa máquina de disparar tiros em zumbis. Diferente do que todos da casa imaginavam, o latino visivelmente seria mais do que útil naquela situação.

Ver o homem reagindo de forma tão violenta, e ao mesmo tempo tão determinada, o pegou de surpresa. Hollywood inclusive sentiu, de certa forma, inveja à maneira como Mirrez avançada gradativamente sobre a horda de mortos-vivos, com a coragem e a audácia que o loiro sabia que não tinha. Nos poucos minutos que presenciou a morte dos zumbis pelas balas da arma do vizinho de Cross, vasculhou em sua mente se seria capaz de prostrar-se ao lado dele e fazer o mesmo com igual intrepidez, ou até sair correndo a seu lado e infiltrar-se nos montantes de carne ambulante para pô-los todos a baixo de uma vez.

Mas então percebeu o quão estúpida e imprudente essa ideia lhe pareceu, e pôde ver o quanto Javier já se afastara de onde estava exatamente para fazer isso.

– Javier, espere! – Chamou o loiro, recendo um olhar enraivecido do homem por sob o ombro graúdo.

Correu em sua direção, pensando em mil e umas explicações que teria de dar aos Cross caso vissem seu vizinho partindo sozinho e desvairadamente para atacar os mortos-vivos.

– Javier, vamos esperar aqui! É mais seguro e qualquer coisa a gente corre pra dentro da casa!

O rapaz apontou o casarão com a cabeça. O latino parou para olhá-lo, esforçando-se para entender as palavras ditas com rapidez em sua segunda língua.

Hollywood sustentou seu olhar por alguns instantes, ofegante. O homem voltou a fitar um dos zumbis que jazia próximo a seus pés, um dos homens, com o corpo contorcido, os olhos injetados arregalados e uma poça de sangue enegrecido encharcando seus cabelos. O loiro também baixou os olhos para o morto e vacilou instintivamente, fazendo uma careta devido ao mau cheiro e à visão da figura deitada.

Cómo puede...

O mais jovem voltou a olhar o outro.

– Como... pode una persona se tornar isso? – Continuou Javier, ainda analisando o corpo. – Será que somos tan mals... Tan ruins para merecer algo como isso? Para terminar dessa manera?

O rapaz estreitou os olhos e franziu o cenho, não sabendo o que responder para o homem.

– Será que mi família foi una família tan horrible para acabar así?

Um soluço involuntário escapou dos lábios grossos. O loiro crispou os seus próprios, partilhando da pena que transbordava dos olhos amendoados à sua frente. A muralha corpulenta e massacrante de Javier Mirrez ruíra-se novamente por aqueles breves instantes; o homem parecia perdido no meio de um furacão de angústias e sentimentos destoantes, numa inconstância pungente que fez Hollywood sentir um nó no peito.

– ...Tan horrible a ponto de eu ter que acabar con ella con minhas propias manos? – Ele fechou um dos punhos com força, os olhos fixados no corpo ensanguentado que jazia a seus pés. – E estes que estan vindo... Tambien tinham familias, familias buenas... Deviam ser personas buenas... Qué le esta pasando al mundo? Qué tipo de provação é esta, que debo olhar mi familia vir a mi para nada más do que me hacer mal? Qué mundo é esse qué debemos meter balas en nuestros propios hijos?

Hollywood franziu o cenho. Algumas palavras em espanhol lhe escapavam o significado, mas conseguira entender o contexto em que Javier verbalizava seu âmago angustiado. A família dele estava vindo, lá do horizonte, cambaleando junto a tantas outras pessoas cobertas de poeira e sangue, com os dentes sujos de carne e a alma negra e vazia como a noite que se aproximava. Tudo aquilo devia estar sendo mais do que difícil para o homem, e o rapaz sabia que as coisas só tenderiam a piorar no momento em que colocasse os olhos em sua esposa e seus filhos mortos-vivos.

Chegou a pensar por um momento se não seria melhor se ele próprio não acabasse com o sofrimento do latino, o impedindo da visão da família pondo ele um fim às suas semi-vidas; mas teve o pensamento interrompido por um novo disparo da espingarda do outro. Mirrez atirara contra um homem barbudo que se arrastava a vários metros à frente, numa distância suficientemente grande para não ser acertado pela bala - mas Javier pareceu não se importar, tanto que levantara a arma para desferir um novo tiro. Sua máscara impassível de rugas profundas e olhos determinados voltou lentamente a recompor seu semblante, mas não sem antes deixar uma lágrima solitária contornar seu rosto graúdo. Hollywood sentiu pena pelo homem, uma compaixão casta por ele, por todos, inclusive pelos Cross – e medo também. Medo daquela ser a última vez em que se veriam vivos.

Ele e seus amigos não estariam sozinhos como no acontecimento do mercado 7-Eleven, no qual quase foram dizimados pela infindável massa de mortos-vivos que se abateram sobre eles, mas ele temia pelo pior. Temia como provavelmente todos os outros também temiam. Adquirira o mínimo de experiência com os encontros que teve anteriormente com os zumbis, mas sabia que nunca seria o suficiente para não se deixar sentir alguns tremores de pânico e aflição percorrerem seu corpo. Era uma situação na qual sabia que nunca se acostumaria.

O loiro suspirou, cerrou as pálpebras por alguns instantes, e logo abriu os olhos, franzindo o cenho. Estava apavorado, mas igualmente determinado a ajudar o quanto pudesse, mesmo não conseguindo manter-se num patamar tão confiante e algoz como o do homem a seu lado.

Outro tiro, disparado com um estalido sibilante. O zumbi barbudo, agora alguns metros mais próximo, soltou um grunhido gutural, como se afogando no próprio sangue preso à sua garganta, e caiu no solo úmido com um baque. Hollywood analisou a cena com certo espanto e virou a cabeça para o lado, logo vendo dois olhos amendoados o fitando profundamente – “me acompanhe”, eles diziam, “não quero passar por isto sozinho”.




Red Rock e Road Runner entraram a passos rápidos no salão principal da casa, e encontraram Savannah Cross saindo da cozinha com uma bandeja prateada em mãos, com copos de suco e dois pratos com pães e confeitos em cima, e prestes a subir as escadas para o segundo andar.

– Savannah? – O voz do ruivo sobressaltou a mulher, quase a fazendo derrubar a bandeja.

– Vocês? Mas o quê... – sua voz falhou por alguns instantes, até ela se recompor, empertigando-se e levantando uma das sobrancelhas. – Porque estão aqui dentro? Não deveriam estar lá fora, fazendo o serviço de vocês?

– Como se não fosse seu também. – Road cruzou os braços, impaciente. Sustentava o olhar ferino da mulher com igual hostilidade. – Ou pensa que nós que vamos sujar nossas mãos enquanto você fica sentada bonitinha no sofá, esperando a horda passar?

– Road... – Red chamou o irmão, num sussurro.

– Não sou esse tipo de pessoa, que foge a essa altura do campeonato! – Savannah fechou ainda mais o aperto das mãos nas alças da bandeja. – Agora vocês, pelo visto, são daqueles que gostam de deixar a parte complicada pros outros. Já era de se imaginar isso de vocês.

As palavras cuspidas com escárnio fizeram o rapaz cerrar os dentes e avançar alguns passos em direção da mulher.

– Não é nada disso, madame. – Respondeu Road, sentindo a irmã agarrar-lhe o antebraço com os dedos trêmulos.

– Então porque estão aqui?

– Não é da sua conta.

– Ah, sim. – A loira soltou uma risada forçada. – Façam-me o favor e voltem lá pra fora, sim? Agora, se estão com medinho, não se preocupem que eu já estou indo pra lá salvar a fuça de vocês.

– Ela tá me zoando, não é possível. – Road disse para a irmã, com incredulidade na voz.

– Savannah, porque você está aqui? – Perguntou a garota, ignorando o ruivo.

A mulher franziu o cenho e suspirou. Caminhou lentamente em direção aos sofás dispostos no meio do salão e depositou a bandeja na mesinha de centro.

– Não temos tempo para conversa fiada – começou a mulher, virando-se para olhar os mais jovens – mas já que insistem tanto, posso perder mais alguns segundos preciosos com vocês. – Ela abriu um sorriso amarelo, mas não foi acompanhada no gesto pelos outros dois. – Estava indo levar algo para minha filha comer, se isso não for muito incômodo para vocês.

– Comer? Sério, isso?! – Road rosnou, colérico. O aumento em seu tom de voz e a sutil erguida da espingarda nas mãos do rapaz claramente pegaram Savannah de surpresa, pelos passos que afastara involuntariamente. – Estamos a poucos minutos de dúzias daquelas coisas e você vai levar lanchinho da tarde pra filhinha? Ah, me poupe né, sua filha da...

– Road! – Exaltou-se Red. – Baixa a arm-

– Como ousa falar comigo assim, seu pirralho desgraçado! – A filha de Cross voltou a se aproximar dos irmãos, fechando os punhos com fúria. – Eu faço o que eu bem entender, queiram vocês ou não!

– Ah, mas nós sabemos que vocês fazem o que bem entendem. – Road soltou uma gargalhada de menosprezo.

– O que quer dizer com isso?

– O que vocês andam escondendo da gente, hein, Savannah? – O ruivo deu alguns passos para frente, ficando a poucos centímetros de distância da mulher. – Qual o segredinho sujo que vocês vem escondendo de nós?

– Não... sei do que você tá falando. – Titubeou a loira, desviando rapidamente o olhar do fitar resoluto do rapaz.

Red apenas o encarava com angústia, constantemente procurando intervir, mas sempre sendo interrompida por um dos outros dois.

– Ah, se sabe. E se quiser, nós mesmos podemos refrescar sua mente sobre o que vocês andam aprontando pelas nossas costas.

– Ora, vocês...

– Red?

A voz infante de Sam calou Savannah e Road de imediato. Os dois e Red levantaram os olhos assustados para o menino, que estava ainda no segundo andar, com os pés prontos para descer o primeiro degrau.

– Sam! – Chamou a garota, largando do braço do irmão e dando alguns passos para frente.

– Ele também tá lá em cima? – Murmurou Savannah.

– Sam, desce aqui, agora! – Exaltou a ruiva.

– Red, o que aconteceu? – Road se virou para a irmã. – O que que tem lá em cima?

– O que vocês andaram xeretando lá?! – A loira deu um passo para trás, e voltou a fitar o menino.

– Sam, vem!

– Red! - Chamou o rapaz.

Savannah ainda balbuciava palavras estridentes às costas do ruivo e Red continuava chamando o menino para ir lá embaixo. Sam arqueou as sobrancelhas, confuso com a cena – eles deveriam estar lá fora, cuidando dos zumbis que estavam chegando, e não todos reunidos ali, dentro da casa.

Decidiu, enfim, obedecer a ruiva e descer para o primeiro andar.

Um ruído atrás de si, no entanto, o impediu de continuar.

Virando-se lentamente para olhar sob o ombro, Sam sentiu um bufar sutil, seguido de mais um ruído - um ruído semelhante a algo borbulhando no fundo da garganta de alguém. Assustado, girou em seus próprios pés e sobressaltou-se com Spencer Cross parada à sua frente.

A garota estava a poucos centímetros de distância do menino. Os curtos e ondulados cabelos loiros estavam bagunçados acima de sua cabeça, seus braços pendendo inertes com os ombros curvados para frente, como se suas mãos pesassem quilos a mais do que deveriam. Seus joelhos se prostravam para dentro, dando às suas pernas uma aparência torta e desconfortável, e o curativo acima de seu joelho direito estava visivelmente empapado de sangue.

Foi o semblante da menina, no entanto, que mais assustou Sam. Seu rosto já fino estava ainda mais encovado, as maçãs do rosto protuberantes, e os olhos esbranquiçados ficaram evidenciados pelas marcas roxas intensas abaixo deles. Os lábios secos, rachados, tinham pontos vermelhos brilhantes mesclando com o tom púrpura que haviam adquirido. A pele já branca da menina agora adquirira um tom acinzentado.

As pálpebras parcialmente fechadas exibiam o olhar vidrado e sem brilho, as órbitas quase sumindo abaixo dos cílios. Ainda assim, o garoto sentia que ela o fitava intensamente. Um filete de saliva escorreu pela boca entreaberta dela e um gemido fino se pronunciou novamente. Sam sentiu um grito se prender em sua garganta.

– Spencer? – A voz de Savannah se sobressaiu às dos dois irmãos, e ambos olharam primeiro para a mulher e depois para a menina à frente de Sam. – Spencer, querida, tá tudo bem?

Spencer permaneceu calada. A saliva agora escorria em maior quantidade e ela continuava encarando Sam, sequer piscando uma única vez. Seu corpo franzino se balançava sutilmente de um lado para o outro algumas vezes, como se estivesse com dificuldade para se equilibrar. Sam tentou dar um passo para trás, mas apenas encontrou o fim do primeiro degrau da escada.

Red arregalou os olhos para a visão da menina.

– Sam, desce daí AGORA!

– Red, mas o quê... – Road franziu o cenho para o pouco que via da menina dali de baixo.

– Spencer, querida, eu fiz um lanche para você! – Savannah deu alguns passos em direção da escada, sorrindo abertamente para a filha. Ignorava totalmente o atual estado em que a menina se encontrava. – Venha, desça aqui, rápido, mamãe daqui a pouco precisa ir lá para fora!

Sam gemeu baixinho, apavorado.

– Red, o que aconteceu com a menina?! Não me diz que ela...

– Road, ela...

– Spencer, filhinha, porque a demora? – A loira continuava conversando com a menina, com uma voz doce e rindo abertamente.

Sam desceu lentamente um degrau da escada, ao som das vozes dos adultos no andar de baixo.

E então Spencer escancarou os lábios e soltou um bramido lamurioso. A menina arregalou os olhos injetados e lançou-se para cima de Sam com as mãos em forma de garras. O garoto também gritou e pisou em falso para trás, errando o degrau e caindo, rolando escada abaixo.

O vozerio e o barulho do menino caindo chamaram a atenção de Germany, que baixou a espingarda e olhou por sob o ombro para a porta fechada do quarto onde se encontrava.

Red gritou pelo garoto, tentando correr em direção a ele – que caíra com um baque aos pés da escada -, mas foi impedida pelo irmão, que a segurara pela cintura, impedindo-a de continuar. Road puxou a irmã e lançou-a para trás.

– Red, fica aí!

– Sam! – A menina se desequilibrou e quase caiu em cima de uma das poltronas, mas logo voltou a se dirigir para a escada. – Road, o Sam!

– Red, olha o estado da menina! – O ruivo empunhou a espingarda com uma das mãos e com a outra empurrou novamente a garota.

Chorosa, Red fitava, incrédula, ora o irmão, ora o menino caído.

Frank Cross logo apareceu no salão, coxeando freneticamente e empunhando a espingarda com determinação. Os dois irmãos viraram assustados para olhá-lo.

– Savannah, mas o que... – O velho cessou as palavras assim que viu a neta no andar de cima e o menino caído no chão e gemendo de dor.

Spencer deu um salto e caiu no meio da escada, apoiando-se no corrimão com as mãos trêmulas e ainda grunhindo em direção a Sam. A baba misturada com o sangue de seus lábios agora respingava na blusa de seu pijama, e os fios louros de seu cabelo grudavam no suor em sua testa.

Savannah se apoiou à estrutura da escada, levantando os olhos para a filha próxima de si.

– Spencer, volte pro seu quarto! Você precisa repousar, precisa repousar pra se recuperar logo! – A loira sorria nervosamente.

Arriscou tocar a mão da menina com a sua, mas a pequena hesitou e virou-se rapidamente para encarar a mulher. Soltou um urro gutural tão profundo que fez Sam levantar a cabeça rapidamente do chão. A loira deu um passo em falso para trás, assustada, e os outros três adultos encararam a menina com espanto.

Germany escancarou a porta do quarto e correu à mureta do corredor que permitia a visão de quem estava no primeiro andar. Apoiou-se ao gesso e inclinou o tronco para frente, podendo ver toda a cena ali de cima. Desviou os olhos para a esquerda e viu Spencer agachada entre os degraus e avançando rapidamente para descer as escadas em direção a Sam.

Red e Road levantaram os olhos para o vulto que aparecera no segundo andar e puderam ver a morena empoleirada ali, com um semblante lívido de assombro.

– Germany! – Chamaram os dois ruivos, ao mesmo tempo.

Sam tentava, sem sucesso, se levantar do chão frio – aparentemente havia torcido ou até quebrado algo, pela dificuldade que encontrava em ficar em pé para fugir da menina. Spencer deu um novo salto, ficando a dois degraus de terminar a escada e a poucos centímetros de distância do menino. Continuava produzindo ruídos e gemidos guturais entre os dentes cerrados.

Savannah ignorava totalmente o garoto caído e ainda conversava freneticamente com a filha, num monólogo ensandecido e infrutífero...

E tudo o que se seguiu depois disso ocorreu de maneira muito rápida.

Germany correu para descer as escadas, Red se lançou para frente para ajudar Sam, Savannah também foi de encontro às crianças, Spencer cravou as unhas numa das pernas do garoto e...

Um disparo.

Um tiro sibilante cortou totalmente o som emitido por todos do salão. As três mulheres estancaram imediatamente em seus lugares, sobressaltadas pelo barulho. Todos permaneceram calados por segundos que se arrastaram como a eternidade.

Savannah, então, quebrou o tenso silêncio soltando um urro longo e doloroso e desabando de joelhos no piso frio.

Spencer caiu com um baque em cima das pernas de Sam, o corpo de pele fria e acinzentada agora inerte. Com o rosto para cima, a menina exibia um semblante assustado, com os olhos brancos arregalados e a boca num pequeno entreabrir, as pálpebras e as bochechas finas passando a ser cobertas por uma grossa e contínua gota de sangue que passou a brotar de sua testa, onde um buraco de bala fora cravado.

A menina estava morta - e agora para sempre.

Sam arrastou-se instintivamente para trás entre gemidos abafados, puxando suas pernas, doloridas da queda, debaixo do corpo da garota. Levantou os olhos marejados para Red, e depois para os dois homens mais atrás dela. O olhar do menino foi acompanhado pelos das duas garotas.

Savannah engatinhou lentamente em direção do corpo da menina que jazia aos pés da escada. Soluços entrecortados escapavam de seus lábios e ela balançava negativamente a cabeça para a imagem à sua frente. Passou a chorar freneticamente assim que se aproximou de Spencer, ajoelhando-se a seu lado, e hesitou por vários instantes a tocar na filha, pairando as mãos intensamente trêmulas a poucos centímetros dela.

Por fim, puxou vagarosamente a menina para perto de si, como se temesse machucá-la ainda mais, e repousou a cabeça da filha em um de seus braços, aninhando-a em seu colo. Balbuciava palavras incompreendidas pelos outros, soluçando e perdendo o fôlego diversas vezes, e acariciava a face fria com a palma de uma das mãos, logo a manchando do grosso sangue que escorria pelas maçãs do rosto de Spencer.

– Oh... S-Spencer, querida... Oh, minha querida...

A voz lamuriosa da mulher era o único som que pairava sobre o salão, sendo interrompida vez e outra apenas por alguns tiros desferidos ao lado de fora. O barulho dos disparos sobressaltavam Savannah a cada vez e ela passava a chorar ainda mais conforme eles continuavam. Após longos segundos ajoelhada com o corpo ensanguentado da filha, encharcando-lhe as próprias vestimentas de um tom vermelho escurecido, Savannah virou lentamente a cabeça por sob o ombro até ter uma visão distorcida de lágrimas de Road.

O ruivo sustentava o olhar da mulher com os olhos verdes arregalados e um semblante de temor e surpresa inédito estampado em seu rosto. Tinha a espingarda abaixada, frouxamente segurada pelas duas mãos.

A loira baixou os olhos para a filha novamente e deitou-a carinhosamente no chão, ajeitando alguns fios arrepiados da franja da menina e fechando os olhos vidrados com a ponta dos dedos. Apoiando-se nos joelhos com as mãos, empertigou-se sofregamente e cambaleou algumas vezes assim que se levantou.

– Você... – Continuou ela. – Como você p-pôde?

Virou-se abruptamente para encarar o rapaz, recebendo os olhares chocados de Sam e de Red. Um brilho ensandecido se formara no olhar da mulher, e uma sombra profunda de amargura perpassara-lhe o rosto, lhe dando uma aparência envelhecida, sofrida e possessa.

– Seu... Seu moleque... – Murmurou ela, fungando algumas vezes. – Como você... c-como você...

Então Savannah se calou e arregalou os olhos.

Atrás de Road, a alguns centímetros mais afastado do rapaz, estava Frank, com uma expressão não muito diferente dos outros que se encontravam ali. Seus olhos pequeninos, envoltos por diversas rugas, exibiam um misto profundo de tristeza e pavor.

E, em suas mãos envelhecidas, a espingarda ligeiramente levantada ao peito exibia dois canos que fumegavam à frente de seu corpo.


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Notas finais do capítulo

Rá, esperavam por essa? (imagino que sim, mas tudo bem! ahahha)
E agora a família dos Cross vai ruir de vez... e vamos seguir tudo de perto na parte II, descobrindo de vez os seus segredos, muahaha!
Deixem comentários, críticas, elogios, ou mesmo só um 'olá' pra eu saber que tem leitores realmente acompanhando a história! Reviews são muito inspiradores. (:
Obrigada e até logo!