Bonds escrita por frozenWings


Capítulo 23
Capítulo 21


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Eu sei... Sumi drasticamente. Talvez eu nem tenha mais leitores com isso, mas tive algumas reviravoltas e não pude avisar quando iria retornar.
Senti saudades de escrever... Mas agora estou de volta e farei o meu máximo pra repor todo esse tempo perdido.
Me desculpem a todos pela inconveniência. :
Eu queria dar um aviso a todos. Por favor, leiam.
Hoje eu trago uma notícia que agradará a alguns, decepcionará outros e provavelmente não afetará os demais de maneira relevante.
Os capítulos alternativos entrarão em pausa.
Por quê?
Ando com a vida muito bagunçada, com problemas que exigem uma maior atenção e comprometimento. Sei que pisei na bola com vocês por ter passado um
tempão longe e não me admira ter perdido tantos leitores com essa ausência.. Só que a vida de ninguém é perfeita, não é mesmo?
Decidi que, por enquanto, só postarei os capítulos IchiRuki's porque mantive, inicialmente,
uma fanfic ICHIRUKI. Então, antes de mais nada, acho de suma importância que conclua ao menos esses capítulos. Eu devo isso a vocês.
Não tenho previsão de quando os capítulos KaiRuki's irão voltar, mas postar ambas modalidades estão me deixando desgastada e não posso continuar desse
jeito.
Eu espero que me entendam e, de alguma maneira, me desculpem. Por hora, escrever capítulos IchiRuki's é o máximo que posso fazer. :(
Boa leitura.



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Dias atuais

Um ano depois




Do caderno de anotações de Kurosaki Ichigo:



Viver essa nova realidade ainda me deixa perdido.

Desde que Rukia foi embora, tudo o que havíamos passado juntos e planejado para esses dias, tinha se tornado um papel em branco. Eu só não pude impedir que ela esvaísse entre meus dedos.

Morar nesse lugar preenchido só por ecos, meus ecos... Me leva de volta ao passado. Àquela sensação vazia. Quando eu era só eu, um carcereiro de solitária.

No fim, eu decidi pintar o papel. Não escolhi cor. Apenas joguei o que me veio à frente. A necessidade de apagar o branco tornou-se prioridade. Era tudo o que eu mais queria. Desesperadamente. Não importava que cor o substituísse, eu só desejava
apagar todo e qualquer rastro que trouxesse Rukia à tona.

Mas... Eu não tenho jeito. Morar em apartamentos assim, apartamentos com sacadas... É como se eu pudesse vê-la sorrir do outro lado.





Ichigo aconchegou a xícara de café quente entre as mãos, soprando a fumaça. Olhava com nostalgia a vista que se erguia além da varanda.
Quando visitou o apartamento pela primeira vez, sentiu-se encantado com a bela vista da varanda de design moderno. A necessidade em acordar todas as manhãs e poder contemplar cada pedaço daquela paisagem panorâmica o obrigou a alugar o apartamento sem pensar duas vezes.
Diferente de antes, não existia nenhuma outra casa que se opusesse a sua sacada.
A vista era limpa e vaga, com um céu azul pálido. Se erguesse um pouco os olhos, teria a chance de mirá-los para um conjunto de montanhas que agia como plano de fundo da pequena cidade.
Ichigo não costumava passar mais de alguns minutos vislumbrando além de sua sacada. Hoje, porém, era diferente. Mais do que em qualquer outro dia, ele fitava o horizonte que circundava parte das montanhas bem desenhadas. Parecia distante e melancólico.
Via, submerso em pensamentos, as folhas secas das árvores caírem numa dança sutil, vez por outra agitadas pela brisa, forrando o chão com um espesso tapete de folhas.
Era outono. Tudo parecia farfalhar. A estação em que conheceu Rukia... Um período cheio de ventos traiçoeiros.
A corrente de ar frio da manhã trazia uma calmaria agradável. Uma vez por outra, a corrente sumia, dando lugar aos assobios do vento. Ele fazia isso de forma gentil, embalando delicadamente os cabelos do ruivo.
Havia conseguido uma vida tranquila, afinal. Não tinha reclamações. Os vizinhos daquelas bandas não eram impertinentes e muito menos barulhentos.
— Com essa caixa chegamos a última, não é? — indagou Karin, entediada com o trabalho de desembrulhar os pertences pessoais que Ichigo esquecera quando se mudou.
Assim que a escutou, Ichigo saiu da varanda, voltando-se para a sala.
— Vocês não precisavam ter que vir até aqui só pra me ajudar... Eu sei me virar. — ele depositou a xícara em cima da mesinha do centro, bagunçando os cabelos um tanto mais longos que antigamente.
— Como se eu tivesse tido opção. — respondeu a garota de mau humor.
— Não fale assim, Karin-chan! Como família, é o nosso dever ajudar o seu irmãozinho... Principalmente quando ele está deixando o tão amado ninho em busca de sua própria identidade e independência! — exclamou Isshin com fervor.
— Cale-se, velho! Você não está ajudando em nada! — bufou a garota com a sobrancelha trêmula de raiva. — E não fale como se ele tivesse saído ontem.
— Que comentário injusto! Eu estou supervisionando... E isso é muito difícil pra uma criança como você, então continue com o bom trabalho, Karin-chan! — ergueu o polegar, exibindo um sorriso orgulhoso. — Para os pais, a despedida é sempre mais penosa, Karin-chan! Sempre parecerá que meu filhote mais velho saiu ontem da minha asa.

— Francamente... — Ichigo suspirou, revirando os olhos.
— Mas, Ichi-nii, me responda... Pra quê isso tudo?! — resmungou Karin, sentada no chão enquanto apontava pras coleções literárias sem fim empilhadas no chão.
O ruivo sentou-se no sofá, arqueando uma das sobrancelhas.
— Pra quê? Você esqueceu que estou cursando Literatura? É natural que eu use tantos livros. — explicou num tom intrigado, como se tivesse respondido algo bastante óbvio.
— Ah, às vezes eu esqueço que o jovem e imaturo Ichi-nii está estudando pra ser um escritor renomado... Isso é tão repentino. Eu não esperava tanto de você... — Karin fez um gesto zombeteiro com uma das mãos, visivelmente sarcástica.
— Peste... — murmurou ele ao tempo em que bateu em sua cabeça um livro que estava próximo. Buscou não deixar que seu bom humor fosse atingido. Era difícil quando sua família estava perto, mas resistiria. — Desde que eu estudava, gostava de Shakespeare. Pra mim, fazer Literatura não é surpresa. — ele descansou o calcanhar por cima de uma das pernas, folheando o livro com naturalidade.
— Verdade, Karin-chan. Não subestime o seu irmão. Temos que somente dizer o quanto nos orgulhamos dele. Certo, Masaki?! — Isshin serpenteou do sofá a parede, grudando num quadro gigantesco suspenso na parede da sala.
Suas bochechas coraram ao beijar a imagem que remetia a sua esposa.
— Desde quando vocês...?! — titubeou Ichigo, só agora reconhecendo a existência do quadro posto sem sua autorização.
— Não faça essa cara, Ichigo. Sua mãe disse que queria olhar por você, então fiz uma cópia daquela foto que temos em casa. Eu sei, você não precisa me agradecer. — ergueu novamente o polegar, exibindo um de seus maiores sorrisos.
As palavras haviam morrido na garganta do ruivo.
Ele apenas tirou os olhos do seu pai destrambelhado, mirando-os à foto.
Fazia tempo que não parava para olhá-la e agora sentia-se nostálgico.
Havia uma gentileza e alegria de viver no rosto de Masaki sem igual.
Os detalhes da fotografia o ajudaram a reconstituir as partes das memórias do rosto de Masaki que faltavam e que há um tempo andavam desordenadas, perdidas em algum lugar de sua cabeça.
Tivera esquecido de como sua mãe fora uma mulher bela — em todos os aspectos.

Algumas madeixas dos cabelos ondulados e loiros lhe caiam harmoniosamente sob os ombros, brilhando, não mais que o sorriso que Masaki dava de tão bom grado.
Os lampejos de recordações foram surgindo um a um, embora não lembrasse com clareza de sua voz, de seu cheiro ou de cada hábito.
Lembrava apenas de como sentia-se quente e seguro quando a abraçava. Que doce sensação... Como queria guardá-la pra sempre, sem perder nada.
Ichigo se resguardou em silêncio, concordando consigo mesmo quão triste era crescer e, com o tempo, perder antigas memórias, renovando-as, como se as antigas pertencessem a outra vida, a outra pessoa.
Sua mãe morrera ainda muito jovem. Ele não conseguia lembrar a causa detalhadamente. Algo como uma doença grave a matou e desde então, Isshin e ele cuidaram para que Karin e Yuzu tivessem tudo o que precisassem.
Foi um período bastante duro em sua vida.
Aquela fotografia, emoldurada em ouro, sempre esteve presente na casa dos Kurosaki... Podia ser vista por qualquer um que a adentrasse. Isshin a colocara logo que Masaki morrera, assim fazendo, dia por dia qualquer comentário cômico enquanto falava com a imagem dela.
Ichigo pensou que talvez Isshin tivesse feito isso para que a imagem de Masaki não fosse apagada, que de certa forma, a mantivesse viva na memória de todos, inclusive na dele.
— Os biscoitos estão prontos! — anunciou Yuzu, irrompendo alegremente da cozinha.
Ela levou uma bandeja repleta de biscoitos dourados. Tinham uma ótima aparência.
Isshin já conseguia salivar apenas em sentir o cheiro.
— Estou faminto! Não vejo a hora de provar os biscoitos da Yuzu-chan! — escandalizou Isshin, palhaço como sempre.
O ruivo acordou de seu transe pessoal, sacudindo a cabeça.
— Pare de usar esse negócio de “chan.” Me dá arrepios. — repreendeu ele com uma expressão nauseada.
Isshin o ignorou e se concentrou em atacar um dos biscoitos caseiros de Yuzu.
Apesar do mau-humor, não demorou muito pra que Karin se juntasse a eles, reclamando das várias investidas que seu pai fazia contra o biscoito em suas mãos.
Ichigo sorriu. Observando-os. Só observando.

Como eram barulhentos.
Havia se mudado há quatro meses e, de todas as coisas que sentia falta, essa com certeza, ganhava o posto de primeiro lugar.
As brigas e discussões eram o que definia seu dia como normal ou saudável. Indicava que tudo estava bem e que nada havia mudado.
Mesmo agora, em um lar diferente, as discussões brotaram ocasionalmente como sempre se davam.
Ichigo sentiu-se aliviado.



Muita coisa havia mudado desde que Rukia havia sumido. E, talvez, na verdade ela não tenha sido nada mais que um amplificador do real ponto inerente daquelas mudanças: a morte de Kaien.
Byakuya e Yoruichi finalmente casaram. Foi uma cerimônia simples e sem extravagância.
Apesar de gostarem de conservar a privacidade de cada um, acharam mais apropriado que morassem juntos.
Concordaram em Yoruichi sair de seu antigo apartamento e se mudar para a casa dos Kuchiki.
Byakuya assegurava que a hora mais conveniente para arranjarem uma casa só deles seria quando pretendessem construir uma família.
Yoruichi não objetou quanto essa condição.
Na realidade, por algum motivo, sempre que Byakuya tocava no assunto de iniciarem uma família, a morena usava de suas peripécias para escapar da conversa.
Parecia fugir com alguma frequência de novos compromissos.

Com o tempo, Yoruichi o convenceu de cortar um pouco mais os cabelos. E ela fez o mesmo, embora tivesse sido mais radical. Os cabelos arroxeados, agora, não passavam do queixo. Estavam repicados. Acentuavam ainda mais o ar independente e ousado de Yoruichi.
— Parece pensativo. — observou a morena, sentando-se a extremidade da cama, enquanto passava qualquer creme nas pernas, deixando-as mais sedosas.
Byakuya, que já estava sentado, a fitou por um único instante, tornando a passar os olhos por seu livro de medicina.

— Nada de diferente. É só mais um dia. — lhe respondeu num sussurro seco e, ao mesmo tempo, cheio de suspeita.
Yoruichi havia notado algo diferente em sua resposta.
Com a convivência, não podia negar que conhecia Byakuya mais do que pensou conhecer.
Ela bagunçou as pontas dos cabelos, deixando-as revoltas.
— É um belo dia de outono. Você devia tomar um pouco de ar fresco. Estamos muito confinados. — sugeriu quase que casualmente.
Em uma resposta implícita, o Kuchiki virou a página do livro, reflexivo.
A morena o olhou de esguelha, optando por não insistir.
— Kuchiki Yoruichi não soa bem, Bya-kun. — mudou de assunto, rolando pela cama, manhosa como um gato.
— Prefere que mude? Não tenho qualquer objeção quanto a isso. Você quem sairá em prejuízo, afinal, Kuchiki é um sobrenome honroso. — retrucou ainda de olhos fixos no livro, sem se ofender com o comentário.
— Você se gaba muito desse sobrenome... — sibilou a morena, descansando a cabeça no colo do marido.
— É natural gozarmos de nossos tesouros, não acha? — continuou a ler, passando uma página.
— Gozar? Vamos fazer isso de uma forma mais divertida!
Yoruichi deu um tapa no livro que Byakuya lia, arremessando-o para fora da cama.
Antes que o Kuchiki pudesse mostrar qualquer tipo de protesto, viu-se vítima dos beijos da esposa.
Ela passeou a ponta dos dedos, explorando minuciosamente cada detalhe daquele tórax esculpido.
Apressou-se. Arrancou as roupas com habilidade, o induzindo a deitar-se.
— Yoru... — as palavras saíram numa rouquidão gutural. Atordoado, o Kuchiki se refugiou, escapando daqueles lábios pecaminosos.
— Byakuya, eu queria fazer uma pergunta.
Ele ficou em silêncio.
— Vou entender isso como um sim. — o presenteou com um longo selinho, fitando o azul gélido de seus olhos. — Tem certeza que não mentiu quando me disse que era virgem?
— Não seja ridícula, eu n... — por algum motivo, a respiração de Byakuya tinha se sobressaltado, exigindo muito mais de sua desenvoltura para camuflar esses tipos de reações.
Por baixo dos lençóis, a mão de Yoruichi desafiou sua estabilidade. Deslizou o corpo dos dedos pelo torço, percebendo quão quente Byakuya estava se tornando.
— O que está fazendo, Yoruichi? — perguntou, tentando desfazer o nó que se formava em sua garganta.
— Você não podia ser virgem, Bya-kun. Na nossa lua de mel, você não agiu como um. Era como se soubesse exatamente o que fazer. — falou, deliciando-se com o rubor que emergia nas bochechas do Kuchiki.
Ela continuou a instigá-lo sem medo.
— É uma grandessíssima pervertida, Yoruichi. — a definiu, embora não fosse surpresa alguma. — Mas...

Byakuya, que mais parecia ser o brinquedinho da morena, de repente tomou as rédeas da situação, rolando o corpo da esposa para o lado, enquanto este se colocava na posição dominante, imobilizando-a com seu peso.
— Sobre o que você se referia a nossa lua de mel... A resposta me parece bastante óbvia. — acrescentou, com as madeixas negras a caírem no rosto de Yoruichi.
Ela fez como se fosse tocá-las, mas seus parâmetros básicos estavam restringidos.
— E qual seria a resposta? — perguntou em um sorriso.
O Kuchiki estreitou o espaço que os separava, deixou seus lábios próximos ao ouvido de Yoruichi, soprando um hálito quente que fez os pêlos do braço da garota se eriçarem.
— Não existe nada em que Kuchiki Byakuya não seja excepcional.
— Oh... — expirou com a respiração cortada, tentando refazer a linha de raciocínio.
Não havia como contrariar Byakuya, pelos menos naquela questão. Yoruichi não conhecia alguém tão mais habilidoso que aquele Kuchiki...
— Yoruichi, por que não conversamos sobre nossos futuros herdeiros...? Parece mais interessante. — ele continuou a sussurrar, dessa vez com os olhos sutilmente mirados aos dela, como se esperasse uma reação premeditada.
— Honestamente... Você sempre consegue estragar o momento. — murmurou a morena, chateada.





Numa pequena locadora do centro, um empregado de aparência excêntrica estampava mais um dos pôsteres dos rock star mais famosos do Japão.
O pôster cintilou mais que qualquer outro como se tivesse sido feito para se destacar.
Vê-lo tão imponente e soberano despertou um misto de inveja, tristeza e saudade no jovem empregado que se flagrou observando-o mais do que gostaria.

— Muito bem, Hitsugaya-kun. Esse lugar ficou ótimo para o pôster. Esse pessoal da Disc Disorder é mesmo um sucesso, não acha? Eu ainda não acredito que os três DVDs que comprei do show deles já foram alugados... Eu os comprei hoje mesmo de manhã... — comentava o dono da locadora, ainda maravilhado.
Um sujeito peculiar aquele. Sempre terminava as frases em reticências, como se a qualquer momento fosse acrescentar algo, no entanto, por fim, acabava por não acrescentar.
Ele era um homem de estatura estranha. O seu pescoço e tronco longos davam a falsa impressão de que fosse alto. As pernas e braços, em contrapartida, eram curtos. Um bigodinho preto e bem aparado se sobrepujava em sua face. Os olhos, diferentes de outros japoneses, possuíam um contorno ocidental. Redondos e negros.
Alguns clientes até brincavam, dizendo o quanto ele parecia com Charlie Chaplin.
Quando de bom-humor, ele procurava relevar, entrando na brincadeira, vez por outra retribuindo em sorrisos amistosos.
Sir. Charlie era como o chamavam.
Com o tempo, até mesmo os mais próximos começaram aderir à brincadeira, transformando aquele apelido que até então parecia inofensivo, em um título permanente.
Recentemente, Hitsugaya Toushirou tinha sido seu mais novo contratado.
O chefe, encantado com a aparência incomum do garoto — embora estivesse ligeiramente desgastada —, o julgou como um bom trunfo para atrair a freguesia feminina.
Hitsugaya não tinha mudado muito. Os cabelos agora estavam mais longos e rebeldes, como se ele não se importasse mais em cuidá-los.
Sempre caiam para o lado, dessa vez com uma maior distribuição de mechas frente a testa.
Apesar de atualmente ter ficado magro e com os traços abatidos, as garotas sempre que podiam, alugavam alguns filmes só para poderem jogar conversa fora.
De hora em hora, uma aparecia com a voz manhosa, passando a ponta do indicador pelas seções de DVDs. Puxava qualquer assunto, rematando com um convite quase que desesperado.

O grisalho cumpria a rotina, recusando a todas. Dizia ter namorada, mas não escutavam e nem ao menos se despontavam... Pelo contrário. Sempre que surgia oportunidade, o tentavam.
Apesar do assédio, ele gostava de onde trabalhava. Era calmo e não tivera o azar de ter um chefe carrasco.

Toushirou não fez qualquer tipo de comentário para acompanhar a conversa que seu chefe havia iniciado. Somente continuou inerte, ainda de olhos pregados no pôster.
Nele, Riruka estava em foco, mais charmosa que de costume. Os cabelos rosados estavam soltos, com as pontas moldadas em grandes cachos. Desta vez, havia abusado de sua aparência de boneca. O vestido que usava acentuou-lhe o ar doce e inocente.
E o que falar dos olhos? Aqueles sempre foram e serão, talvez, o que mais ressaltava Riruka. Eram demasiadamente ciliados, dispensando os cílios postiços que muitas celebridades adotavam.
Ao lado esquerdo, Shinji segurava sua mão. Parecia ainda mais conivente ao seu estilo próprio. Basicamente, os cabelos ainda mantinham a franja e o habitual corte, no entanto, diferente de antes, que eram longos, tinham sido radicalmente cortados, limitando-se a ficarem alinhados ao queixo.
Kira também decidira mudar. Para os fãs, o choque foi imediato. Quando o viram, mal podiam acreditar.
O loiro sempre havia dito em coletivas que era muito reservado e conservador quanto a sua aparência. Amante de rotinas e coisas nada extravagantes. Não fazia o tipo que mudava o visual.
Agora, no pôster, aparentava mais ousadia. A franja que lhe tampava um dos olhos passara a não mais existir. Os cabelos loiros respiravam e balançavam com mais naturalidade. Estavam curtos e bem alinhados, exterminando de vez as feições macilentas e, dando-o em troca, uma aparência mais vívida e jovial. O piercing no canto do lábio inferior fora apenas mais um acréscimo, transformando-o em um verdadeiro rockstar.
Ikkaku e Yumichika foram os que menos mudaram... Ou melhor, não mudaram coisa alguma. Talvez, a única coisa parcialmente relevante, foram os pares de argolas negras que Ikkaku havia adicionado às suas orelhas.
Antes de alugarem os DVDs, Hitsugaya não resistiu ao desejo de assisti-los.
Prestou atenção a todos os detalhes.
O estádio estava lotado. A cada instante, as pessoas levantavam cartazes cheios de amor e afeto pela banda. Gritavam seus nomes. Cantavam em coro. Emocionavam-se até que não houvesse espaço pra nada, se não as lágrimas.
Os efeitos especiais acompanhavam honrosamente a desenvoltura de cada um dos integrantes. Era incrível, quase mágico. O palco tremia de agitação.
Toushirou não havia se dado conta de quão talentosa Riruka era. Sua voz encantava a todos. Uma vocalista assim...

— Hitsugaya-kun, por favor, esta noite eu quero que feche a locadora pra mim. Estarei ocupado acertando os últimos detalhes de um negócio muito bom com o dono de um terreno... — disse Sir. Charlie, se aproximando.
— Entendido, chefe. — retrucou o garoto, voltando ao balcão.
Sir. Charlie passou o dedo pelo bigodinho, com as sobrancelhas grossas unidas em uma linha rígida.
— Não vai me perguntar que tipo de negócio é esse?
O grisalho acomodou-se a cadeira giratória, abrindo uma revista.
— Por que eu faria isso? Empregados não devem se meter em assuntos que só interessam aos patrões.
— Não seja tão duro consigo mesmo, Hitsugaya-kun! Sabe que confio inteiramente em você, não é? Sei que está curioso, então vou contar... — sem se importar com a resposta, ele entrelaçou as mãos por trás das costas, pigarreando. — Estou pensando em ampliar a locadora. Para isso, preciso de novos terrenos. Esse cara, o Hideki-san, irá me vender alguns terrenos. Não será um bom investimento?
Sem encontrar alternativas que o livrassem de ter aquela conversa, Toushirou respondeu:
— Não creio. Fiquei sabendo que esse Hideki não passa de um caloteiro. Não vá com tanta sede ao pote. É só um conselho. — ele folheou a revista com calma, mostrando interesse em uma matéria com um de seus ídolos.
— Não pode ser! Estou nesse ramo há pelo menos uns...!
— Do que está falando? Isso não tem qualquer relação com o tempo que você atua nessa área... — atalhou o garoto, baixando a revista. Percebeu que se não lhe entregasse uma solução imediata, ele prolongaria ainda mais aquela conversa. — Mas, já que falou disso, por que não se certifica se ele está realmente fazendo um negócio limpo com você?
— Tem razão, Hitsugaya-kun. Você é engenhoso. — ele aplaudiu, bobo, entregando-lhe as chaves. — Nos vemos amanhã, sim? Até mais.
“Tão ingênuo...” pensou o grisalho, fazendo qualquer aceno, enquanto erguia a revista, voltando a folheá-la.
Mirou os olhos para uma matéria. Não era mais surpresa ver colunas e pôsteres de Disc Disorder impregnados nas revistas.
O garoto pressionou os dedos às bordas, amassando a página.
Ele soltou um longo suspiro, jogando-a em cima do balcão.
— Trabalhando muito, Toushirou? — indagou um homem encapuzado que adentrou de repente à locadora.

O grisalho arqueou uma das sobrancelhas, tentando reconhecer o sujeito. Não se demorou nas dúvidas.
Assim que ficou de frente ao balcão, o rapaz puxou o capuz, agitando os cabelos.
— O que vai ser? Hoje tenho heroína. — falou de imediato, retirando uma das mãos do bolso do casaco.
Balançou um pacotinho, jogando-o em frente a Hitsugaya.
— Imbecil. Não seja tão descuidado. — retrucou impassível. — Pago quando terminar o expediente. — pousou a mão no balcão, arrastando o pacotinho até que este caísse em seu colo.
— Claro. Você já sabe onde me encontrar. — sorriu, recolocando o capuz.
Sondou alguns filmes, pensando em alugar algum, mas acabou por sair sem levar nada.
Após alguns segundos, certificando-se de que ninguém entrara na locadora, Toushirou se encaminhou ao banheiro.
O trancou, reclinando as costas na porta.
Olhou mais uma vez pro pequeno saco cheio de pó branco, afrouxando os joelhos até que sentasse no chão.
— Por que continua fazendo isso, idiota...? Está tentando se matar? — apertou os olhos, esmigalhando o pacotinho por entre os dedos conforme o aproximava da testa.




— Então eu falei pra ele me deixar em paz, mas o desgraçado sempre dá um jeito de me amolar e sugar o resto da minha paciência... — resmungou uma mulher de esbelteza irrefragável, acariciando seu drinque.
— Que idiota. Você devia se afastar de pessoas assim, Rangiku-san... — bocejou o seu acompanhante, parecendo exausto em mais ouvir que falar.
Ele levou o drinque de encontro ao contorno dos lábios, sentindo o cheiro de álcool inebriante invadir suas narinas. — Ah, que doce aroma... Fazia tempo que não bebia Scott... — falou com emoção quando a bebida lhe rasgou a garganta, deliciosa.
— Hisagi, eu trouxe você até aqui pra me escutar! Eu sou uma dançarina complexada! — exclamou a ruiva de seios fartos, batendo a mão contra a mesa enquanto dobrava as pernas torneadas. Suas atitudes exageradas e ligeiramente insanas indicavam um prelúdio de bebedeira. — E que droga é essa de Scott?! Você é japonês! Deveria gostar de sakê! Sakê!!! — ergueu a garrafa de sakê, por pouco não a arremessando contra a testa do moreno.

— Fique calma, Rangiku-san... Vamos parar de beber, sim? — ele conseguiu fazer com que ela se acalmasse e voltasse a sentar.
Enquanto fazia isso, abriu a carteira, enxergando poucas cédulas que dariam pra pagar a bebidas. No máximo.
Vir pra essas tabernas do centro era um gasto de dinheiro mais que o convencional. E se existia algo que Hisagi não devia desperdiçar, era o seu dinheiro.
Com o decorrer dos meses, mesmo economizando, suas economias finalmente estavam chegando a míngua.
Desde que os Thunders haviam sido “extintos”, Shuuhei não encontrou motivação que o levasse a procurar novos empregos.
Dizia que a única coisa que sabia fazer era tocar sua bateria repleta de velhos adesivos pregados em muitos dos antigos ensaios. Ser baterista era o que tinha de melhor.
Buscou entrar em outras bandas, trabalhar com músicos carentes de um baterista no nível de um profissional, mas foi em vão.
Quando chegava perto de conseguir o emprego, desistia, renunciando.
O rapaz não suportaria começar com uma nova banda. Os Thunders sempre fora a sua família, a sua casa. E isso, definitivamente, nunca irá mudar.
Pensar em aceitar a hipótese de que tudo estivesse acabado e que tivesse de procurar outra família lhe angustiava. Hisagi sabia, de todos, era o mais relutante em acolher ou pelo menos se acostumar com o fim.
A verdade era que, no fundo, ele ainda agrupava o pouco da sua esperança, acreditando que algo pudesse salvar a banda do declínio.
Essa esperança o levava a praticar bateria todos os dias — sem exceção — dando duro para não perder o jeito.
Um dia ou outro se empolgava. Batia nos pratos como ninguém, sendo vítima de devaneios em que Kaien cantava na sua frente, conduzindo um show que só acontecia dentro de sua cabeça. Via-se assim, vivendo a fio nas lembranças nostálgicas que nunca mais retornariam a realidade.
Ele suspirou, fechando e guardando a carteira. Era decisivo, devia repensar antes de sair aceitando os convites de Matsumoto. Beber logo de manhã não era nem um pouco saudável.
Por alguma razão, com o passar dos meses, ambos ficaram próximos, embora não fosse do jeito que Hisagi desejasse.
Às vezes pensava no motivo que os tornou tão íntimos para ela quanto fofoqueiros de plantão para ele.
Talvez, o caso dos Thunders não se reunirem mais como antes tenha sido um fator determinante.

Que seja, as coisas tinham mudado. De uma vez por todas, ele devia aceitar.
— Sabe, Rangiku-san, tenho um jogo pra propor a você. — ele sorriu, convidativo.
Matsumoto teve dificuldades em processar o que ele havia dito. Demorou alguns minutos até ela finalmente entender.
— O que é? — indagou, puxando a garrafa de sakê.
Hisagi balançou a cabeça em sinal de desaprovação, tirando-a de perto da garrafa.
— É um jogo. Vou escrever algumas perguntas em um papel e você terá de respondê-las. Acha que consegue? — tentou não mirar os olhos para os seios enormes que quase explodiam pra fora do ousado decote.
— Não insulte a minha inteligência. — falou de mau humor, jogando uma madeixa ruiva pra trás do ombro. — Vamos, onde está o jogo?
— Espere um pouco. — os estreitos olhos brilharam.
Shuuhei chamou um garçom que passava próximo a eles, falando algo que Matsumoto não pôde entender.
O simpático garçom assentiu, puxando do bolso do avental uma caderneta.
Ele arrancou uma folha e entregou a Hisagi, em seguida, procurando uma caneta no bolso visinho.
O moreno agradeceu, rabiscando alguma coisa no papel.
— O que está fazendo? — indagou Matsumoto, esticando o pescoço para poder espiar.
Passado alguns minutos, Hisagi tomou ar, parecendo guardar um pouco de receio em prosseguir com aquilo.
— É uma coisa boba... — ele murmurou, empurrando o papel e a caneta para a ruiva. — Responda essas perguntas.
Rangiku correu os olhos pelas supostas perguntas, franzindo o cenho.
— Qual o nome popular de uma doença que dá coceiras? — leu a primeira pergunta, fazendo uma careta. — Você não deve estar falando sério.
Ele apoiou o cotovelo na mesa, tapando metade do rosto com a mão.
— Eu sei, eu sei... Não se espante com a mediocridade das perguntas, só responda.
— Honestamente... — formou um bico nos lábios carnudos, começando a responder. — Qual o filme de bruxos mais famoso da atualidade? — voltou a ler em voz alta, entendendo cada vez menos aquele “jogo”.
— Rangiku-san, você não precisa ler tão alto... — suspirou sem emoção.
— De que fruta o vinho é feito?! — ela apertou os dentes, aparentando estar zangada. — Que raios de perguntas são essas?! — respondeu no papel quase o rasgando com a ponta da caneta. — Pra onde você vai quando quer estudar? — balançou a cabeça com nervosismo.
Respondendo quase todas as perguntas, a ruiva fez uma pausa brusca ao ler a última.
“Quem vai ser o homem da sua vida? Junte todas as iniciais das respostas anteriores.”
A garota o fez, surpreendendo-se com a resposta.
— Shuuhei vai ser o homem da minha vida? — arqueou uma das sobrancelhas, enquanto segurava o queixo por cima da mão. — Que modesto. — esboçou um sorriso provocante, acelerando o coração do baterista. — Bem, eu...
Para o desgosto de Hisagi, de repente, o toque espalhafatoso do celular de Matsumoto a interrompeu, desviando sua atenção.
Ela abriu a sua bolsa, puxando o celular.
— Alô? — atendeu, disfarçando um bocejo. — Oh, desculpe chefe... Eu acho que bebi demais e perdi a hora. Não se preocupe. Logo estarei aí. Até mais. — a conversa foi curta, mas o suficiente para desanimar o rapaz.
Matsumoto guardou o celular, ajustando melhor as alças caídas de seu vestido. Não fez cerimônia em aprumar os seios em público. A mulher sempre fizera esse feitio folgada.
— Desculpe, Hisagi. Agora eu tenho que trabalhar. Podemos continuar a nossa conversa uma outra hora, certo? — ela abriu um bolso posterior, trazendo um batom que deslizou nos lábios carnudos, realçando-os.
— Entendo. — ele assentiu, soltando um ar pesado e tristonho. — Está tudo bem em você trabalhar nesse estado?
— Não seja bobo. Já estive pior. — abriu a bolsa mais uma vez, passando os dedos por algumas cédulas e jogando-as na mesa. — Aqui está o dinheiro.

— Rangiku-san, não precisa. Eu pago.
— Ora, Hisagi. Não me venha com machismo barato a essa altura! — ficou de pé, erguendo a voz enquanto encaixava a bolsa elegante por cima de um de seus ombros. — Eu faço questão. Não paguei tudo. Então, você pode se encarregar da outra parte? Eu ficaria agradecida. — acrescentou, suavizando o timbre com um sorriso seguido de uma piscadela.
— Tudo bem. — concordou, sem se levantar. — Qualquer dia desses quero conhecer o lugar onde você trabalha...
— Quem sabe um dia. — fungou a ruiva, desinteressada, dando-lhe as costas. — Ah... E antes que eu me esqueça, Hisagi... — tornou a se virar. Os olhos azulados faiscaram na escuridão. — Da próxima vez que quiser me dizer algo, seja mais direto... Assim, eu ouvirei com atenção. Esses seus jogos são um horror. — acrescentou em um tom zombeteiro.
A princípio, Shuuhei não respondeu. Ficou surpreso demais pra pronunciar qualquer palavra. Por um mísero segundo, pensou que talvez Matsumoto — aquele mulherão — estivesse interessada nele. Só podia ser brincadeira ou ilusão, não é? Apesar de considerar-se charmoso, decididamente, algo assim... Não aconteceria.
— Ah. Eu me lembrarei disso. — por fim respondeu, meio sem jeito.
— Bem, até mais. — ela se despediu, saindo do estabelecimento.
Hisagi permaneceu sentado. Os pensamentos lhe brotaram na mente, mas não se demorou.
Depositou as cédulas por cima da mesa e também saiu.






Renji havia encontrado um novo motivo para se alegrar.
Poucos sabiam que além músico, o ruivo era extremamente talentoso nos desenhos, especialmente quando relacionados a mangás.
Desde pequeno, o rapaz se mostrava interessado nesse tipo de arte. Sempre que podia, colecionava inúmeros volumes, na maioria, os emprestando a Kaien que o incentivava a fazer do desenho algo mais sério.
O músico negava, dizia que tocar instrumentos era o seu primeiro amor. Não se dedicaria ao desenho.
Porém, com o fim dos Thunders, Abarai aceitou a proposta de repensar e até mesmo se reinventar.

Passou a reservar mais horas do dia para aprimorar seus traços, criando histórias e personagens.
Fazia isso em segredo. Não queria ter ninguém envolvido e muito menos dando palpite àquela nova paixão que nascia e provocava ondas de motivação em seu coração.
Desenhar o consolava e, acima de tudo, o fazia sentir-se vivo novamente.

O ruivo ainda trabalhava no mesmo supermercado. Seu primeiro e único emprego desde que chegara a Karakura.
Havia ganhado a confiança e simpatia do seu gerente, passando de sacoleiro a um funcionário de passe mais livre. Fiscalizava os setores de alimentos, a qualidade dos atendimentos e até mesmo os outros funcionários.
Uma ou outra vez pensara em se demitir e procurar um emprego melhor, no entanto, já havia feito muitas amizades com as pessoas dali. Além de que, com a sua atual aparência, encontrar um bom emprego seria difícil, considerando que todos os tatuados eram rotulados de delinquentes ou drogados, no mínimo.
Fora o cabelo ter ficado mais longo, Renji não havia tido mudanças relevantes. Não via mais razão que o levasse a mexer na aparência.
Também pouco importava. Já tinha problemas demais com a atual aparência.
Apesar de alguns — não tão sutis — olhares tortos de muitos dos fregueses, ali era um ambiente agradável para se trabalhar. E também, o salário que pagavam era o suficiente pra cobrir suas despesas e até mesmo frivolidades.
Todos os funcionários sabiam da banda que Renji fizera parte. Ficaram tristes com o fim. Diziam que o ruivo tinha talento, mas ele não queria ouvir. Conhecia a si e ao resto dos ex-integrantes. Independente do talento, todos preferiram abandonar seus sonhos com Kaien naquele acidente, mesmo que isso significasse mutilar o que tinham de melhor; matar a si mesmos.
Por agora, viviam de pensamentos penosos, mantendo uma ferida escondida que vez por outra se camuflava em sorrisos e trejeitos.
— Abarai-san, será que você pode recrutar a senhorita Yadomaru Lisa? Ela é a nossa mais nova funcionária. — pediu o gerente de repente, trazendo uma garota consigo.

O ruivo, que estava sentado sob qualquer caixote vazio, aproveitava o tempo vago para desenhar em um papel.
A cada dia, parecia mais habilidoso; dono irrefutável de uma imensa destreza.
As formas saiam mais ágeis, com leves e precisos contornos. Quase impecável.
O gerente sorriu. Sabia o que o funcionário estava fazendo e, pelo visto, isso não o incomodava.
Logo que escutou o gerente, voltou-se para eles, olhando imediatamente a garota.
De início, o que mais lhe pareceu saliente foi o seu semblante. Era sério. Sério demais.
Mal vazava qualquer tipo de emoção.
Renji franziu a testa. Não imaginava que por aí existissem outras pessoas tão sérias quanto Byakuya.
Ela o fitava, mas não fazia isso como qualquer outra pessoa. Os olhos estavam cravados na sua imagem, decididos em acompanhar qualquer movimento mínimo.
“O que há com essa bruaca?” Pensou ele, começando a sentir-se intimidado por seu olhar.
— Ah, é claro... — ele coçou a nuca, meio receoso.
A mulher perdeu a atenção do curto diálogo, desviando-a distraidamente para o papel na mão de Renji.
“É um bom desenho... Talvez ele não seja tão burro quanto parece.” pensou Lisa, arregalando os olhos, porém, fizera isso com tal descrição que nenhum dos dois acabou notando.
— Então agora a deixo sob os seus cuidados. Se esforcem. — o gerente se afastou, cuidando de resolver outros problemas que julgava como sendo mais importantes.
— Olá, meu nome é Abarai Renji. É um prazer conhecê-la. Eu irei guiá-la e instruí-la por todo o supermercado. Em caso de dúvida, peço que me consulte imediatamente. — ele sorriu, surpreso consigo mesmo em conseguir ser tão diplomata. Não era do tipo que utilizava habitualmente aqueles termos.
— Como você já deve saber, meu nome é Lisa. — apresentou-se sem qualquer emoção, enquanto ajustava os óculos de armação rosada. — Você faz isso bem. Acaso fez curso de desenho? — questionou sem fazer uso de qualquer sutileza, apontando para o papel.
Renji corou com o comentário repentino. Ainda não havia se acostumado quando o elogiavam, ainda que fosse de uma maneira tão indireta quanto aquela.
Lisa, por outro lado, não pareceu se importar com o seu nervosismo, ou talvez só não tivesse se dado conta.
— N-Não. Eu aprendi sozinho. — pigarreou ele para disfarçar o tremor da voz.
— Interessante. Eu gosto de mangás. Achei essa sua personagem carismática, com traços imponentes. Se quer saber, daria uma ótima heroína se pretendesse criar uma história.

— Ah... Você acha? — ele soltou um longo suspiro, esticando os lábios. — Na verdade, essa é uma grande amiga minha que não vejo há tempos. — ergueu o desenho pra si mesmo, sondando-o.
— Entendo. — retrucou a garota, imparcial.
— Para uma heroína, Kuchiki Rukia seria um nome autêntico, não acha? — indagou com a voz baixa, os olhos cheios de carinhos. — Se eu a colocasse em uma história, com toda certeza, Rukia seria uma shinigami.
— Shinigami? Agora faz sentido o quimono preto... — observou, mais absorta no assunto do que imaginara.
— Sim, eu poderia criar um universo de shinigamis, e...
— Vamos começar? — atalhou ela, cortando-o no que pretendia dizer.
Renji quis soltar qualquer exclamação, no entanto, permaneceu de boca fechada, achando que seria mais prudente. Ora, se pensasse bem, não havia o que repreender ou comentar. Quanto mais rápido fosse, mais rápido se livraria daquela mulher esnobe.
A princípio, nem sabia por que havia dado ouvidos a ela e embarcado na conversa.
— É bom saber que estamos contratando pessoas tão animadas... Sedentas para aprender. — escondeu o embaraço que surgiu na voz, acrescentando um sorriso. —Yadomaru-san, vamos começar pelo setor de limpeza, certo?
— Por quê? O primeiro setor é o de grãos e cereais. — contrapôs Lisa, colocando à frente do ombro a fina trança que prendia os seus cabelos.
— Vamos começar pelo mais próximo. — Renji dobrou o papel, guardando-o dentro do bolso. — Eu sou o instrutor, então acate ao que eu digo. — acrescentou duramente como um verdadeiro autoritário.
Lisa ajustou os óculos, fitando-o. Não pareceu intimidar-se.
— Entendo. Faça como achar melhor. Então, vamos indo? — ela não esperou por uma resposta.
Começou a andar, sondando as prateleiras e corredores como se os conhecesse muito bem.
Renji soltou o ar, sentindo o peso da respiração esvair-se.
Havia se enganado. Por um instante achara que Lisa fosse até um pouco simpática, no entanto, ela só se mostrou o tipo de pessoa ao qual Renji — definitivamente — não se dava bem. O tipo que evitava na cara dura, sem fingimento.
Ele deu de ombros, seguindo-a.
Tudo bem, isso logo acabaria. Até lá, só precisaria de paciência... Muita paciência.



Grimmjow foi um grande detentor de sorte. Pelo menos era isso que os outros pensavam.
Mal saíra dos Thunders e um emprego já o aguardava.
Decerto, não era obra do acaso. A verdade é que, depois do incidente com Tatsuki, o pai da mesma decidiu mexer alguns pauzinhos para que Grimmjow entrasse em uma empresa de seus conhecidos. De forma alguma admitiria que o parceiro de sua filha não tivesse como sustentá-la. Esse era o tipo de homem que o Sr.Arisawa mostrava ser.
O Sr.Arisawa era um antiquado incontestável. Não gostava que Tatsuki tivesse optado por lutas e esportes, mas não podia obrigá-la a fazer o contrário... Não que não tivesse tentado, é claro.

Ele deixara bastante clara a sua opinião quanto a gravidez da garota. Ficou decepcionado. Com a cara no chão. Para ele, seu orgulho como pai tinha sido tragicamente ferido.
Quando soube, ficou a ignorá-la por alguns meses, mais tarde sendo convencido — com muito afinco — pela senhora Arisawa que hora por hora se alimentava dos prantos, falando o quanto Tatsuki estava triste em tê-lo desapontado. Quando tinha a oportunidade, enchia-lhe de momentos futuros com o póstumo neto.
“Ele pode ser um homem esplendoroso. Você não gostaria de deixar os negócios da família com ele?” ela repetia, persistente.
Isso o animou e, acima de tudo, o tornou um homem mais complacente.
No entanto, o senhor Arisawa não gostava de Grimmjow. E não fazia a mínima questão de esconder isso.
Por essas e outras desavenças, tratou de não arranjar um emprego tão bom.
E é claro que Grimmjow sabia disso, ele não era burro...
Aquele velho aposentado tinha tido muitas ligações no alto da sua época. Se quisesse, o teria colocado até mesmo em cargos de alto prestígio.
Bem, tanto fazia. Grimmjow queria mesmo é que ele fosse para o raio que o parta.
O importante é que teria como sustentar sua mulher e filho.
Não estava sendo nada fácil.
Quando Grimmjow aceitou assumir a criança, não pôde prever que esse tipo de decisão lhe traria um turbilhão de problemas cada vez maiores.
Às vezes lhe ocorria o pensamento de que talvez tivesse sido precipitado.
O pequeno Shin só tinha alguns meses e já exigia mais dinheiro do que tivera gasto em toda a sua vida.
Dinheiro pra fraldas, dinheiro pra mamadeiras, dinheiro pra produtos de bebês, dinheiro pra consultas ao pediatra.
O salário do mês sumia em um sopro.
Isso já estava começando a enlouquecer Grimmjow. Esta não era a vida aos quais todos os seus sonhos se dedicaram e por esse motivo guardava um rancor especial por si mesmo.
Ainda sim, não dava pra entender. Como um bebê tão pequenininho podia gastar tanto?
Além que o sexo também não é mais como costumava ser. Tatsuki agora relutava, sempre usando o álibi de cansaço por cuidar do bebê e ainda ter de trabalhar na loja de penhores da família de Keigo.
Para completar, não existia mais válvula de escape para o seu estresse acumulado.
Antigamente, aos fins de semana, reunia-se com os Thunders para jogar conversa fora ou até mesmo arranhar um pouco de música. Aproveitava as noites da semana para flertar e quem sabe, sair transando com alguma mulher que o interessasse.
Agora, praticamente casado e sem banda, vivia resmungando de como a nova rotina havia se tornado um pesadelo.
— Quem vai cuidar do Shin essa noite? Hoje não dá pra mim. Vou ficar no expediente até meia-noite. — Grimmjow jogou o corpo cansado por cima da cama, tirando o boné que a empresa o obrigava a usar em seu emprego honroso de motorista de carga.
Bagunçou os cabelos oleosos e de cor desbotada.
— Ah não, Grimmjow! Eu acabei de arrumar essa cama! Caia fora! Você está todo suado! — protestou Tatsuki, já aderente aos cuidados de dona de casa.
Ele não acatou a ordem. Afundou a cabeça entre os cobertores, emitindo qualquer zumbido preguiçoso.
— Eu já disse... Pra você sair daí! — voltou a repetir mais zangada, dessa vez dando-lhe um pontapé que o fez rolar e cair da cama.

— Ai! Qual o seu problema?! — resmungou o azulado, sentando-se no chão.
— O meu problema é que eu arrumo e arrumo essa droga de casa e você só faz bagunçar! Será que dá pra manter as coisas do jeito que estão?! — ela tirou Shin do berço, aconchegando-o em seus braços enquanto equilibrava a mamadeira entre os dedos.
Mal parecia que Tatsuki houvera dado a luz. O corpo continuava impecável, agora ainda mais fortalecido com a volta as aulas de artes marciais.
Tatsuki era uma mulher persistente.
Pouco a pouco reconquistou tudo o que havia perdido durante a gravidez, fazendo o máximo para conciliar seus sonhos com o dever materno.
— Vou perguntar pela última vez: Quem vai cuidar do Shin essa noite? — suspirou ele, ignorando qualquer outro assunto que ela tentasse impor.
— Eu tenho aula essa noite. Não posso ficar. — respondeu, vendo o bebê golfar mingau em sua camiseta. — Ah não... Grimmjow, venha aqui e o segure por um instante, vou pegar um pano pra limpar essa bagunça.
— Não está vendo que estou cansado? Cheguei agora e só tenho meia hora pra descansar. Dá um tempo. — objetou, desinteressado.
Tatsuki trincou os dentes, arremessando a mamadeira na cara do azulado.
— Mais que merda é essa?! Você enlouqueceu de vez?! Pensa que aqui é um campo de guerra ou algo parecido?! — grunhiu Grimmjow, com a mão no nariz que fora o principal atingido.
— Idiota! Eu também trabalho e fico cansada! Ou você esqueceu? Eu só pedi pra você segurar um pouco o SEU FILHO! Será que é tão difícil assim? — aumentou o tom de voz, fazendo com que o bebê chorasse.
Grimmjow soltou uma gargalhada insana, divertindo-se com uma piada que somente ele havia entendido.
— Você não quer chamar aquela espelunca de emprego, não é?
— Ainda acho melhor que trabalhar no ramo de caminhões. — retrucou de maneira contundente, enfurecendo Grimmjow.
O azulado ergueu uma sobrancelha.
— Não venha reclamar. Foi o seu pai que arranjou essa droga de emprego igual a esse ovo que você chama de casa! Se quer resmungar para alguém, resmungue pra ele.
— Ele só está tentando ajudar. Se isso não te satisfaz, acho melhor procurar um emprego melhor. — defendeu-se Tatsuki com um bufado.
Grimmjow franziu os lábios, trancando qualquer insulto na garganta. Parecia não saber mais como rebater Tatsuki.
Em vez disso, ele puxou um maço de cigarros do bolso do jeans surrado, balançando a cabeça pensativamente.
— Pensei que tivesse parado de fumar. — observou a garota num tom cheio de desdém.
Ele a fitou por um instante, acendendo o cigarro posto entre os lábios.
— Eu também. — assentiu em um sopro suficientemente despeitado, enquanto apanhava o boné. — Estou indo trabalhar.

Não achou nada mais para falar, ou pelo menos fez de tudo para evitar uma conversa.
Saiu pelo estreito corredor sem lançar qualquer olhar para a esposa e filho; não queria encará-los.
De certa forma, Tatsuki sentiu-se preocupada e terrivelmente culpada... Havia algo errado, afinal, aquela atitude não era do feitio naturalmente explosivo de Grimmjow.
Talvez devesse escutá-lo mais vezes, quem sabe entrar em um consenso que fizesse a nuvem de discussões e sentimentos enojados sumirem.
Mas, por mais que desejasse que as coisas se encaixassem de uma maneira ou de outra, seu orgulho não a permitia que se esforçasse mais.
As lembranças dos meses desgastantes de sua gestação sempre lhe cutucavam como um alfinete impertinente.
Todo o sofrimento pelas promessas quebradas e pela falta de empenho do azulado a obrigaram a criar uma crosta dura e impenetrável. Não dependeria mais das palavras de Grimmjow.
Ela esfregou os olhos, sentenciando a decisão enquanto dava um fim a umidade indesejada que germinou nos dutos lacrimais.
Antes de sair, Grimmjow dera uma última e profunda tragada no cigarro, fazendo com que novas cinzas se alinhassem numa suspensão frágil.
Abriu a porta e deu de cara com um sujeito curvado e de punho no ar como se estivesse decidindo entre bater ou não na porta.
— O bobo da corte. — soltou a fumaça presa nos pulmões, produzindo pequenas nuvens intoxicadas que deslizaram no rosto do rapaz.
Ele se referia tão carinhosamente à Asano Keigo.
— O-Olá. — pigarreou meio sem jeito, balançando a mão para espantar a fumaça em um gesto casual.
É claro que sabia que Grimmjow morava aqui, mas não esperava (e nem desejava) tê-lo encontrado tão abruptamente.
Se esforçou para não transparecer o desconforto com a fumaça, e, também, com a presença intimidadora bem na sua frente. Mostrou os dentes e pensou em falar alguma coisa, qualquer coisa, mas não passou de um pensamento.
— E então? O que veio fazer aqui? — pressionou Grimmjow, — como de costume, pouco aprazível — jogou no chão os restos do cigarro, espalhando algumas fagulhas ao tê-lo pisado com o sapato.
— Eu só vim entregar a carteira da Arisawa. Veja só, hoje ela saiu apressada, então a esqueceu na loja... Tão cabeça de vento, essa menina! Tive que vir trazer, ela deve estar uma fera sem os documentos... — tartamudeou, enquanto evitava encará-lo, se embromando na mistura em que tentava ser descontraído e honesto quanto as suas intenções.
— E você veio entregar pessoalmente. Não podia esperar amanhã. — completou o azulado, sem paciência para Keigo.
A este apenas restou um silêncio impactado e igualmente confuso sobre o que ele quis insinuar com aquilo.
— Bem... — iniciou, e para que não restasse mais suspeitas ou desentendimentos, tratou de levar a mão ao bolso do casaco, puxando a suposta carteira. — Como você está aqui, poderia entregá-la por mim? Ouvi falar que ela pratica artes marciais nas quintas de noite. Só achei que precisaria no caso de pedirem alguma identificação. — estendeu a carteira e viu que ficou desse jeito, com o braço esticado, por mais tempo que o necessário.
Grimmjow o analisou demoradamente sem tocar a carteira. Ao invés disso, saiu da porta de entrada e andou em direção ao caminhão estacionado próximo a casa.
— Entregue você mesmo. — murmurou.
Keigo girou a cabeça, vendo os traços de seu corpo desaparecerem nas sombras de uma parte da vizinhança.
— Que diabo, Grimmjow! Deixou a porta aberta de novo, e... — bufou Tatsuki ao se aproximar da porta, sem esperar ver Keigo parado que nem um poste em frente de casa. — Keigo? — chamou, guiando os olhos à carteira ainda suspensa.
— A-A-Arisawa?! Olá! Boa noite! — respondeu surpreso e com a língua travada, finalmente percebendo a presença da garota.
— O que é isso? Minha carteira! Ué, eu não me lembro de tê-la perdido. — não se incomodou em ser cortês, pegando a carteira sem qualquer consideração de espera ou pedido.

Keigo não sabia o motivo ao certo, mas uma tristeza abateu e revelou-se ligeiramente em sua expressão.
Tatsuki descobriu a tempo, fingindo o oposto para não haver maiores constrangimentos.
Pigarreou e buscou — o máximo que sua personalidade permitia — um pouco mais de gentileza e gratidão.
— Obrigada, Keigo. Você não precisava ter se incomodado a tanto. — agradeceu com um meio sorriso que julgou ser o suficiente, e apesar de sentir-se intrigada com a situação, não deixou que isso transparecesse às margens de suas feições.
— Ah, não foi nada, Arisawa. De verdade! — abanou o ar com a mão.
Keigo continuou parado, sem prosseguir com a conversa como se esperasse alguma resposta ou reação que, naturalmente, não veio.
Atirado ao silêncio frustrante, percebeu que seria menos humilhante ir para casa do que esperar por algo que até ele desconhecia.
— Bem, acho que a minha missão aqui chegou ao fim. Boa noite, Arisawa. Até logo. — Keigo teve um ímpeto de pressa, adiantando-se aos acenos e finalmente aos passos desconcertados que o distanciaram de Tatsuki.
— Espere, Keigo! — chamou-lhe com a voz firme, fazendo-o parar e olhar por cima do ombro, relutante. — Por que não fica um pouco? Podemos conversar. — convidou. Essa seria a chance de se redimir pela grosseria anterior.
Keigo quis recusar, mas acabou aceitando, torcendo para que Grimmjow não voltasse e quebrasse seu pescoço.
Eles sentaram na modesta mesa de vidro, enquanto Tatsuki preparava um chá verde para dois.
— Obrigado. — disse ao receber uma das xícaras. Nunca tinha entrado na casa da amiga. Aquela era sua primeira vez e sentia que estava mais interessado do que gostaria. — Não entendo como os ocidentais preferem café a chá. Essa bebida é a coisa mais divina que existe. — bebericou com um sorriso bobo no rosto, olhando para um porta-retrato. — Onde está o Shin?
Tatsuki acompanhou seu olhar, demorando-se um pouco aonde ele havia pousado; na foto do seu bebê.
— Coloquei pra dormir há um tempo. — murmurou com a emoção a vazar quando lembrou-se da discussão que havia se dado antes.
Keigo pareceu não perceber.
— Ah sim. Pensei que você estivesse treinando mais para o torneio de artes marciais.
— E estou... Até tinha aula hoje, mas não posso deixar o Shin sozinho. — explicou, pondo a xícara na mesa enquanto apoiava o queixo em uma das mãos.
— Entendo, mas se esse é o caso, eu posso ficar com o garoto enquanto você vai à aula. Pelo menos por hoje. Fique tranquila. Eu prometo cuidar bem dele. — ofereceu-se com um ar benevolente. — Sei que essas aulas são importantes pra você.
— Mesmo? — perguntou Tatsuki, sentindo a necessidade de certificar-se de que não teria escutado errado.

Keigo concordou afirmativamente, enquanto bebia mais chá.
Ela ficou quieta, pensativa.
Ao que se lembrava, desde a época do colegial — com frequência — via-se esmurrando ou dizendo o quanto Keigo era inútil e hoje, pela primeira vez havia presenciado e sentido o quanto ele tinha amadurecido, mostrando preocupação e interesse por tudo que ela fazia.
Sabia que podia confiar nele.
— Seria de grande ajuda. — sussurrou, profundamente comovida. — Obrigada. De verdade.



Ulquiorra Schiffer. Um verdadeiro prodígio. O melhor da turma de gastronomia. Tinha se tornado popular, ainda que isso não edificasse seu ego.
Com o fim dos Thunders, decidiu erguer a cabeça e seguir um novo caminho. Escolheu algo que sempre gostou de fazer: cozinhar.
Antes de cursar gastronomia, quase ninguém conhecia seus talentos para a comida. Sempre se manteve discreto quanto a isso... Ou melhor, quanto a tudo.
O que acontecia consigo, acontecia sempre dentro, nunca fora.
Ao engrenar na faculdade pela primeira vez, sempre que andava, atraia olhares dos outros novatos e até mesmo dos veteranos. A aparência e roupas excêntricas continuavam a lhe proporcionar uma maior atenção que o necessário, ora comentando, ora apreciando.
Quando decidiu se inscrever às aulas, jamais imaginou encontrar Inoue Orihime na mesma instituição... E pior, na mesma turma.
Ulquiorra, é claro, ficou surpreso com tamanha coincidência.
Desde a primeira vez que se viram, desconfiou que a ruiva tivesse lá suas vontades culinárias, mas nunca pensou que ela excederia suas expectativas.
Em todo caso, não iria convidá-la para uma conversa casual. Uma vez que isso acontecia, era difícil dar um fim.
O melhor seria evitá-la e se concentrar nos estudos, embora sua presença tivesse se transformado em algo muito incomodativo e perturbador.
Uma vez ou outra, por educação, retribuía acenos e cumprimentos que Orihime lançava com um sorriso radiante na hora da entrada e saída.
Aquilo era o mais próximo que chegavam de uma conversa.
Mesmo sem uma maior aproximação, no entanto, Inoue era, obviamente a única garota a quem Ulquiorra costumava prestar atenção.
Já ia fazer seis meses que estavam naquela situação... De uma maneira estranha, sentiu-se cada vez mais atraído por aquela garota. Principalmente agora, que ela tinha abandonado as presilhas de aspecto infantil que prendia nos cabelos alaranjados.
Agora eles podiam esvoaçar com mais liberdade.
Da faculdade, talvez fosse o único a vê-la de um modo diferente que o restante dos garotos.

Quando olhavam para Inoue, viam-na apenas como um par de peitos e pernas; a garota mais atraente da faculdade, embora não usasse roupas que ressaltassem suas qualidades corporais.
Ulquiorra via diferente... E, na verdade, os atributos físicos nunca foram de lhe encher os olhos.
— Ulquiorra! Gostaria de provar esses biscoitos que eu mesma fiz? — pela primeira vez em muito tempo, Inoue havia quebrado o recorde de palavras trocadas e aquilo pegou Ulquiorra desprevenido, quase assaltado pelo susto.
Ela apareceu do nada com uma bandeja cheia de cookies, numa oferenda quase tão irresistível quanto seu sorriso.
Ele fez que sim com a cabeça, provando um dos biscoitos.
As salpicadas de chocolate caíram bem, adocicaram a massa crocante.
— E então, o que achou? — perguntou, ansiosa.
— Estão ótimos. Você os cozinhou bem. — respondeu, no fundo querendo ter sido um pouco mais amável.
— Obrigada. É muita gentileza. — Inoue mostrou-se grata, transformando aquele comentário duro em uma chuva de elogios.
Estavam no intervalo e aquilo serviu de álibi perfeito. Sem pedir permissão, Orihime sentou-se ao seu lado na expectativa de terem um assunto a mais.
Tentou não ser tão invasiva com as perguntas, até porque, tinha em mente que Ulquiorra estava atravessando um período difícil em sua vida. Por esse motivo, aceitou a distância imposta.
Foi cuidadosa ao perguntar sobre os Thunders, mas Ulquiorra não demonstrou o abatimento que ela esperava. Pelo contrário.
Dos Thunders, foi o que aceitou e superou melhor o fim. Nada muito surpreendente, já que de todos, era o que menos ligações tinha com Kaien.
Inoue exibiu um sorriso condolente, descontraindo os jorros de perguntas que descarregara no ex-tecladista.
Ela não podia evitar. Queria saber mais sobre o rapaz. Sentia-se atraída à sua vida como um imã Conhecer sua vida, as
—... Meus pais moram no interior, então aluguei uma casa por aqui. Por enquanto, eles estão me ajudando. Enviam dinheiro para pagar os gastos básicos, mas estou contando com o estágio que o curso vai oferecer mais a frente. Dessa forma irei aliviá-los. — respondeu Ulquiorra de uma maneira muito séria, sem contrair outros músculos se não os da boca.
Meio minuto ou outro, tomava coragem e a fitava com segurança que, aos poucos, voltava a se transformar em desconforto, o afugentando de seus olhos.
Sentiu um rebuliço maciço formar-se em seu estômago com as conversas.
Por que estava respondendo a tudo aquilo? Onde estava sua cautela?
— Que incrível. Eu também estou esperando esse estágio! Dê o seu melhor, Ulquiorra. — apanhou um dos próprios biscoitos, motivada.
Para o alívio de Ulquiorra, o sinal tocara e as pessoas retornaram aos montes, barulhentas, mas Inoue não retornou ao lugar onde costumava sentar.
Ela chamou por qualquer garota que sentava aos fundos, pedindo para que lhe passasse os seus materiais.

O que aquilo queria dizer? Ulquiorra tinha medo de descobrir.
— Espero que não se incomode que eu sente aqui, Ulquiorra. Já que não tem ninguém sentando com você, achei que não teria problemas... — ela esboçou um sorriso torto, se esforçando em não corar, pelo menos enquanto estivesse perto dele.
Ulquiorra deu de ombros, como se não fizesse diferença.
“Por que essa mulher quer se aproximar tanto?” Pensou, fingindo estar muito interessado nas novas instruções que o professor alto e esguio ditava.
— Ulquiorra? — cochichou a ruivinha, certificando-se de que o professor estivesse ocupado escrevendo no quadro.
Ele a fitou de canto do olho, percebendo que a única coisa que os separava, naquele instante, era a bandeja de cookies, o que o deixou nervoso, com os pêlos do braço eriçados. Estavam perto demais.
— Sim?
— Qual sabor você prefere em bolos?
Sem se perguntar o porquê da pergunta, ele pensou por um segundo e respondeu:
— Baunilha.
Orihime soltou o que foi interpretado por Ulquiorra como sendo um risinho de satisfação.
— Baunilha! Muito bem. Amanhã farei um bolo pra você. Por favor, aceite. — anunciou animada, a voz saindo aveludada, acariciando os ouvidos do ex-tecladista como se fosse melodia.
Ele girou a cabeça, olhando em sua direção sem a apatia de outrora. Sentiu o corpo esfriar e esquentar entre oscilações estranhas.
Quando os olhares se cruzaram, o sorriso da ruiva foi desaparecendo aos poucos, resumindo-se a um profundo suspiro.
“O sorriso desta mulher é ainda mais adorável de perto.” Pensou, sem notar que havia pensado.

Ulquiorra manteve-se firme, observando-a por demorados segundos. Orihime, por outro lado, não se aprofundou no olhar esmeraldino por muito tempo, endireitando a coluna e forçando-se a tomar nota das anotações no quadro.
Apesar de não demonstrar emoções à flor da pele, Ulquiorra era um observador nato, mais tarde tornando-se um exímio leitor facial, e, durante o período em que se olharam, não foi difícil decifrar exatamente o que a expressão da ruiva trazia: Timidez, admiração e um imenso afeto.
Ele pousou a mão no peito, pressionando levemente o tecido do moletom cinza. O coração, antes sem nunca experimentar coisa parecida, batia em compassos gradativos e vez por vez dolorosos.
Para Ulquiorra, se tratava de uma emoção desconhecida que roubava a respiração, partindo-a e fragmentando em pequenos pedaços até que o oxigênio ficasse escasso, beirando ao nulo.
Ter a resposta para o que Inoue aparentava sentir era fácil, mas saber o que ele mesmo sentia, naquele momento, no entanto, era confuso... Quase impossível.
Se pegasse um espelho, talvez pudesse se auto-interpretar, porém, sentia que mesmo que fizesse aquilo, não seria capaz de encontrar respostas para as perguntas que flutuavam em sua cabeça. Justamente porque não havia nada contido no sorriso, curva ou qualquer ruga, e sim em algum outro lugar bastante soterrado, intricado em conexões indecifráveis.
Não ousaria chegar perto ou sequer pensar naquela confusão borbulhante que se criava em seu peito... Não agora.


Após a arrumação em família, Ichigo acompanhou o pai e as irmãs até a frente do edifício, despedindo-se.
— Não se esqueça de mandar cartas de vez em quando. — lembrou Isshin, terminando de apertar a mão do filho.
— Pare de brincar, velho. Moramos na mesma avenida. — semicerrou os olhos, entediado.

— É uma loooonga avenida. — fez uma ênfase exagerada, brincalhão.
— Sempre que der passo para uma visita. — o tranquilizou. Sabia que, no fundo, dentro de Isshin, existia um pai carente de atenção. — E vocês, Yuzu e Karin, tratem de ir bem nos estudos.
— Dizemos o mesmo a você, Ichi-nii, afinal, você não é muito inteligente, né? — Karin cruzou os braços, contendo-se para não rir da própria provocação.
— Fico tocado com os elogios. — falou sem emoção.
— Onii-chan... — murmurou Yuzu com a voz tremida.
Todas as vezes que se despediam, ela ficava do mesmo jeito. Ainda não tinha se acostumado com a falta do irmão.
— Ora, não fique assim, Yuzu. Moramos bem perto. Você pode me ver sempre que tiver vontade. — disse Ichigo num tom apaziguador, enquanto secava uma lágrima que escapava de um dos olhos da irmã.
Ela assentiu afirmativamente, sem responder. Baixou a cabeça, tampando a boca com as mãos.
Isshin passou o braço por seus ombros, apertando-a contra o seu tórax num abraço apertado.
— Bem, até a vista, Ichigo. — acenou Isshin, fazendo-o mudar de foco. — Quando precisar de qualquer coisa, passe em casa. Não nos deixe solitários.
— Certo. Até mais. — Ichigo deu as costas, andando em direção contrária.
Consultou o relógio de pulso, apressando os passos ao ter visto o horário.
Hoje, seguia uma rota diferente da que costumava trilhar para chegar ao trabalho. Trabalho este que se manteve desde aquela época.
Atravessou a rua de asfalto brilhante, protegendo os olhos do sol quando tentou olhar o alto de outro edifício medialmente próximo ao seu.
Morava em uma área um tanto isolada dos famosos congestionamentos de trânsito, por isso teve facilidade em atravessar algumas ruas até alcançar o edifício ornamentado de vidraças cor azul-petróleo. Cintilavam num brilho ondulado, se harmonizando com o sol que chamejava feliz, sem cortinas de nuvens.
Ichigo sorriu contente ao lembrar que o seu edifício era um dos únicos a disponibilizarem varandas. Tinha de confessar, a exclusividade soava de uma maneira agradável.
Chegou próximo ao prédio, cumprimentando o porteiro que o conhecia de longa data.
Entrou e seguiu direto para o elevador, desabotoando alguns dos botões da sua camisa para ventilar-se apropriadamente, embora estivesse com outra por baixo.
Essa manhã o calor estava especialmente infernal.
Esperou que o cubículo metálico descesse, entrou e apertou uma das teclas do painel.
— Terceiro andar... — murmurou pra si mesmo, passando a mão na testa orvalhada.
Sentiu a pressão da gravidade ir fracamente contra o seu corpo.
Detestava a sensação permissiva a náuseas. No seu prédio, quando não ficava muito cansado, optava por escadas.
Quando a porta se abriu, sentiu o alívio de respirar ar fresco mais uma vez.
Andou pelo corredor vazio, indo até o fim deste.
Soprou o ar, ajustando melhor a alça da mochila que carregava. Bateu numa porta em particular, mas não houve resposta.
Bateu outra vez e nada.
Hesitou com a ideia, mas experimentou girar a maçaneta e, para a sua surpresa, estava aberta.
— Senna? Sou eu, Ichigo. Onde você está? — chamou, sem entrar, pensando na imprudência da garota em deixar a porta destrancada.
As luzes estavam apagadas e a casa vazia. Ele esticou o pescoço, explorando com os olhos cada parte da sala em busca de qualquer sinal de vida.
Deu um passo para poder ver melhor, mas logo recuou. Não gostava da ideia de entrar no apartamento de alguém sem permissão, mesmo que fosse o de Senna.
Pensou por um instante. Não podia ir embora desse jeito. Precisava saber se ela estava enfiada em algum lugar do apartamento.
“Que saco...” Pensou.

Fungou e estufou o peito, dando três passos firmes em direção a sala. Sentiu que não ficou tão desconfortável quanto imaginou e continuou, espreitando o que via a frente.
Não fazia o tipo detalhista, que reparava na casa de alguém quando entrava, mas foi inevitável não notar o furacão que passou por aquele lugar.
Sombras de louças enfileiradas, esperando eternamente o veredicto da pia. Almofadas fora do lugar. Roupas penduradas e jogadas como se tivessem caído do céu. Totalmente o avesso do seu apartamento.
Desleixe?
Ichigo espantou aquelas distrações. Deu início a uma averiguada cautelosa por toda extensão, exceto o quarto da garota.
Aproximou-se, esgueirando a porta.
Escutou um som amordaçado. Tentando perseguir o ruído pela fresta que se abria mais, avistou Senna dormir profundamente em sua cama.
Suspirou nem um pouco surpreso em encontrá-la naquele estado.
Andou até a garota, e ficando a poucos centímetros, percebeu que o som vinha dos fones de ouvido que ela usava.
Pelo ritmo e vozes inconfundíveis, com certeza eram os Beatles; All My Loving especificamente.
Gostava daquela canção, mas não era uma hora apropriada.
A olhou com mais atenção, limpando a garganta ao parar a vista nas coxas brancas e desnudas. Pela inconveniência, subiu os olhos imediatamente, notando a camisa que ela usava. Conhecia aquela malha, o modelo, a cor... Era uma das suas camisas!
Ichigo puxou da memória e recordou-se do dia em que havia pedido para Senna lavar algumas de suas camisas enquanto a lavanderia de seu prédio estivesse em manutenção.
Mas por que ela a estava usando...?
Senna se espreguiçou, começando a despertar. O ruivo sentiu um pânico estranho invadir suas entranhas como se estivesse prestes a ser pego pelo diretor por pichar o banheiro da escola.
Paralisou, sem reação.
— Uaaah! — ela esticou todos os membros, acordando os ossos que ficaram adormecidos durante as horas em que permaneceram aninhados aos lençóis.
Senna esfregou as pálpebras, sem se dar conta do desastre natural que estava o seu cabelo.
Abriu um dos olhos, quase desmontando pra trás com a imagem de Ichigo.
— I-I-Ichigo?! O que é isso? Um pesadelo?! — a pele antes alva ganhou um arranjo de cores avermelhadas que se mesclaram a áreas rosadas menos berrantes.
Por instinto feminino coagido, protegeu o rosto com o travesseiro, beliscando um dos braços para acordar do suposto pesadelo. Não aconteceu.
— Fique calma, Senna! — pediu Ichigo, com as mãos para o alto, disposto a ser revistado se fosse necessário. — Esqueceu que íamos ao trabalho juntos? Eu só achei estranho você não me responder!
Ela continuou a gemer, grudando o travesseiro na cara.
— Já entendi. Saia do quarto! — exclamou com o constrangimento incrustado na face.
O ruivo obedeceu sem discordar. Entendia que mulheres ficavam loucas o tempo todo... Já conviveu muito disso com... Bem, uma pessoa que ele preferia não lembrar.
Ele esperou sentado no sofá, tomando a liberdade de acender as luzes. Minutos depois Senna surgiu devidamente vestida.
Ichigo se esforçou para não deixar a boca aberta conforme pousava os olhos nela.
Era uma situação rara. Senna usava os cabelos soltos e desenvoltos, livres de fita. No lugar, combinou uma boina listrada. Apenas as pontas da franja vieram a ser visíveis, mas ainda sim lhe caiam bem, parecia presenteá-la com uma aparência mais inocente.
Senna estreitou a distância que restava entre ambos, veio devagar como uma gata manhosa querendo olhares, ou, só estava muito envergonhada para falar qualquer coisa de imediato. Uma das mãos ajustou o cardigan de lã amarelo que complementava o vestido da mesma cor, só que mais aguado.
— Ichigo... — ela iniciou, o timbre tímido saindo como um sussurro, as pontas dos dedos a tamborilarem no mesmo ritmo quase mudo. — Acho que você viu a camisa que eu estava usando, não é?

Ichigo tossiu, fazendo que sim com a cabeça. Na verdade, não sabia o que dizer. O constrangimento na situação era muito grande.
— Eu só estava com muito sono pra ver uma roupa adequada! Não pense besteira! Não é que eu quisesse dormir com ela. Aliás, quando quiser pegá-la, fique a vontade! — a mudança de tom ocorreu bem mais rápido do que o ruivo imaginou e ele arregalou os olhos, assustado com o indicador cheio de contundência.
— Eu já entendi! Vamos apenas para o trabalho, está bem? — tentou desviar do assunto, já se adiantando em levantar. — Se você sempre demorar assim, vou deixar de ir com você.
Senna escondeu o seu alivio em não ter que dar explicações sobre o que aconteceu. Ela gostava daquilo em Ichigo. Em não se importar com detalhes, mesmo se eles gritassem dizendo serem o oposto.
Ela o seguiu, apanhando o molho de chaves em cima do braço do sofá.
— Veja se dessa vez tranca a porta. Pode ser que da próxima vez não seja eu a abri-la. — rezingou o ruivo, emburrado.
— Não seja bobo, nada vai acontecer. A segurança daqui é muito boa. — defendeu-se secretamente, embora soubesse que não satisfaria Ichigo só com essa desculpa.
Senna escutou um chiado em suas costas enquanto girava a chave. O ruivo estava impaciente. Prova disso era o pé que dava pisadinhas no chão a cada segundo.
Andaram lado a lado em direção ao corredor, conversando sobre assuntos triviais, a maioria relacionada às reclamações de Ichigo sobre os hábitos pouco organizados ou nada organizados de Senna.
Ela se desculpava sem se preocupar de verdade, de vez em quando mostrando a língua.
— Acho que quando voltar do expediente terei de comer em algum restaurante próximo ou algo parecido. — choramingou Senna ao saírem do elevador.
— Por quê?
— Não tenho muita comida na despensa... E também, convenhamos, as coisas que eu cozinho às vezes são um insulto ao estômago. — disse, de mau humor por pensar na ocasião.
Ichigo esgueirou um sorriso de canto.
— Se quiser, hoje à noite podemos comprar comida e jantar no seu apartamento. Eu sei cozinhar até bem, então ao menos posso garantir que a minha comida não nos matará. O que me diz? — propôs enquanto olhava para o lado, tentando fazer com que o convite soasse razoável.
Os olhos de Senna brilharam de gratidão.
— Você está falando realmente sério, Ichigo? — quis se certificar.
— É claro, idiota. — juntou as sobrancelhas.
— Tudo bem, tudo bem! — deu palminhas com a confirmação carrancuda, desistindo da ideia de perguntar novamente.

Enfim saindo do prédio, avistaram um senhor que vendia centenas de frutas a beira da calçada, chamando os fregueses com um pedaço de jornal em mão.
Senna correu como uma criança espevitada, abrindo um sorriso feliz ao encontrar uma de suas frutas prediletas.
— Hey! Pare de correr desse jeito por aí! — ofegou Ichigo, alcançando-a segundos depois.
— Olhe Ichigo, vou comprar alguns desses para o nosso jantar! — apoiou-se nos joelhos, examinando as frutinhas de saliências vermelhas brilhantes.
Eram morangos.
Os lábios tremeram. Ichigo inspirou mais ar que os pulmões suportavam. Não tinha culpa. Quando certas emoções dominavam parte dele, era preciso esvaziá-las, apedrejá-las ou simplesmente esquecê-las.
“Prazer, Ichigo. Kuchiki Rukia às ordens.” A voz de Rukia ecoou na sua cabeça como uma sirene irritante.
“... Sabe, Ichigo... Eu adoro morangos.” Os pequenos lábios rosados surgiam em uma névoa de recordações. Sensuais, eles mordiscavam o morango na primeira vez em que se falaram.
— Ichigo? Você está bem? — um chamado da realidade o puxou de forma violenta daquelas recordações a tempos trancafiadas.
— Sim? — ele respondeu, visivelmente transtornado.
— Você está bem? — repetiu Senna, preocupada.
— É só o calor... O calor. — abanou a camisa, repuxando um sorriso.
Ela assentiu, pegando uma das melhores bandejas.
— O que acha dessa aqui, moranguinho? — indagou com sarcasmo.
O ruivo levou a mão até a boina de Senna, agitando-a.
— Pegue a que quiser. — sorriu serenamente — E não me chame desse jeito. — Principalmente porque me lembra a Rukia.


Está chovendo. Hoje, especialmente hoje achei que fosse um dia em que o sol merecia aparecer, mas frequentemente me engano e esta, com toda a certeza, não seria a última vez.

Não entendo por que estou rabiscando no papel essas letras enganchadas, mas sinto a profunda necessidade de partilhar esse dia com alguém, mesmo que seja com um pedaço de papel que corre o imenso risco de jamais ser lido.

Provavelmente o guardarei na gaveta de coisas inúteis e rabiscadas, mudas para o mundo.

Estava olhando através da minha janela embaçada de aspecto mórbido, mas cansei rapidamente. A vista não é agradável.

Sinto-me poluída com esse ambiente em que não me encaixo. Poluída pelas coisas que fiz. Poluída por esses sentimentos vazios que me sugam e abraçam com força.

Ganhei um bolo dos colegas de trabalho. A ironia me pegou de surpresa. Eram morangos. Morangos talhados em formações suntuosas.

De qualquer forma, ganhar o bolo me fez sentir menos miserável; menos despedaçada.

Soprei as velas imaginárias, experimentando o glacê docinho.
Feliz aniversário, Rukia!

Teria um gosto melhor se eu tivesse alguém com quem dividir. Não qualquer pessoa...

Mas, sabe de uma coisa? Se me dessem a chance de escolher, eu escolheria as pessoas da foto do
meu último aniversário de verdade. As pessoas da fotografia que estou segurando.

Sinto falta de vocês.

Kuchiki Rukia – rabisco nº97


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