Bonds escrita por frozenWings


Capítulo 18
Capítulo 18


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoas! Acho que demorei um pouco pra postar aqui, mas foi por um bom motivo.
Esse com certeza é o maior capítulo já escrito na fic. Foi bem trabalhoso porque tinha um monte de coisas que eu ainda queria acrescentar e no fim não coube. Foi bem corrido, então não achem estranho se pular de uma situação para a outra. a-a
Tive que escolher os momentos que julguei de maior importância. Enfim.
A má notícia é que vocês não saberão o que vai acontecer com o Kaien até o próximo capítulo.
A boa notícia é que, devido a alguns pedidos, refleti bastante sobre o que havia dito de postar os capítulos IchiRuki's somente no orkut..
Como nesse site eu posso organizar meus capítulos e dessa forma não fica confuso como nos tópicos, postarei capítulos IchiRuki's para que vocês não precisem migrar pra lá.
Acho que é o mais sensato. Bem, agradeço a todos que ainda acompanham a minha fanfic e boa leitura. *-*
OBS.: Aconselho que leiam tudo de uma vez e não por pedaços pra não ficarem confusos com o final.



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Eu gostava quando a minha vida era tingida do mais perfeito branco.

As memórias embaçadas. Os sons ecoados, agressivos. O cheiro, as sensações e as formas desconhecidas das pessoas e coisas se contorciam e sumiam no ar, esmigalhando-se até se tornar uma espécie de poeira irracional. Os instintos me guiaram e me moldaram àquela vida.

Em algumas noites, eu ouvia um canto lírico, preenchido por sentimentos harmoniosos.

Certamente, não fazia parte daquele lugar. Não eram as vozes que sempre estive acostumado a ouvir... Então comecei a julgar que talvez um anjo estivesse lá. Só uma criatura tão celestial quanto aquela poderia cantar para mim.

Me ninando e cuidando pra que o sono viesse à tona.

É, eu acreditei naquilo por muito tempo. Aquela estranha sensação. Mas não poderia ser verdade. Criaturas tão bondosas como os anjos não existiriam em um mundo como esse, não é? Não podiam existir.

— Pai, pai! Olha só, eu finalmente aprendi a tocar aquela música que você gosta! Aprendi sozinho! — eu estava animado. Corri e levei o violão até sala, ficando na ponta dos pés pra que Takeshi notasse a minha existência.

Ele demonstrava o mesmo nível de entusiasmo, porém, para o meu desalento, não pelos mesmos motivos que me levaram a estar ali. Ele estava sentado. Os músculos tensos se contraiam a cada segundo. Um pouco mais e aquela velha poltrona xadrez não aguentaria mais ninguém em cima dela.

Não deixei que aquilo me ofuscasse. Eu fervia. A minha emoção e excitação eram bem maiores. Aprender algo por conta própria sempre foi importante pra mim. 

Ele fez um sinal pra que eu me afastasse. Parecia mais empolgado com outra coisa. Olhei para trás pra, quem sabe, descobrir. A TV estava ligada no último volume. Ela exibia os famosos jogos de Takeshi.

Morto estava quem tentasse impedi-lo de assisti-los.

Ainda sim, mesmo sabendo do risco, o meu desejo de mostrá-lo o que havia feito foi mais forte. Eu fui persistente. Não era possível que um jogo se mostrasse mais importante que a minha realização.

Me aproximei, puxando seu jeans. Ele continuou a ignorar, dando um gole ávido na cerveja que segurava com força em uma das mãos.  

— Pai, presta atenção! Pai! — sacudi seus joelhos e ele olhou pra mim, estarrecido.

— Está bem. O que você quer, Kaien?! Fala logo e dá o fora daqui. Não está vendo que estou ocupado? — respondeu grosseiramente, ameaçando quebrar a garrafa de cerveja na minha cabeça.

— Eu aprendi aquela música do Guns que o senhor gosta. Quer me ouvir cantar e tocar pra você? — perguntei com coragem, ainda que minha voz evidenciasse o contrário. 

— HÁ! — ele soltou um grunhido estranho, estalando a língua, enquanto desmoronava todo o peso sob a poltrona. — Está animado com uma bobagem dessas? Você não acha que já estava mais que na hora de aprender a tocar umas notinhas? Moleque, faz décadas que te dei esse violão e ainda não vi você fazer nada útil. Ficarei mais surpreso quando conseguir fazer dinheiro brotar das suas mãos. — ele gargalhou do que lhe pareceu uma piada, ao contrário de mim, que o fitava com olhos marejados.

Esse era um dos preciosos dons do Takeshi. Menosprezar tudo o que eu fazia ou aprendia, era parte da diversão. Ele não era um sujeito muito afetuoso e sensível, esses tipos de qualidades eram uma piada para sua personalidade obscura.

Olhei pra baixo, pensativo.

Mas afinal, aprimorar-se em música não era um passo pra que dinheiro brotasse das mãos?

E também, era quase impossível aprender algo de útil no colégio em que eles me colocaram. Lá eles davam algumas aulas de música, mas a professora conseguia ser mais burra que toda a classe junta.

Eu recuei, chateado. Encaixei o violão de baixo do braço sem dizer mais nada e voltei pro quarto.

Ele continuou a ver o jogo e, pra falar a verdade, estava feliz por eu tê-lo deixado em paz.

Por um instante, senti falta daquela antiga forma de vida. A primitiva, onde só os instintos valiam pra alguma coisa. Onde eu poderia morrer e nem me dar conta que morri.

Ser um bebê e não entender o que acontecia, de repente, era algo bom...

Joguei o violão contra a cama.

Se o conhecimento não era reconhecido e só atraia frustração e dor, por que as pessoas induziam umas as outras para que sempre estivessem aprendendo? Eu não entendia.

Eu quase ia me deitar no colchão quando escutei um baque vindo de fora, talvez da sala.

Abri a porta e dei alguns passos, procurando saber o que tinha acontecido.

Algo ou alguém serpenteou no meio do chão sujo, resfolegando e soltando comida aos vômitos.

Aquela era Shiba Mayumi. Sim, a minha mãe. Tão honorável.

— Mãe? — sibilei, engolindo em seco. Recentemente, aquelas situações estavam acontecendo com bastante frequência... E eu já sabia onde iria acabar.  

Ela ergueu o rosto pálido e desorientado. Não aparentava estar bem.

Os cabelos pretos, antes bem-cuidados, estavam desgrenhados, com as pontas grudadas ao vômito esparramado. Ela abriu a boca trêmula, tentou pronunciar palavras que não saíram. Os filetes de saliva se distenderam, dando a impressão de seus lábios estarem pontilhados a linha.

Eu não sabia o que fazer sobre aquilo. Parecia errado ficar só olhando.

Decidi me aproximar e quem sabe, ajudá-la a se reerguer. 

— Deixe essa drogada pra lá! — a voz de Takeshi paralisou meu corpo como um veneno ácido e eu não consegui mover mais nenhum músculo.

De repente, Mayumi soltou uma risada irônica, mesmo que seu rosto tivesse voltado a beijar o chão.

— Takeshi, você é um corno. Um corno dos maiores. — e ela continuou a rir, meio desconcertada, meio sem saber o que estava falando. — Sabe o que eu estava fazendo? Quer adivinhar?

Em um salto, Takeshi voltou-se para onde estávamos, bufando como um touro furioso.

Eu estremeci, vendo-o puxá-la pelos cabelos, dando-lhe uma bofetada na cara.

— O que foi que disse, sua vagabunda?! — urrou, as veias em seu pescoço saltaram, avermelhando-o naquela região.

Ela não deixou barato. Aquele tapa foi o suficiente para despertar seus sentidos e a vontade de também batê-lo.

As unhas cravaram em um de seus braços ao tempo em que seus dentes lhe mordiam no ombro.

— Não! Por favor, parem! — eu sabia, não importava o quanto protestasse, o resultado sempre era o mesmo.

Essas brigas aconteciam do nada. Eu não sabia o porquê. Desde que me lembrava, Takeshi e Mayumi nunca se deram bem. Viviam em agressões tanto morais quanto físicas. Um casamento demolido. O respeito despedaçado e perdido em partículas tão pequenas que não podiam mais serem reagrupadas.

Mayumi não era melhor e nem pior que Takeshi. Peculiarmente, ela era ruim de outro modo.

Takeshi a empurrou violentamente contra o armário que por pouco não partiu ao meio. Em compensação, uma das gavetas foi regurgitada, trazendo alguns talheres aos olhos maldosos.

Ela se encarregou de escolher a mesma faca que usava pra fatiar legumes, para então, fatiar o seu querido marido.  

Arregalei os olhos, sentindo um choque atormentar minha cabeça. Eu estava sendo comprimido por aquela visão. Testemunhar Mayumi, a minha mãe, erguer uma faca para agredir ou até mesmo matar Takeshi foi até então, uma de minhas piores memórias.

Eu não sabia decifrar aquela confusão que estava crescendo. Eu queria parar aquela briga, mas tinha medo demais pra poder me colocar à frente.  

Mayumi cambaleou, elevando a faca.

— P-Parem, por favor! Parem! — senti as palavras rasgarem minha garganta, mas era em vão. Nada parecia adiantar.   

Mayumi avançou pra cima de Takeshi, e na primeira investida conseguiu corta-lhe uma das mangas da camiseta.

— Vadia! Essa era a minha camisa favorita! — ele rosnou com o rosto contorcido, pegando-a pelo pulso até que o esmagasse o suficiente para a mão fraquejar e então largar a faca.

Mayumi gemeu, sem planos de fuga. Apesar de se mover, parecia estar tendo dificuldade para controlar os membros que não a obedeciam de imediato.

Ele a empurrou contra o chão, chutando-a continuamente como se fazia a uma bola.

— Parem!!!

Eu não pude mais me conter. Em um salto, me vi por cima de Mayumi, protegendo-a como se fosse uma espécie de muro ou defesa.

Aquilo não sensibilizou Takeshi.

Ele mirou facilmente na minha barriga, golpeando-a algumas vezes com a ponta do pé.

Senti uma onda de ânsia e quase vomitei, mas não larguei Mayumi. Permaneci firme, apesar de tudo em mim estar na mais completa instabilidade.

Ergui os olhos e antes que me desse conta, eles modelaram uma expressão visual perfeita, sem aberturas para equívocos.

Eram flamejantes, vivos e cheios do mais profundo ódio.

As rugas de Takeshi se comprimiram ao presenciá-lo. Fez uma expressão de surpresa seguida de desprezo, como se eu tivesse ferido seu orgulho ou algo do tipo. As sobrancelhas se envergaram em um traço reto e antes que eu pudesse acompanhar o resto de suas reações, uma de suas mãos se enraizou nos meus cabelos, puxando-me como se estivesse lidando com um de seus piores inimigos. Aquele foi o único jeito de me desgrudar de Mayumi.

Mantive o olhar e aquilo o enlouqueceu.

— Escuta aqui, moleque! — a outra mão fez o trabalho de espremer minhas bochechas contra a mandíbula. Os olhos verdes me sondaram com o mesmo ardor. Era como ver o reflexo de meus próprios olhos... A única parte que tínhamos em comum. Em todo o resto, eu parecia com a Mayumi.  — Se continuar a me olhar com esses olhos... Você vai perder essa merda de vida! Está entendendo?! — ele cuspiu as palavras e mesmo com medo, continuei a encará-lo.

Vi a mão possante que antes segurava meus cabelos cortar o ar e chocar-se contra a minha cara. Eu caí no chão e continuei lá mesmo. Naquele momento, não havia coragem suficiente pra me fazer tornar a ficar de pé.

— Takeshi! Você quer matar o garoto?! Não pode fazer isso! — abri lentamente as pálpebras e ainda que estivesse com o rosto em brasa pela pancada, senti-me recompensado por ser defendido por Mayumi. — Os vizinhos estão em alerta! Já estavam reclamando pela barulheira... Você não quer nos levar em cana porque espanca o próprio filho, não é? — sussurrou e com aquilo, minhas esperanças se desfizeram. No fim, ela não se preocupava em defender nada ou ninguém além de si mesma.

— Ah, cala boca! Você quem deu luz a esse pedaço de merda! Se eu parar de novo na cadeia, vai ser culpa sua. Eu deveria ter mandado os dois pro meio do inferno há muito tempo! Isso sim seria um alívio. — grunhiu alterado, afastando-se e derrubando alguns objetos que encontrou no caminho.

Ele já havia ido para a cadeia uma vez e jurou que aquele lugar era pior que o próprio inferno.

Naturalmente, não gostaria de voltar, pensar sequer na hipótese lhe deixava com o bigode arrepiado.

Eu aproveitei a ocasião para levantar e me enfiar no quarto. Era um quarto apertado, meio sujo e com algumas teias que pendiam às extremidades do teto. Os Shiba não se prendiam aos detalhes que incluíam higiene e bem-estar.  

Sentei na cama, tateando a bochecha dolorida que pouco a pouco se salientava dolorosamente.

Para a minha surpresa, Mayumi adentrou, não sem antes dar uma batida.

Eu a observei se agachar a minha frente, segurando minhas mãos.

A princípio, não entendi aquela atitude.

— Kaien, você está bem? — indagou, parecendo mais lúcida.

Virei o rosto, sem responder. Aquela sensação chata de ter os olhos inundados estava me incomodando. Eu não queria chorar.

— Takeshi é um pouco esquentado, mas... — ela iniciou com suavidade.

Um pouco esquentado?! O que ela disse era, no mínimo, loucura.

 — Então. — finalizou sem concluir a frase anterior. — Você não quer fazer um favorzinho para a mamãe? Já que está de férias e sem nada pra fazer nessas tardes calorosas, por que não vamos até o tio Nobuko pra trazer um dinheirinho pra casa? — ela apertou minhas mãos, com expectativa de receber uma boa resposta.

Eu tornei a fitá-la, cerrando os olhos.

— Será que... — as lágrimas desceram involuntariamente e senti a bochecha doer ao se contorcer. — Será que não existe uma única vez que você queira saber como estou sem pedir nada em troca? — solucei, com a voz raspada e engasgada. — Eu não vou voltar pra aquele lugar! Não quero trabalhar no sinal! O Nobuko é uma pessoa ruim! Ele bate nas crianças e... Ele é muito sujo...! Não vou! — rosnei, me afastando dela, com os olhos a encará-la como a criatura mais detestável do mundo.

Ela retribuiu o olhar, levantando-se.

— É assim que você agradece a sua mãe por tudo o que ela faz por você? Não me tire do sério! Você está se tornando um garoto muito mimado, Kaien! — apontou-me o indicador, não ponderando nas palavras. — Eu estou precisando de dinheiro e tudo o que você tem a me dizer é que não vai trabalhar pra me ajudar?!  

Juntei as sobrancelhas, trincando os dentes.

— Se é assim que você quer, então não me dá outra opção se não proibir que jante nessa noite. — ela bufou, dando as costas e batendo a porta.

Escutei alguns resmungos trocados entre ela e Takeshi até finalmente ouvir um outro baque de porta. Julguei ser Mayumi. Provavelmente ela não retornaria até amanhã.

Desci da cama e andei até a porta de meu quarto, espiando pela fresta.

Enxerguei Takeshi borrifar um pouco de sua colônia exagerada. Parecia estranhamente animado. Ele cantarolava uma música que ele mesmo tinha inventado e por isso, era feia.

— Nananana... Vou ver minha pequenina... A minha pequenina! Nanana. — escutei aquele pedaço se repetir algumas vezes como em um pesadelo e logo o intitulei como refrão.      

Pequenina... Agora estava explicado. Pequenina era como Takeshi chamava a sua outra filha.

Para os outros e para mim, ela não passava de Shiba Kuukaku. Uma garotinha emburrada apenas um ano mais nova que eu.  

Takeshi nunca foi um bom marido e quem dera, fiel.

De acordo com os boatos que apareciam como um enxame de abelhas, Takeshi teria seduzido uma ricaça e a engravidado.

Mayumi quase o matou quando soube, mas não tinha muito o que levantar em sua defesa já que levava uma vida semelhante, só que com um número de vítimas um pouco maior que o dele.   

Por algum motivo, Takeshi era bastante amável com essa garota. Mal parecia ser a mesma pessoa quando estava perto dela.

A casa, como uma extensão desse amor, trazia uma boa quantidade de fotos estampadas em cada canto.

Fotos da pequenina e dos momentos felizes que uma família de verdade deve estar acostumada a ter.

Às vezes pensava que o que mais Takeshi amava em Kuukaku era a sua conta bancária... Mas não podia julgar mal, não o meu pai.

Mesmo não estando juntos, a mãe de Kuukaku o deixava visitar a menina sempre que possível e uma vez ou outra, Takeshi aproveitava para trazer a pequenina, fazendo todas as suas vontades. 

Curiosamente, ela tinha os mesmos olhos que eu e Takeshi. Aquela era uma herança genética registrada e talvez, a mais visível.

Senti uma amargura no peito. Algo como inveja mesclada a ciúmes. Kuukaku não gostava de mim e eu também não ia com sua cara, mas ela tinha o melhor do meu pai e isso era triste pra mim, como se eu não me encaixasse na minha própria família, como se não existisse lugar. 

Suspirei, arrastando os pés até a cozinha. Tentei espantar aqueles pensamentos e me concentrar em alguma coisa comestível e que fosse pouco perceptível. Dessa forma, Mayumi não notaria que acabei jantando.

Vasculhei o pequeno espaço, me interessando por um vidrinho cheio de balas coloridas.

Me aproximei e notei a cor encardida das balas. Talvez estivessem velhas.

Dei de ombros. Na minha situação atual, aquilo não chegaria a me matar.  

Rodei a tampa e abri o pote, colocando um punhado na palma da mão.

Arqueei uma das sobrancelhas, intrigado com a aparência dos doces.

Eles pareciam mais pílulas do que qualquer outra coisa.

Tentei picotar aquela desconfiança, e no instante seguinte arremessei os doces pra dentro da boca, mastigando.

Senti um gosto desconhecido, longe do costumeiro açúcar de balas, mas continuei a engoli-las uma por uma. Ninguém ligaria se eu comesse todas as balas, afinal, eram só balas.

            Minutos depois, senti uma dormência se alinhar no meu cérebro e partir para as diversas partes de meu corpo.

Sacudi a cabeça e isso só pareceu piorar. Quando voltei a abrir os olhos, as coisas flutuavam no ar enquanto o chão tremia em oscilações irregulares como se fosse uma espécie de onda. 

Tentei mostrar surpresa, mas meus sentidos estavam lerdos demais para me obedecerem com exatidão.

Olhei pro pote, deixando que ele escapasse entre meus dedos. Eu não conseguia organizar as ideias. Tudo estava funcionando em câmera lenta, inclusive o andamento de meus pensamentos.

De repente, minhas pernas sucumbiram ao chão e o que antes parecia ser uma sensação até boa se transformou em uma sequência de espasmos e um sufoco rasgado na garganta.

Vi a imagem de Takeshi se aproximando entre algumas inclinações engraçadas. Ele disse uma ou duas coisas que não chegou aos meus ouvidos ou pelo menos não entendi. No minuto seguinte, o que sobrava da minha visão foi tingido por um preto intenso e silencioso.  

            Quando acordei, não reconheci o teto que meus olhos avistaram. No ímpeto, inclinei o corpo com euforia, olhando ao redor. Nunca tinha estado naquele quarto. Senti um desconforto nas narinas e quando levei uma das mãos até elas, imaginei que estivesse usando uma sonda. Averiguei o resto do corpo, notando uma agulha de soro em um dos pulsos.

O que tinha acontecido?

— Opa, parece que finalmente o pequeno Shiba Kaien acordou. Não se agite tanto. Agora está tudo bem. — disse uma voz apaziguadora.

Eu virei a cabeça, assustado. Vi um homem de cabelos longos e grisalhos, segurando uma prancheta. Apesar da tonalidade de cabelo pouco comum num homem da idade dele, o que me chamou a atenção foi o sorriso terno e calmo que exibia.

O sujeito trajava um jaleco, o que me fez levantar mais perguntas. Onde tinha ido parar? No hospital?

— Olá, sou Ukitake Juushirou. Está se sentindo melhor? — ele se aproximou com a mesma ternura, pousando o estetoscópio em cima do meu peito.

— Sim, estou. — respondi, umedecendo os lábios secos. — O que aconteceu exatamente?

— Você ingeriu uma quantidade absurda de diversos tipos de drogas. Deu entrada no hospital a beira de uma série de colapsos.  — ele me explicou, fazendo outros exames básicos. — Também apresentava peso abaixo da média e dificuldades respiratórias. Você está entrando em estágio de subnutrição. Por isso o soro. Você e seus pais vivem em condições precárias?

Continuei a encará-lo, dessa vez tentando digerir as informações dadas.

— Drogas? Mas eram doces... Coloridos! — sem dar importância a sua pergunta, eu ressaltei, achando que o caso dos doces não fazia sentido.

Ele me fitou, soprando o ar.

— Não eram doces. Alguém na sua casa faz uso de drogas, então devem ter achado que usar corante nas drogas seria o melhor para disfarçar a existência das cápsulas. — ele passou a mãos por meus cabelos, bagunçando-os. — Infelizmente, em casos como esse, devemos acionar as autoridades. Não podemos simplesmente deixar de lado. Você poderia ter morrido.

Arregalei os olhos, boquiaberto.

— Isso... Isso quer dizer que você vai chamar a polícia pra prender meus pais? — indaguei com um tremor na voz.

Ukitake-san voltou os olhos para mim, desviando-os em algum momento.

— Bem, continue repousando. Eu já volto. — ele esboçou um sorriso, não como o de instantes atrás.

Não consegui aceitar a possibilidade de algo assim acontecer.

Antes que o bom senso ou a racionalidade chegasse até mim, levantei da cama, arrancando a sonda e o fio de soro colado em meu braço.

Com as pernas a tropeçarem no nada, agarrei a mão do médico, puxando-o.

— Por favor! Eu imploro! Não... Mande meus pais para a cadeia, por favor! — clamei, a voz vacilando, apertando-o.

Ukitake-san tentou se desvencilhar, não compreendendo.

— O que está fazendo?! Acalme-se, Kaien. Esse é o melhor pra você. Pais drogados são um perigo para as crianças, não se preocupe... Tudo acabará bem. — falou.

— Eu sei que eles não são os melhores pais do mundo, mas são os meus pais! São os únicos que eu tenho e não sei o que vou fazer se você mandá-los para a cadeia! Por favor, não faça nada contra eles. Por favor! — a minha voz saiu falha, arranhando as cordas vocais.

— Você não sabe o que está falando, Kaien.

— Eu não quero ficar sozinho. Eu não quero! — gemi, com as lágrimas a rolarem pela face. 

Ukitake-san não emitiu quaisquer palavras que se colocassem contra ao meu pedido. Parecia ter se sensibilizado ou pelo menos entendido.

Fitou-me com olhos calmos e brilhantes, colocando a mão em minha cabeça.

Estranhamente, eu podia confiar naquele homem.

— Está tudo bem. Fique tranquilo. Não vou fazer nada. É uma promessa. — aquele sorriso me aparentou ser sincero, então acreditei. — Mas... Só com uma condição.

Franzi o cenho, esperando que ele estimasse o preço do silêncio.

— Eu mesmo terei que conversar com os seus pais quando eles aparecerem. 

Olhei pra baixo, soltando a mão dele.

— Acho difícil que eles venham. — murmurei.

— Não há problema. Você me leva até lá.

Ergui a face, assentindo com um sorriso.

Ele me mandou voltar para a cama, recolocando a sonda e o soro. Disse que estava de observação e por isso devia ficar em repouso.

Horas depois, para a minha surpresa, Ukitake-san voltou a aparecer, trazendo uma pequena bandeja de comida.

— Nossa! Essa é a melhor comida que eu já comi em toda a minha vida. — saboreei cada colherada, raspando o prato.

Ukitake-san apoiou a mão no queixo, olhando-me.

— Bem, acho que a cozinheira do hospital ficaria muito grata se ouvisse esses elogios. Os nossos pacientes, geralmente, não costumam gostar tanto quanto você. — ele sorriu.    

Começamos a conversar sobre muitas coisas. Ukitake-san era um médico divertido.

Ainda que estivesse me distraindo, não conseguia esquecer uma pergunta que perturbava a minha mente.

Aonde teria ido Takeshi? Lembro-me vagamente de vê-lo antes de apagar e Ukitake-san me dissera que a única pessoa a me trazer até aqui foi ele, embora tivesse dado um nome falso e desmentido ser meu pai. Não foi muito difícil reconhecê-lo a partir da descrição de Ukitake.  

— A propósito, Kaien, eu gostaria de perguntar o que foi isso em sua bochecha. Foi durante a queda? — ele apontou pro inchaço roxo na minha bochecha, examinando-o com os olhos.

Espremi o cobertor que cobria metade de meu corpo, um tanto nervoso.

— Não se preocupe, Ukitake-san. Isso aconteceu enquanto eu brincava com alguns garotos. — menti, repuxando um sorriso.

O médico arqueou uma das sobrancelhas e por um minuto, senti como se ele visse através de minhas mentiras.

— Compreendo. — retrucou, se certificando da hora em seu relógio de pulso. —Acho que você já pode sair da observação. Está sentindo-se totalmente recuperado?

— Sim.

— Então vou me encarregar de levá-lo em casa. — ele levantou, dando uma última olhada nos aparelhos que me monitoravam até não enxergar nenhuma anomalia e desligá-los. — Você pode me esperar na recepção enquanto acerto alguns detalhes burocráticos sobre a sua saída.  

            Quando Ukitake-san disse que me levaria em casa, eu não imaginei que iríamos em um carro luxuoso. Ao entrar no automóvel e contemplar a bela carroceria, me senti como um caipira a se deslumbrar com a sua primeira vinda à cidade grande.

Tudo era incrivelmente novo e instigante. Até ar-condicionado tinha!    

— Por que não coloca o cinto de segurança, Kaien? Não queremos nenhum outro acidente, não é mesmo? — aconselhou, puxando parte do cinto para que eu fizesse o resto.

Ele sentou-se confortavelmente no banco de motorista, cutucando o porta-luvas. Quando conseguiu abri-lo, trouxe à tona um grande pirulito cheio de cores vivas.

Não se demorou em me entregar.

— O-Obrigado. — balbuciei, sem graça. Nunca havia recebido um doce de alguém.

— Não há de que. Eu sempre carrego doces no caso de encontrar crianças simpáticas como você. — riu, dando partida. — Infelizmente, minha falecida esposa não podia ter filhos, então nunca tive um filho.Não estranhe se eu for muito bobo com crianças. Geralmente as pessoas tem uma ideia errada sobre mim.

— Devem achar que você é um pedófilo. — deduzi, tirando o plástico do pirulito.

— Exatamente. Isso é meio constrangedor. — dirigiu com cuidado, sem demonstrar muito interesse pela conversa.

— Eu não penso algo assim do Ukitake-san. É um bom homem. — sussurrei, olhando para a janela.

— Fico contente. Meus doces até que me rendem elogios, não acha? — brincou.

— Não é por causa do pirulito! — corei, elevando o tom.

— Eu sei, eu sei. Só estava brincando.

— Sua esposa era uma pessoa legal?

— Sim, a melhor que eu já conheci...

— Eu sinto muito.

— Está tudo bem... E você demorou pra dizer isso. Vou parar de te dar pirulitos. Está distraindo-o demais. — zombou.

— Ah, não é verdade! 

            Chegando em casa, tive uma amarga surpresa em ver tanto Mayumi quanto Takeshi na sala. Pelo jeito, Mayumi resolvera voltar mais cedo dos seus compromissos. 

Só não sabia se aquilo era bom ou ruim... De qualquer forma, tratei de levar Ukitake-san ao encontro deles, apresentando-o com um pouco de receio.

— Então esses são os senhores Shiba. — sibilou Ukitake-san, sem desmanchar o sorriso simpático. — Hm. A sua mãe é bastante jovem, Kaien.

— E quem diabos é você? — perguntou Mayumi de modo tão grosseiro que fez com que minha barriga doesse de vergonha.

— Oh, me desculpe. Minha identidade não deve ficar tão sugestiva quando não estou usando meu jaleco. — retrucou, sem jeito. — Eu devo me apresentar. Sou Ukitake Juushirou. O médico que atendeu Kaien enquanto ele estava no pronto socorro por ter ingerido cápsulas de droga. — explanou com calma.

Mayumi empalideceu, ficando da cor de um fantasma.       

— Você disse cápsulas de droga? — repetiu, mais interessada naquela parte. — Que história é essa? — virou a cabeça para Takeshi, esperando uma resposta que não veio.

— Kaien me disse que só moram vocês três nessa casa. Bom, me escute com atenção, senhora Shiba. Não sei ao certo quem é usuário de drogas nessa residência, mas em casos como o que aconteceu a pouco com o seu filho, na maioria das vezes é preciso que entreguemos as autoridades para que tomem alguma atitude relacionada a esse uso perigoso que pode até mesmo estar ao alcance de uma criança. — ele pausou, fitando-me por um instante. — Mas, ao invés disso, eu decidi vir pessoalmente para evitar maiores estardalhaços e orientá-la para que essa situação não se repita ou no contrário, terei que tomar certas providências. Espero que compreenda o problema, senhora Shiba.

Mayumi engoliu em seco, enquanto Takeshi se afundava mais na poltrona, tentando nos dar a impressão — ao máximo — que não existia. Como se isso fosse possível.

— Sim, é claro que eu compreendo, Ukitake-dono. — ela finalmente respondeu, esticando um sorriso meio teatral. — Eu não sei como essas drogas vieram parar aqui, e... — provavelmente já tinha ordenado tópico por tópico de sua desculpa esfarrapada.

Ukitake-san levantou a mão, fazendo um sinal para que ela parasse.

— Por favor, a senhora não me deve explicações. Só fico preocupado com o seu filho. — soltou um suspiro tristonho, bagunçando meus cabelos. — Bem, eu só vim para isso. Já estou de saída. Tenham uma ótima noite, senhores Shiba.

— Ah, claro... Obrigada. Eu o acompanho até a porta, Ukitake-dono. — Mayumi se ofereceu, conduzindo-o com pressa a saída.

Vi Ukitake-san ir embora. Ele girou a cabeça, direcionando seus olhos uma última vez para mim, até finalmente sair pela porta. 

“Obrigado” agradeci mentalmente.

Mayumi voltou-se pra mim, lançando-me um olhar azedo.

— Minhas drogas?! Você engoliu todas elas?! Sabe quanto tempo demorei pra conseguir aquela quantidade?

Eu fiquei anestesiado pela ida do Ukitake-san. Fiquei imaginando se os papéis fossem outros. Como seria se ele fosse meu pai.

— Ei moleque! Não está ouvindo?! — o empurrão repentino de Mayumi me tirou do transe.

Ela resmungou mais algumas vezes e eu tornei a pensar no assunto anterior, o que a enfureceu.

Quando percebi, já tinha sido acertado — de novo — com um soco.

Aquilo foi a gota d’água.

Lancei-lhe o mesmo olhar que tinha feito para Takeshi. Naquele instante, tinha me arrependido de ter pedido a Ukitake-san que não os entregasse. Não havia dúvidas, aqueles dois eram farinha do mesmo saco. 

Não chorei e isso, de algum modo, só piorou a situação.

Mayumi pegou a sandália de um dos pés e a bateu em mim até cansar.

            Minutos depois, fui pro quarto com uma sensação estranha. Não a ardência das chineladas... Outra sensação.

Eu simplesmente detestava aquela vida. Conhecer uma pessoa tão gentil e íntegra quanto Ukitake-san só me fez enxergar que essa casa, essas pessoas, essa rotina são no mínimo, lamentáveis.  

Um sentimento de amargura preencheu cada ponto do meu interior, se espalhando como veneno.

Raiva. Raiva. Raiva. Raiva.

Estava vivo dentro de mim, como um monstro, tinha pensamentos parciais, mas, no final, parava no mesmo pensamento, na mesma ideia. Queria sair. Queria se espalhar. Estava me matando. Minha cabeça, tudo, isso precisava sair.

Mas como eu colocaria aquilo para fora?

Era como beber um galão de vinho, como ferver óleo numa panela. Agora eu necessitava vomitar.

Passei o resto do tempo melhorando meu desempenho no violão. De certa forma, a música me acalmava. Por muitos anos, agiu como uma boa válvula de escape, mas hoje, hoje não iria funcionar tão bem.

Coloquei o violão de lado, achando que foi o bastante.

Sai do quarto e vi que ninguém estava acordado. Haviam apagado as luzes.  

Caminhei até a cozinha, abrindo uma das gavetas do velho armário.

Meus olhos brilharam de excitação. Vi uma faca reluzente que sorria para mim. Ela era perfeita. Pedia pra que a manuseasse.

A ergui. Era tão afiada...

Usei de passos curtos, nas pontas dos pés. Cheguei ao quarto dos meus pais.

Eles estavam dormindo. Aquelas expressões calmas e inofensivas... Quase me enganavam... Quase.

Primeiro, cheguei perto de Mayumi.

Já tinha decidido. Desferiria um único corte na garganta de cada um. Na veia jugular.

Ouvira falar que um golpe naquela região era letal.

Aproximei a faca, sentindo o ódio me nutrir. Uma voz doce e fúnebre me dizendo o que fazer, como se soubesse exatamente o que esperar de mim, cada ponto, cada detalhe. Eles mereciam morrer. Morrer pelas minhas mãos.

Olhei mais uma vez para a expressão de Mayumi. A faca tremulou e eu hesitei no instante seguinte.

Não sei qual o motivo, mas uma pergunta brotou na minha mente, fazendo-me parar.

O que eu queria ser? Mayumi e Takeshi eram, de fato, as minhas últimas opções.

Pisquei e então compreendi com clareza o que aquelas perguntas queriam me mostrar em meio a toda aquela confusão.

Matá-los seria de uma monstruosidade que eu jamais seria capaz de fazer. Não eu...

Me afastei, arfando. Levei a faca de volta ao seu lugar, caminhando pro quarto.

Limpei as gotas de suor que tinham se acumulado na testa. Precisava dormir.

            Na manhã seguinte, eu fui acordado por um barulho longe de ser uma simples batida de porta.

Esfreguei os olhos, vendo a figura de Takeshi na minha frente.

— O que houve? — murmurei.

— Arruma suas coisas, moleque. Nós vamos viajar. — me comunicou, contorcendo um palito entre os dentes.

— Viajar?! Pra onde? Por quê? — fiz uma série de perguntas, confuso.

— Para de tanta ladainha. Você faz perguntas demais. Só se arrume. Pegamos a estrada em dez minutos. — cuspiu o palito no chão do quarto, saindo sem me dar mais explicações.

Achei melhor fazer o que ele havia dito. Coloquei as poucas roupas dentro da mochila, segurei o violão e me dirigi até o banheiro pra tomar ao menos um banho.

— Ei, aonde pensa que vai? Já estamos indo. — Takeshi me puxou pelo braço, levando-me até a saída de casa.

Vi um taxi parado a frente da calçada. O que me intrigou era que ele nos esperava.

Nunca havíamos andado de táxi. Ainda mais um táxi de capô amassado e em péssimas condições.  

— Takeshi, eu já acertei tudo com aquela minha amiga... Não precisaremos daquela burocracia idiota pra entregá-lo, e... — Mayumi parou de falar ao me ver.

— Entregar o que? — perguntei, confuso.

— Não é nada. Coisa de adulto. Vamos lá. Já está na hora, não é? — usou de falas curtas, passando uma liga por volta dos cabelos pretos, prendendo-os.

Andamos até o taxi, onde o motorista deu partida, levando-nos a um destino que eu desconhecia.     

 Takeshi e Mayumi começaram com mais um bate-boca. Eu acompanhei a discussão por alguns instantes, até colocar a mão dentro do bolso e puxar um pequeno pedaço de papel. 

O olhei, lembrando das palavras de Ukitake-san ao me dá-lo em seu carro. O telefone e o endereço estavam escritos em uma grafia estranha de médico.

Voltei a guardar, olhando para a paisagem através da janela.

Fomos para a cidade vizinha que, coincidentemente, era o lar do médico grisalho.

Havia pontos periféricos mesclados a condomínios luxuosos. As ruas eram confusas, como se ninguém as houvesse planejado antes de serem construídas.

Por trás de algumas casas, existiam minuciosos conjuntos de arvores, formando o que identifiquei como bosques estranhos.

Para o meu espanto, não demorou muito para o taxi parar. Os pneus frearam em frente a um casarão antigo.

Takeshi e Mayumi trataram de sair e eu fiz o mesmo.

Havia uma senhora os esperando. Mayumi se adiantou a ela, apontando pra mim.

A senhora esboçou um sorriso amarelo, assustando-me ainda mais.

Olhei ao redor, sem entender, até que Mayumi se aproximou, transformando tudo na coisa mais óbvia do mundo.  

— Você vai ficar aqui por um tempo, Kaien. — sentenciou sem rodeios.

— O quê?! Por quê? — interroguei tentando raciocinar direito.

— É que eu e o seu pai estamos com um monte de problemas... Não queremos colocar você em risco. É só por um tempo... Nós prometemos, não é, Takeshi? — ela o puxou, como se não quisesse passar por aquilo sozinha.

Estavam agindo com a mesma naturalidade de sempre, ou seja, queriam se livrar o mais rápido possível dos problemas que o perseguiam; que no caso, agora, se resumiam a mim.

— Isso mesmo, garotão. Olhe para mim, Kaien, não ficaremos fora por muito tempo. Pode confiar! Temos de resolver esses problemas... Sabe? — Takeshi gesticulou mais do que falou.

Eu não era burro. Talvez tivesse sido o caso das drogas. Eles queriam sumir por um tempo...

Em todo caso, mesmo que demorassem, eles voltariam, não é? Não podiam deixar o próprio filho... É, não podiam...

— Que lugar é esse? — perguntei, sabendo que não adiantaria rebater.

— É um abrigo. É só temporário... Até suas férias acabarem. — prosseguiu Mayumi, ajoelhando-se. — Agora temos que ir. Quero que se cuide, ok? — ela agarrou minha cabeça, dando-me um abraço apertado e demorado, o único que até então julguei como sincero.

Por um segundo, escutei algo semelhante a um gemido, mas logo cessou.

— Até mais, querido. — sussurrou, ainda abraçada a mim. — Até... — levantou-se, com os olhos fixos nos meus.

Takeshi, impaciente, a puxou pelo braço e ela tropeçou nos próprios pés, o seguindo e sempre que podia, aproveitando os últimos segundos para me olhar de novo e de novo.

Ela moveu a ponta dos dedos, o que pareceu ser um aceno.

Fiquei estático, vendo-os partir.

A senhora pousou a mão no meu ombro e no instante seguinte, a deixei no ar.

Corri o máximo que as minhas pernas podiam atrás daquele táxi.

Instinto, medo, sentimentos, racionalidade... Eu não sabia o que me movia, mas eu queria voltar para aqueles dois, os piores pais do mundo, mesmo sendo o inferno. Eu não queria ser deixado pra trás.   

— Mãe! Pai! Voltem!!! — berrei, com as lágrimas esvoaçando com o vento que batia na minha cara.

Mayumi escutou a minha voz e se virou, olhando-me pelo vidro.

Ela bateu as mãos no vidro, aflita. Dizendo algo que eu não podia ouvir.

Tentou abrir a porta, mas estava trancada. Takeshi a puxou, apontando para o motorista. Provavelmente dizia para que ele continuasse, sem parar.

— E-Eu prometo que nunca mais mexo em nada da casa, por favor, mãe!!! — foi o meu último grito antes de sentir que não podia continuar.

As minhas pernas fraquejaram, me levando ao chão. 

A senhora me seguiu, ajudando a me reerguer.

Busquei continuar com a minha perseguição falha, mas voltei a cair, engolindo a poeira da estrada. 

Quando me acalmei, o que só aconteceu depois de cinco horas, ela me levou para conhecer o interior daquele orfanato. Era uma mulher simpática, apesar de tudo.

Existiam muitas crianças espalhadas pelo pátio. Ainda sim, senti que era um lugar triste, sem muita expectativa.

Todos ali tinham sido abandonados pelas pessoas que mais amavam. Muitos nem mesmo sabiam como tinham parado ali. Viviam num buraco, num mundo ilusório.

A mulher me aconselhou ficar no pátio por um tempo, tomar ar fresco e quem sabe, me recompor por completo.

Obedeci sem enxergar alternativa.

Sentando em um banquinho, vi a imagem entediante de crianças brincando. Não queria participar da brincadeira, foi o que determinei mesmo sem ter sido convidado pra nenhuma.

Resolvi caminhar e explorar, dessa forma a imagem de ver meus pais indo embora não me alcançavam.

Vi que estava indo para a ala dos banheiros. Pensei em voltar, mas antes que o pensamento se tornasse ação, ouvi uma doce voz repercutir além dos corredores.

Era de uma garota, com certeza. Uma das vozes mais lindas que já escutei.

Sem ter certeza do que estava fazendo, segui aquela melodia desconhecida.

Relutei ao ver que vinha do banheiro das meninas, porém, a vontade de conhecer a dona daquela voz me locomoveu, ou melhor, meus pés agiram por vontade própria.

A porta estava esgueirada. Entrei e vi uma série de cabines e pias convenientemente ajustadas.

Encontrei uma garotinha na última pia, olhando-se no espelho. Cantava tristemente, como se quisesse afagar a dor em notas.

Meus olhos brilharam e senti, pela primeira vez, meu coração pulsar por uma menina... Argh!

Naquela idade, eu não achava as garotas interessantes, mas aquela... Ela era uma exceção.

A garota trajava um quimono violeta simples. Os cabelos eram curtos, na altura do pescoço, brilhantes, em tom de grafite. Tinha uma pele clara, alva como porcelana. Os olhos eram grandes e pareciam opacos com sombreamentos escuros, mas mesmo assim, eram de um dos mais belos azuis que já vi em toda a minha vida.  

Eu não sei em que momento aquilo aconteceu, mas algo em meus passos produziu um ruído que cessou a suntuosa melodia.

Rapidamente, a menina mirou os olhos para mim, assustada com a presença de um garoto no banheiro feminino. Eu também me assustaria se estivesse no lugar dela. Era uma situação frustrante.

Senti que me assustei mais que ela e não suportei ficar por tanto tempo a encarar aqueles olhos azulados. Recuei uns dois passos e resolvi correr, sumindo daquele lugar.  

— Quem é ela? — perguntei por alto, sem notar o que realmente havia pronunciado.

Encostei em uma parede qualquer, recuperando o ar.

— Não é da sua conta. — respondeu um garoto que eu não tinha notado a existência até agora. Ele tinha me visto entrar e sair do banheiro? — Sugiro que não mais se aproxime dela ou terá que se entender comigo. Anarquistas como você não devem incomodar a minha irmã.

Ergui a face, arregalando os olhos. 

Avistei um garoto mais pálido e alto que ela. Fora isso, eles apresentavam, basicamente, as mesmas semelhanças fisionômicas. Ah, tirando o fato, é claro, dele carregar uma muralha quase insuportável de indiferença.

Ótimo! Mal tinha chegado na porcaria do orfanato e já tinha ganhado uma generosa notificação para que ficasse longe de uma pessoa que por acaso, achei legal. Pior, o irmão mais velho e, diga-se de passagem, super protetor, devia achar que eu era um tarado ou coisa do tipo. Ele não se demorou muito em mim. Continuou sua caminhada até em frente do banheiro, onde encontrou com a pequena, acariciando sua cabeça.

Achei melhor concentrar minhas ideias em outro lugar. Não tinha tempo para garotas.

Explorei o resto do orfanato, descobrindo lugares interessantes, inclusive, uma passagem estreita que haviam feito no muro dos fundos, onde algumas crianças costumavam sair e aproveitar o tempo lá fora.

Não era uma instituição muito monitorada. Existiam poucos funcionários e menos ainda os que estavam disponíveis a vigiarem veementemente cada criança.

Coloquei os arbustos que funcionavam como camuflagem para o lado, atravessando a passagem.

Vi o que existia por trás e não era nada mais que uma área florestal montanhosa, repleta de elevações de relevo. Prossegui com o curso, chegando a uma extremidade onde podia se ver a estrada principal — e única — que dava a cidade. 

Sentei, contemplando a paisagem.

Tirei o papel mais uma vez do bolso, amassando-o em seguida.

Não iria preocupar ou levar problemas para Ukitake-san. Eu já era bastante grato por tudo o que ele fez por mim. Estava decidido, se fôssemos nos encontrar, inventaria qualquer desculpa como estar passando um tempo na casa da minha tia.

Observei a estrada. Aqui era um ponto de espera excelente.

Viria todo dia nesse mesmo lugar, aguardando o táxi que me trouxe.

Esperaria que Mayumi e Takeshi cumprissem a sua promessa. Os esperaria pacientemente... Seria rápido.  

            Os dias se passaram, já havia me acostumado com algumas coisas no orfanato, mas mantive minha esperança acessa de rever meus pais problemáticos.

Não existiu um dia que eu não viesse a esse mesmo lugar, observando, sem sucesso. Fiquei otimista e continuei a esperar. Dia após dia. Semana após semana. Eu fiquei sentado, esperando pelo foco amarelo que indicasse ser o táxi de capô amassado.

Eu esperei. Nem o vai e vem da vida me arrastou daquele lugar.

Mesmo sob a chuva, com o passar das estações, eu não faltava a esse encontro.

Os meses vieram, aumentando o número de tempo em que fui deixado ali.

Até que em um belo dia, constatei que fazia um ano. Na época, eu completara em torno de doze anos.  

Por mais que não quisesse aceitar ou encarar, tinha de enfiar na cabeça, era preciso. Os Shiba não voltariam. Eles me abandonaram. Pensar dessa forma me fez sentir um enorme buraco no peito. Demorei a entender, mas, a partir daquele momento, era só eu. E se ninguém me queria, eu iria me querer.

Com o decorrer dos anos, moldei um comportamento diferente do antigo. Agora eu tinha quinze anos e precisava ser menos vulnerável e mais confiante sobre mim mesmo. Eu simplesmente não podia escolher entre ganhar e perder. Não me daria a esse luxo. Vencer não era opção, era necessário e mais que isso, meu único caminho. Precisava alcançar isso e não acabar como essas crianças que um dia se tornariam... Adultos quebradiços e com uma boa chance de serem delinquentes. Sem sonhos ou grandes expectativas. Eu tinha sede pelo conhecimento. Sede pela evolução, pela realização própria. Tentei não inclinar minha personalidade para ares rebeldes e revoltados, apesar de sentir raiva de tudo. Eu devia controlar esses impulsos. Amadurecer antes do tempo.

Com isso, passei boa parte dos meses enfurnado entre os livros da biblioteca, complementando os estudos que tínhamos no orfanato. Curiosamente, lá eu sempre via aquele irmão super protetor, Kuchiki Byakuya, de acordo com as outras crianças. Ele adquiriu o mesmo hábito, como se quisesse o mesmo que eu. Via-o com certa frequência na biblioteca ao lado da doce Kuchiki Rukia que por algum motivo não falava e nem esboçava sorrisos. A única vez que ouvi a sua voz foi quando nos conhecemos...

Ouvi falar que ela era mais nova que eu cerca de três anos, no entanto, o seu irmão, em contra peso, era uns dois anos mais velho que eu.    

Mesmo que eu não desejasse, ainda me pegava olhando para ela, o que incomodava Byakuya que sempre dava um jeito de cruzar os olhos com os meus.   

Durante esse meio tempo, fiz alguns colegas e um amigo estranho chamado Abarai Renji.

Ele era um garoto ruivo, queimado do sol e de cabelos longos que sempre estavam presos em um rabo de cavalo.

Em um dia qualquer, enquanto eu tocava meu velho violão, ele surgiu emocionado, e o queixo quase caiu de excitação.

Dizia também saber tocar. Fiquei surpreso por ter mais um amante de música além de mim. Sem relutar, ofereci meu violão para que ele me mostrasse.

Ele sorriu, feliz, mas o nervosismo estragara algumas de suas notas, deixando-o bastante envergonhado. Renji era talentoso, eu vi isso, talentosos reconhecem outros talentosos quando os avista. O que lhe faltava era um pouco de confiança em si mesmo e nas suas habilidades.  Ele admirava minha voz, dizia sentir inveja por não ter talento para cantar e apenas tocar, mas eu o consolava, não havia porque sentir-se inferior.

Começamos a andar juntos. E apesar dele ser arruaceiro e briguento, seu carisma e simplicidade, se tornaram pontos mais importantes, me convidando a virar seu amigo. Eu não sabia muito sobre Renji, pelo menos não mais do que ele sabia sobre si mesmo. Desconhecia a identidade dos pais. Para ele, tinha nascido ali e desde então, aquele era seu lar. 

Renji compreendia meu lado aventureiro. Andávamos por todos os lugares e se existia parte da cidade que eu não conhecia, Renji se fez prestativo em me apresentar. Foi quando o convenci a nos escrevermos em aulas de artes marciais que estavam sendo oferecidas gratuitamente em um galpão. Usei de um argumento meramente convincente: Precisamos aprender de tudo um pouco se quisermos explorar o mundo!

Ele concordou e iniciamos as aulas onde nos desempenhamos com vontade.

Tudo bem que voltávamos muitas vezes com luxações e hematomas, mas valia a pena.

Quando os treinos chegaram ao fim, para a nossa surpresa, trataram de inaugurar um conservatório aberto especialmente para comunidades carentes. Sem delongas, fomos um dos primeiros a nos inscrever.

Estávamos ansiosos para aprender mais sobre música e instrumentos. Até mesmo brincávamos dizendo que formaríamos uma banda, embora a idéia não fosse má... Realmente, não era má.  

Sempre que eu tinha um tempo livre, ia até Kuchiki Byakuya desafiá-lo em um duelo pela irmã.

É, eu sei, era totalmente estúpido, mas se alguém conhecesse Kuchiki Byakuya como eu o conhecia, saberiam que eu tenho razão. Por mais estranha que parecesse, essa era a forma mais eficaz de puxar alguma porcentagem de chance de vitória.

Porém, para o meu descontentamento, Byakuya era um gênio em tudo.

— Kuchiki Byakuya! Eu o desafio! Se eu ganhar, em troca, quero levar sua irmã para sair! — gritei com o rosto em brasa, aproveitando que ele estava no pequeno bosque atrás do orfanato.

Ele fechou o livro que estava folheando, fitando-me. Rukia, ao seu lado, fez o mesmo, conseguindo eriçar os pêlos dos meus braços.  

— Não acho que esteja em condições pra isso, Shiba Kaien. — me respondeu, apontando sutilmente com o seu indicador. — Pelo menos é o que indica as suas pernas trêmulas.

Olhei pra baixo, constatando a insinuação de Byakuya. Droga! Traído pelas minhas próprias pernas!

Por um instante, mirei meus olhos para Rukia. Ela me fitava sem entender, mas sem muitas alterações faciais. Corei mais ainda.

— Cala boca! Minhas pernas estão tremendo de ansiedade pra esfregar esse seu nariz esnobe no chão! — repuxei um sorriso irônico, chamando-o com a ponta dos dedos.

— Tudo bem... Já que você insiste tanto em perder, não o farei esperar por mais tempo. Prepare-se para a sua trigésima oitava derrota. — ele depositou o livro no rochedo, estalando os dedos.

Mordisquei os lábios, odiando as gotas tensas de suor que escorriam pelo canto do meu rosto.

Sem esperar, eu avancei.

— Kuchiki Byakuya!!! — ergui o punho.

Mesmo treinando os movimentos diariamente, o máximo que consegui ganhar de Kuchiki Byakuya foi a fita que prendia seus longos cabelos e devo dizer que isso o enfureceu de tal forma que saí da briga com um olho roxo.

Trigésima oitava derrota. Estava ficando gradativamente deprimente. Droga de Byakuya! Por que diabos ele tinha que ser tão bom?

Eu precisava encontrar uma maneira de vencê-lo ou nunca conversaria com a Rukia.

Triplicaria o número das flexões se fosse preciso.  

Sentei em uma rocha, despertando as ideias com uma música no violão tão bem conservado.

Parei no meio do refrão, esquecendo o que vinha a seguir.

De repente, escutei o estalar de um galho. Olhei rapidamente para os lados.

Uma gangue, talvez?! Depois que havia me juntado a Renji, para o meu tormento, muitos garotos se intitularam como encrenqueiros sem nada melhor pra fazer.

Fiquei em alerta, enxergando o contorno de uma pessoa por trás de uma árvore.

— Quem está aí?! É melhor aparecer se não... Eu sei lutar e vou quebrar tudo! — idiota, muito idiota. Cada vez que eu crescia, falava mais coisas estúpidas. Tinha que mudar isso. — Apareça, seu covarde!

A sombra inerme por trás do carvalho se relevou. Petrifiquei com a imagem projetada a poucos metros.

— Rukia...? — murmurei, com a boca seca.

Ela hesitou em se mover, mas alguma coisa a fez mudar de ideia, a aproximando de mim em curtos passos.

Não tirei os olhos da pequena. Limpei a garganta sem saber ao certo o que fazer.

Rukia ficara de frente pra mim. Ela levou a mão até o meu violão, tocando-o, porém, sem emitir qualquer palavra.

Ruborizei, fitando tão de perto aqueles olhos serenos.

— Você quer que eu toque pra você, é isso? — indaguei as pressas. Meu coração galopava como o mais veloz corcel.

 Ela assentiu. Eu tomei ar, rezando pra não passar vergonha em sua presença.  

Toquei uma música aleatória. Na verdade, foi a primeira que eu havia inventado... E tinha Rukia como inspiração.

Ela fechou os olhos por alguns segundos, introduzindo sua própria letra.

Fiquei admirado. Fazia tempo que não ouvia aquele timbre tão doce e apurado.

— Rukia! — exclamou uma voz — dolorosamente — familiar.

Imediatamente paramos de cantar e tocar. Era Kuchiki Byakuya.

Foi estranho, mas ele não estava com a expressão que eu imaginei que estaria.

Olhávamos com os globos oculares esbugalhados, como se presenciasse um milagre. Eu não entendi.

— Você pode me esperar dentro do orfanato? — não vi aquilo como uma pergunta, pelo contrário, mais pareceu uma ordem camuflada. Típico dele.

Rukia obedeceu, dando-me uma última olhada até sumir pelas árvores.

Fiquei triste em vê-la se afastar... E mais triste ainda por ver Kuchiki Byakuya se aproximar.

— Byakuya, não é nada do que você está pensando! Eu só estava... Só estava... Bem... Err! — sacudi as mãos no ar, me embaraçando nas tentativas de explicar.

— Mais tarde Rukia viajará. Vai para uma excursão ao zoológico. — ele sentou na minha rocha sem meu consentimento, mas resolvi não tomar partido.

— Ah sim. A excursão do orfanato... — pensei comigo mesmo. — Mas espera, por que isso do nada? Está procurando alguma forma de me atacar secretamente, Kuchiki Byakuya?! — ergui o violão, colocando-o como um escudo.

O Kuchiki revirou os olhos, soltando o ar com lentidão.

— Idiota. — sussurrou, olhando para o céu. — Fazia tempo que não ouvia a voz de Rukia.

Pelo rumo que a conversa tomava, pensei que não havia risco dele tentar me bater, então relaxei a postura.

— Ela não é de falar muito, não é? — perguntei distraidamente, achando estranho ele conversar justo comigo sobre a Rukia. A RUKIA.    

— Não é esse o problema. — retrucou, com o azul dos olhos a obscurecer. — Passamos por muitas coisas até chegarmos aqui, Kaien. Eu não deixo que as pessoas se aproximem dela porque Rukia se tornou alguém sensível depois de todos esses problemas.

— O que houve? — perguntei, preocupado.

Byakuya ficou em silêncio, pensativo. Os nós dos dedos estavam rígidos.

— Quando éramos mais novos, Rukia e eu tínhamos uma família. Uma boa família. Tudo começou a se desmoronar quando nosso pai morreu em um acidente de carro. Ainda tínhamos nossa mãe, mas... — ele pausou, e pela primeira vez vi uma tristeza se espalhar em seu rosto. — Ela não aguentou a morte dele, não a superou psicologicamente... Minha mãe perdeu a sanidade pouco tempo depois e não sabia diferenciar família de inimigos. Um dia ela tentou matar Rukia, esganando-a. Se eu não tivesse chegado a tempo... Bem... Até que houve uma tarde em que ela tocou fogo na casa inteira com todos nós dentro.

— Ela morreu no incêndio?! — arregalei os olhos, perplexo com a história.         

Byakuya balançou a cabeça negativamente.

— Os bombeiros conseguiram apagar o incêndio antes que ele estivesse fora de controle... Então, resolveram internar a minha mãe. Disseram que ela era uma ameaça pra nós, os seus filhos. Com isso, fomos morar com a nossa avó, mas desde esses episódios, Rukia parou de falar... Vivia triste, pelos cantos. Diziam ser um trauma causado pela sequência que as coisas ocorreram. A levamos para vários psicólogos, mas eles não a curaram. Nenhuma sílaba. Nada. Ela continuava em silêncio. Ela tinha uns quatro anos na época e seis quando nossa avó morreu e tivemos de vir pro orfanato por não existir nenhum parente fora minha mãe... Até que... Você... — ele apontou pra mim como se estivesse se referindo a um saco de lixo ou algo do mesmo patamar de desprezo. Ok, não precisava menosprezar. — Você conseguiu fazer com que ela cantasse... Depois de todos esses anos. — por um minuto achei que Byakuya choraria.   

Fiquei chocado. Não sabia quais palavras eram mais apropriadas para serem encaixadas nessa conversa.

Byakuya não esperou uma resposta. Ele se levantou, coçando a nuca.

— Mandarei Rukia vir aqui pra se despedir. Não tente nenhuma gracinha, Shiba Kaien. — falou por fim, sem me direcionar os olhos. — Você tem a minha gratidão.

Engasguei com a saliva, tossindo freneticamente com a última frase. Ele estalou a língua e iniciou sua marcha de volta ao orfanato.

Continuei sentado, esperando. Ele estava falando realmente sério? E mais uma coisa... Eu não tinha noção que o passado dos Kuchiki era tão trágico... Rukia deve ter sofrido muito com isso tudo.

Eu desconhecia aquela sensação nova que se achegava em meu peito, fazendo-o bater forte com o despertar de um desejo. Eu queria dar um presente pra Rukia. Uma nova família... Uma família onde ela pudesse mais sorrir do que chorar. Um lar de verdade.

Ergui os olhos ao escutar o amassar da grama. Era Rukia.

— Rukia, eu... Deve ser difícil... — as palavras saíram sem eu ter percebido, sem um pensamento planejado. — Eu... — a fitei, decidindo, por fim, abraçá-la.

Apertei seu corpo contra o meu, pousando minha testa no espaço que existia entre o pescoço e o ombro de Rukia. 

Mesmo querendo abraçá-la por mais tempo, a soltei, notando uma de suas mãos a se aproximar de meus olhos, fechando-os.

A princípio, foi algo bem estranho, mas deixei que ela fizesse o que queria.

Algo tocou meus lábios. Eram quentes e macios. Mal pude organizar os pensamentos quando algo sussurrou em minha mente que aqueles, eram os lábios de Rukia.

De imediato, tornei a abrir os olhos. Ela... Ela... Isso estava acontecendo de verdade? Não era minha imaginação? 

Corei mais do que em qualquer outro dia ou ocasião.

Ela afastou os lábios dos meus, exibindo um sorriso singelo, mas visível. Seus olhos diferentemente de nossos últimos encontros possuíam um brilho distinto. 

Rukia recuou, voltando para o orfanato as pressas.

Eu fiquei sem ar, sem chão, sem nada. Parecia um idiota de boca aberta.

            Felicidade. Que palavra bonita. Eu me sentia como em um filme onde todos no cenário começavam a cantar e dançar de modo exagerado. Os passarinhos surgem e carregam seu paletó no ar. Você sapateia e uma luz surge, iluminando cada passo e direção que você toma.

Eu escolhi uma praça como palco do meu espetáculo particular, mas ninguém quis dançar ou cantar comigo.

Eu estava tão alegre que não percebi quando por acaso, tropecei em um garoto.

— Você está cego?! Já ouvi falar de pessoas que tropeçam em pedras, mas tropeçar em outras pessoas? Essa é nova! — grunhiu o garotinho mal humorado.

Eu tive uma surpresa. Nunca havia visto alguém de cabelos brancos.

— O que você está olhando? — rosnou, franzindo o cenho.

— Não é nada. Desculpe. — continuei a encará-lo, mas dessa vez, não por causa dos cabelos e sim por ter olhos semelhantes aos meus. Não me refiro a tonalidade, mas sim algo de dentro...

— Agora me deixe em paz. — ele virou o rosto para o lado, recostando em uma escultura bizarra que ficava no centro da praça.

— Por que está com essa cara, garotinho? Perdeu sua mãe? — pousei a mão nos cabelos dele, emaranhando-o.

Uma pequena veia saltou do alto da testa dele.   

— Garotinho?! Você vai querer sair daqui amigavelmente ou prefere que eu chute o seu traseiro até cansar? — trincou os dentes, contorcendo as juntas dos dedos.

— Bom, pra mim, nenhuma dessas duas opções parecem me agradar, então acho que vou ficar por aqui mesmo. — sentei-me ao lado dele sem ao menos ser convidado a fazer isso.

— Qual o seu problema? Por que não vai pra outro lugar?! — vi a impaciência brotar e ferver no semblante do garoto, mas não me intimidei.

— Eu gosto desse lugar. Você quer ir pra outro lugar? — indaguei, descarado.

— NÃO! Eu estava aqui primeiro. Se tem alguém que deve sair daqui, esse alguém é você! — protestou quase estourando.

Sorri animado. Havia algo naquele garoto que me instigava. Como se eu tivesse visto através de uma janela embaçada do futuro, em outras palavras, um déjà vu dos mais esquisitos. Se eu contasse a ele sobre essa sensação... a sensação de que eu deveria ser amigo dele, será que acreditaria? Ou melhor, ele acharia que sou normal e não um esquizofrênico? Não quis arriscar, afinal, se estivéssemos em lugares opostos, eu pensaria que ele era louco ou coisa pior, embora — no momento — eu não esteja muito longe desse conceito.

— Qual o problema em fazer novas amizades? Vamos lá. Eu não sou esse mala que você está pensando. — tentei diminuir a tensão que teimava em crescer entre a nós.

— Você deve ser bem pior. — bom sinal, ele desistira de me empurrar pra longe e agora se agarra aos joelhos.

— Qual o seu nome, garotinho? — interroguei.

Ele não respondeu.

— Certo, então vou te chamar de garotinho.

— AH! Você é um saco! — rosnou por pouco não arrancando os cabelos. — Hitsugaya Toushirou, está bem?!

— Ah, foi mais fácil do que pensei arrancar o seu nome.

— Seu...!

— E parece que você tem uma espécie de tabu em ser chamado de garotinho. — zombei, esfregando o nariz. — Muito bem, Toushirou, meu nome é Shiba Kaien. É um prazer.    

— Você não tem que me chamar por Toushirou. Não somos próximos! — rezingou, com os cabelos arrepiados.

— Gosto de Toushirou. Vou chamar assim. Sabe, tenho uma ótima ideia de como começarmos nossa conversa. Vou contar a você a minha história. Sou a grandiosa e lendária estrela cadente que desceu ao chão para aprender a ser humilde com os mortais e agora irá regressar rumo ao topo estrelado. — gesticulei, fazendo pose de alguém imponente.   

— Algum motivo o trouxe até aqui, astro-sama. Devem ter te chutado pra cá porque não era tão bom quanto as outras estrelas. — ele bufou, entediado.

As palavras ficaram na minha garganta.

Ele reparou no silêncio, fitando-me de um modo estranho, como se tivesse falado algo errado.

 — Você deve estar certo, Toushirou. Naquela época em que fui mandado pra cá... Bem, eu não era tão bom. Mas eu não nasci pra perder, então... — inspirei, olhando pro céu com um sorriso. — Espero que as outras estrelas sejam tão legais quanto eu.

— Você realmente fala muita bobagem... — sibilou num tom enfadado.  

— Hey, esse deveria ser o momento em que você começa a me admirar e seguir meus passos. — retruquei com um bico entre os lábios.

— Vai sonhando.

— Aprecio a sua força de vontade, Toushirou, mas agora vamos desenvolver essa nossa conversa de futuros amiguinhos.

— Eu nunca me tornaria seu amigo!

— O que você gosta de fazer? Gosta de música?

— Hey, você está me ouvindo? Eu disse NUNCA.

— Prefere punk, rock alternativo ou heavy metal?

— Pare de falar. Acho que meus ouvidos vão derreter. 

— Então vamos falar sobre mulheres gostosonas.

— Rock alternativo.

— Hm. Acho que esse é o início de uma bela amizade, Toushirou.

Voltando ao orfanato, não contava com um estardalhaço como o que estava acontecendo.

Vi uma locomotiva de bombeiros. Todos gritavam com euforia. As pessoas iam para direções opostas e iguais. Se enroscavam umas as outras. Algumas crianças choravam.

Eu fiquei perdido. Sem rumo, até que uma imagem me mostrou a direção exata que eu devia seguir.

Uma maca carregava Rukia. Vi Byakuya ao lado, segurando a mão mole e sem movimento.

Corri até lá, com o coração esmigalhado. Senti uma dor latejar no fundo. 

— O que está acontecendo?! — berrei, vendo a quantidade de sangue que escapava da pequena. — Rukia!

— Vocês têm que se afastar. — mandou um dos paramédicos.   

— Eu sou o irmão dela! — Byakuya se alterou, com o desespero nos olhos marejados.

O paramédico não quis ouvi-lo, fez um sinal para que outro o afastasse.

— Rukia!!! Rukia!!! — esperneou ele, sendo agarrado por não só por um paramédico.

— O que houve...? — sussurrei sem conseguir me mexer.

— Você não sabe, garoto? O ônibus que estava saindo desse orfanato se chocou com um caminhão que estava sendo dirigido por um motorista alcoolizado. Muitas crianças saíram feridas. Umas mais machucadas que as outras... — respondeu-me um curioso que observava a confusão. 

Tornei a focar os olhos em Rukia sendo colocada dentro da ambulância.

— Rukia... — murmurei, anestesiado pela cena.

Como a vida podia ser tão sarcástica? Uma hora, os bons momentos se encaixavam perfeitamente, eram os muros erguidos por um super-herói. Impossível de serem destruídos... Outra hora, como numa piada infeliz, esses momentos eram desfiados um por um, os muros demolidos e tudo o que sobrava era apenas chuva. A chuva que cobria o sol.

Eu respirei fundo. Naquele momento, senti um medo muito maior do que o medo de anos atrás, quando fui deixado aqui... Naquele momento, o meu maior medo era perder Rukia.  

            Uns dois meses haviam se passado desde o acidente. Era a hora de Rukia retornar ao orfanato. Infelizmente, dentre todas as crianças, ela fora a mais afetada. Teve de se recuperar lentamente no hospital por causa das várias lesões no crânio. Byakuya, sempre que pôde, fez questão de acompanhá-la no tratamento. Eu não era autorizado a ir. 

Em todo caso, o Kuchiki me contara sobre algo mais grave que aconteceu naquele acidente, mas como eu, ele não sabia dizer ao certo se era uma boa notícia ou não.

Rukia havia perdido a memória. Tudo tinha se esvaído. As lembranças ruins e as lembranças boas. Ela não sabia quem foi no passado. Byakuya me pediu pra nunca contar sobre seus pais. Ele julgou que essa seria a melhor escolha e eu concordei.

Eu aguardei até o momento em que a trouxeram de volta ao orfanato.

Ela estava diferente, parecia mais viva e livre de toda aquela carga emocional.

Esperei algumas semanas para que ela se reabitasse ao local até finalmente me reintroduzir em sua vida.

Olhando por outro lado, seria interessante conhecê-la de novo. Deixaria pra trás boa parte das idiotices que fiz tentando conquistá-la com aquelas lutas nunca ganhas contra o Byakuya.

A única parte que lamentei foi dela nunca mais se recordar do beijo que me deu...

Bem, pouco importava. Dessa vez, eu agiria como um verdadeiro herói perto de Rukia.

Eu a vi sendo espancada por uns imbecis por causa de um coelhinho. Essa era uma boa oportunidade para voltarmos a nos falar.

Peguei minha espada de madeira dada de presente por Ukitake-san no ano passado e avancei.

Quando terminei de chutar os traseiros de todos eles, cruzei os olhos com os de Rukia.

Ela me fitava com uma expressão confusa. Senti que aqueles olhos me reconheciam, mas ao mesmo não sabiam de que buraco eu tinha saído. Ah, era cômico.

Bom, no fim das contas, recomeçar nem sempre é tão ruim como as pessoas pensam, e você é a prova disso, Rukia. Você ganhou uma nova chance. Não a desperdice.

Estendi a mão e ela recusou de cara amarrada.

— Por que me ajudou? — perguntou ela com o cenho franzido.

Arqueei as sobrancelhas, disfarçando um sorriso.   

     Sabe Rukia, eu percebi algo. Mesmo que tudo ao redor se desmorone... Enquanto eu for o seu herói, enquanto você sorrir pra mim e depositar suas expectativas no que eu sou, eu não poderei perder, eu só terei que continuar minha trilha para o topo estrelado.  


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo eu volto com o dilema da quase morte do Kaien.
Sei que atrasamos um pouquinho, mas a partir dos próximos, começam os dois tipos de capítulos. Não percam! Até mais. ♥