Bonds escrita por frozenWings


Capítulo 19
Capítulo 19


Notas iniciais do capítulo

Lembrando a vocês que esse é o capítulo ICHIRUKI! E a partir desses próximos capítulos, ambas as linhas tomarão rumos diferentes, mas com semelhanças que irão crescer cada vez mais.
Espero receber comentários, ok? Boa leitura.



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No passado, o hospital central de Karakura já tivera dias mais tranquilos. Ruas mais limpas, pessoas mais civilizadas e higiênicas traziam menos doenças e consequentemente, menos pacientes.

Os cirurgiões de certificados e diplomas impecáveis mal eram convocados.

Viviam a míngua, resolvendo pequenos casos. Coisa de cidade pequena ou com muita gente sadia. Parecia que o padrão de vida em Karakura tinha dado um salto em tanto. 

Hoje, no entanto, se mostrava um dia diferente. Preenchido de correria e agitação.

Uma ambulância estacionou desengonçadamente, por pouco não ultrapassando o meio-fio. 

Os paramédicos se apressaram em retirar o acidentado estirado na maca.

Aquele era Shiba Kaien. Inconsciente, com os sentidos e batimentos fracos, mas surpreendentemente vivo.

Sim, fora até um descaso o estado do Thunder. Renji teve de ser contido para não espancar os paramédicos que se lerdearam em encontrar o local do acidente.  

Três paramédicos se agruparam em volta da maca, ajustando as dobradiças que criaram rodas, podendo assim transportá-lo melhor.

Rukia, Toushirou e Renji os seguiram com o pavor a refletir em seus rostos.

Rukia queria ser forte e não se desmontar em lágrimas. Ver Kaien carregado de tubos, aparelhos e fios a deixava atormentada, com a sensação de impotência. Hitsugaya até queria consolá-la, mas estava perplexo demais para o fazer.

Os paramédicos, bastante resolutos em como proceder, encaminharam Kaien por um longo corredor iluminado.

As luzes do teto passavam rápido. Era como estar em um filme de terror.  O futuro até então tão único e perfeitamente planejado se esfumaçara no atravessar daquele corredor medonho, cheio de medos e incertezas.

Um médico caminhava em direção contrária. Ele estava entretido com o estetoscópio aparentemente defeituoso; sua atração principal. Não descansaria enquanto não descobrisse o problema daquele aparelhinho. O cutucou algumas vezes, erguendo os olhos por entreouvir murmúrios e gemidos distantes do habitual silêncio que regia o hospital.

De início, mirou os olhos para o homem estendido acima da maca. Estava criticamente ferido.

Olhando por alto, julgou como um acidente de carro ou moto, talvez.

A quantidade assombrosa de sangue que vazava visivelmente de seu corpo indicava o ocorrer de uma hemorragia, pensou. 

Fitou-o com mais amplitude, explorando os detalhes faciais daquele homem que não parecia ter mais que seus vinte anos.

O formato do rosto, o cabelo revolto e a fisionomia... Não podia ser...

O estetoscópio deslizou por entre suas mãos, caindo no chão.

— Kaien?! — titubeou o médico, exaltando os demais.

Ele correu de encontro ao rapaz, guiando a maca com uma das mãos.

— Ukitake-san! — exclamaram Rukia, Renji e Toushirou, finalmente desviando a atenção para o grisalho.

— O que houve? Por que ele está nesse estado?  — indagou ele, juntando-se a eles.

— Ele foi atropelado... Tudo aconteceu muito rápido.  — Rukia apressou-se em responder.

Ao ter recebido a resposta, Ukitake girou a cabeça para os paramédicos, sondando-os.

— Eu mesmo irei tratá-lo. Contatem a minha equipe e... Peçam pra que Kuchiki Byakuya também esteja presente. — mandou, tendo dificuldades em manter a calma presa à voz.

Os paramédicos assentiram, afastando e separando-se da maca conforme Ukitake a introduzia dentro de uma sala apropriada.

Os amigos de Kaien se sentiram parcialmente aliviados por ser Ukitake a cuidar do moreno. Confiavam nas mãos dele.

Eles foram instruídos a permanecerem fora da sala. Com grande relutância, trataram de obedecer, ainda que estivessem em nervos, eufóricos em colherem notícias sobre o estado de Kaien.

Demorou alguns minutos até virem uns cinco médicos andarem em direção a sala. Dentre eles, Byakuya se destacava com um indisfarçável olhar perdido, como se não soubesse o porquê de estar ali.

Rukia fora a primeira a identificá-lo.

— Nii-sama! — o chamou sem perceber, mais por força do hábito.

Ele reconheceu a voz de imediato, parando.

— Rukia, o que está fazendo aqui? — indagou, de olhos fitos aos dela.

Só ouviu um soluço estremecer da garganta de Rukia, seguido de lágrimas que escaparam dos grandes olhos azulados.

Sem obter uma resposta, ele entreviu os rostos aflitos de Renji e Hitsugaya que lhe passaram uma remota sugestão.

— Kuchiki-dono, nós temos que entrar agora. — falou um dos médicos ao ter adequado suas luvas de látex em cada dedo, enfatizando na última palavra.

Byakuya obedeceu e, silenciosamente, entrou na sala.

Renji puxou do bolso o celular quente e úmido de suor, discando números.  

— O que está fazendo? — perguntou Toushirou, recostando na parede com a esperança de que aquilo espantasse a ânsia de vômito.

— Ligando para os outros. — respondeu o ruivo, num tom melódico.

Hitsugaya o olhou por mais alguns instantes. Renji pigarreou, virou as costas e escondeu o rosto. Mesmo que fraco, Toushirou podia ouvir o seu soluço seco e repreendido.

O grisalho suspirou, olhando fixamente para a luz alva aderida ao teto. Ela feria seus olhos, fazendo-os umedecerem.

As lágrimas também o haviam pegado.

Rukia permaneceu em frente a porta da sala, com as mãos juntas em oração, implorando por algum milagre, pra que aquilo não passasse de um terrível pesadelo e que logo seria acordada pelas palhaçadas matinais de Kaien.

Olhar para aquela porta e não saber o que acontecia deixava seu coração aflito, mais que isso, era como senti-lo espremido entre mãos implacáveis que se recusavam a parar.

A todo instante sua mente clareava uma visão assustadora. Os médicos abriam a porta, motivados a contá-la que Kaien não retornaria... Mas uma vida sem Kaien? Como algo assim podia acontecer? Não, não mesmo. Resigna-se a acreditar que isso ultrapasse uma brincadeira de mau gosto.

As horas passaram. Os outros Thunders, por sorte, dispuseram dos celulares ligados e com isso foram contatados.

O primeiro a aparecer foi Grimmjow. Ao saber do agente causador do acidente, o azulado amaldiçoou o pai de Kaien até não lhe sobrar mais voz. Teve uma reação mais agressiva que os demais, como previsto.

Queria catar o miserável do Takeshi em qualquer buraco que estivesse e espancá-lo, espancá-lo com vontade, mas fora orientado a se conter e manter a calma, pelo menos até saberem se haveria avanço ou não no estado de Kaien. 

O azulado se calou, sem mais álibi para seu falatório.

Os lábios tinham grudado e desde então, não murmurava sequer uma letra.

Hisagi, por sua vez, foi o mais sensível a notícia. Não tivera vergonha em demonstrar o abalo causado em si por conta da tragédia. Balbuciou, ditando os momentos antes do acidente, de como estavam felizes e que não acreditava que algo assim acontecera justamente com Kaien.

Ele não conteve as lágrimas histéricas e pela primeira vez, foi consolado por Grimmjow que ainda sim, preservou sua política sobre ficar muito próximo a homens. Foi delicado ao seu máximo. Mandou que o baterista sustentasse a calma ou ele seria o próximo a entrar no pronto socorro.   

Ulquiorra ficara em silêncio do início ao fim, às vezes dava a impressão de que fosse dizer algo, mas logo desistia. As palavras lhe faltaram por tentativas exaustivas em iniciar qualquer diálogo. Não tinha cara-de-pau suficiente para citar bordões de consolo e otimismo... Não no caso de Kaien.

Apesar do pouco tempo de convívio, o considerava um líder nato e mais que tudo, o respeitava, respeitava como um verdadeiro homem. 

Não queria que seu quadro se agravasse. Na verdade, mesmo que se incomodasse com a agitação exagerada que Kaien fazia questão de transmitir durante todos os ensaios, hoje, somente hoje, sentia falta das suas piadas e até brincadeiras fora de hora.

— Onde é que está o Kaien?! — exclamou Riruka, aparecendo como o principio de um furacão.

— Quem foi que chamou essa maluca? — interrogou Grimmjow, sem paciência.

— Maluca?! Por que não cala a droga dessa sua boca? — rosnou ela, puxando-o violentamente pela gola da camisa, mantendo um conflito visual.

— Estou aberto a sugestões. Por que não vem calar?! — trincou os dentes em resposta, com os azuis dos olhos intensos.

Tsukishima, que a acompanhava, sentiu a tensão saturada no ar, entrando no meio dos dois, separando-os.

— Essa não é uma ocasião propícia para brigas idiotas. — sibilou o moreno, tratando de colocá-los o mais distante possível um do outro. — Riruka, lembre-se do nosso propósito. Ele não envolvia confusões. — ele cerrou os olhos em uma expressão sugestiva.

A garota não protestou, embora ainda sentisse vontade de acertar a cara de Grimmjow, vontade essa compartilhada pelo próprio guitarrista.

— E quem foi que perguntou alguma coisa a você, seu grande palerma? — Grimmjow cuspiu as palavras, estufando o peito.

— Desculpe, Grimmjow-san, não queremos causar problemas. Por que não se acalma? — recomendou, ainda calmo, apesar de Grimmjow demonstrar sinais explícitos de agressividade.

Tsukishima se colocou em frente a Riruka, se precavendo no caso do azulado tentar alguma coisa contra a vocal. 

— Fique quieto, Grimmjow, sei que todos nós estamos nervosos, mas se não parar com esse showzinho, eu mesmo irei arrebentar a sua cara. — grunhiu Renji, por trásde suas costas, apertando-o no ombro.

O azulado estalou a língua, meneando a cabeça com desolação.

Ele deu meia-volta, se afastou e sentou em um canto onde pudesse se perder em seus pensamentos angustiados sem que alguém o tirasse do sério. 

Renji soltara o ar aos poucos, se encarregando de explicar a situação para Riruka e Tsukishima, alertando-os também que não aceitaria brigas e discussões naquele corredor. Caso o fizessem, ele mesmo os expulsaria de lá. Ele olhou especialmente para Riruka, fazendo com que ela entendesse cada sílaba pronunciada.

— Mas então, onde estão os outros? — perguntou o ruivo com a voz rouca.

— Estão fora da cidade. Foram comprar instrumentos novos. Não os avisei sobre o acidente do Kaien. — retrucou Tsukishima, afastando a atenção para Riruka.

Ela parecia desinteressada na pequena conversa.

Não fazia mais que sondar a porta e, volta e meia, seus pés se mexiam, aproximando-a em passos curtos, relutantes.

Não queria encarar a ideia de que Kaien estivesse do outro lado, desacordado, vítima da mesquinharia do próprio pai. Ele não merecia...

— Eu... — seus pensamentos foram cortados ao escutar a voz vacilante de Rukia que estava próxima.

Riruka a fitou, com as orbes trêmulas.

— Eu não merecia... — soluçou Rukia, num lamento pessoal. — Eu não merecia que Kaien-dono se sacrificasse tanto pra me salvar... Eu quem devia estar naquela sala... — debulhou-se. 

Ah, era verdade... Renji havia mencionado que Kaien salvara a vida de Rukia e por causa dessa ação, lá estava, preso na mais absoluta escuridão.

Riruka juntou as sobrancelhas, firmando os passos — quase os cravando no chão — até que chegasse Rukia, dando-lhe uma tapa que deixou a palma de sua mão dolorida.

Todos os outros escutaram o estalar, olhando imediatamente para as duas.

— Riruka...! — exclamou Tsukishima. 

A marca dos dedos brotou em forma de um vermelhão na palidez de Rukia.

A morena demorou alguns segundos até finalmente entender o que realmente havia acontecido, olhando assustada para Riruka que ofegava em sua frente, de cabeça baixa. 

— Não... — iniciou com a respiração entrecortada. — Não desmereça a vida que Kaien salvou. Se você fizer isso, vai parecer que... Vai parecer que... — gaguejou, parecendo sentir dor em formar aquelas palavras. — Que o sacrifício dele foi em vão. — ela finalmente ergueu a face, mostrando os olhos inundados de lágrimas. — E eu não vou deixar que você faça pouco do esforço de Kaien!

— Riruka... — sibilou Renji, sem vontade de recriminar suas atitudes.

Tsukishima foi o único a se aproximar da rosada, conservando o silêncio que os demais insistiram em manter.

Ele a abraçou carinhosamente, afagando os cabelos enquanto a pressionava contra seu peito, sentindo a camisa ser amassada entre os dedos da garota.

Uma vez ou outra escutava um choro solitário, que saia de modo furtivo, desejando não ser descoberto.

Tsukishima assim o deixou, limitando-se a interpretar o papel do seu porto seguro, onde as emoções tinham a liberdade de extravasar sem qualquer peso de explicações ou satisfações.

Rukia pousou a mão por cima da bochecha, analisando a si mesma.

Estava sentindo-se patética... Mas não podia evitar o desejo de estar no lugar que Kaien agora estava. Era o que mais queria. Era o que na realidade deveria acontecer.

Alguém limpou os resíduos de suas lágrimas, fazendo-a despertar de suas reflexões.

— Você está bem? — Renji perguntou — Quero dizer... Sobre o tapa que recebeu...

— Eu estou bem, Renji, não se preocupe. Mas Riruka tem razão. Eu devo parar de me lamentar. — a pequena engrossou a voz, camuflando a sua vulnerabilidade.

O silêncio se instalou novamente, opressor e irredutível. Como antes, ninguém fez menção em tirá-lo de cena. Pelo contrário, todos estavam muito amargos, trancados em si mesmos na espera do menor sinal de notícia.

E para a sorte ou azar deles, ela veio...

Ukitake abriu as portas, com a cabeça baixa. Puxou a máscara, passando os olhos pela boa quantidade de gente. Não sabia com quem deveria conversar, então optou por comunicar coletivamente, dessa forma não haveria alvoroço.

Enterrou as mãos nos bolsos do jaleco, preparando a voz casual que todo médico deve emitir em situações delicadas.

— Como está o Kaien, Ukitake-san?! — foi atacado inicialmente por Toushirou que estava sem mais forças para sustentar a seriedade aparente em seu rosto.

— O quadro ficou um pouco delicado, Toushirou-kun. — ele viu um aglomerado de pessoas se aproximarem dele, se adiantando em manter a ordem. — Eu peço a todos que fiquem calmos, por favor. É imprescindível que Kaien receba uma transfusão de sangue. O problema é o tipo de sangue que ele precisa... Como devem saber, AB- negativo é um grupo sanguíneo com um número de doadores muito limitado e, no momento, o nosso banco de sangue não possui esse tipo raríssimo. — ele viu as inúmeras expressões ficarem transtornadas, resolvendo jogar-lhes possíveis soluções. — Se encontrássemos algum parente ou alguém que apresentasse o mesmo tipo de sangue, provavelmente o salvaríamos... É importante que um doador se apresente o mais rápido possível. A vida de Kaien depende dessa transfusão.

— Não podemos contar com a família de Kaien. — murmurou Toushirou, cerrando os punhos.

— Nesse caso, então teremos que encontrar uma nova solução em sua outra família. — contrapôs Rukia, fazendo questão que aquilo ficasse claro a todos daquele corredor.

Ukitake repuxou um sorriso, compreendendo.

— Bom, o meu sangue é O+, não sou compatível. — comentou o médico, esperando mais manifestações.

— O meu é A+, infelizmente também estou descartada. — disse Rukia, não deixando-se abater pela aflição crescente.

— Eu nunca soube qual o tipo do meu sangue. — Grimmjow ergueu o dedo, fazendo os outros prestarem atenção ao que dizia.

— Entendo. Vamos fazer o seguinte, os que não sabem a qual grupo sanguíneo pertencem, me sigam. Tratarei para que o laboratório forneça os resultados o mais rápido possível. É uma chance, não? — ele pousou a mão por cima do ombro de Rukia que esboçou um sorriso.

Grimmjow, Toushirou, Hisagi e Renji se apressaram em seguir os calcanhares rápidos do médico. Os demais já sabiam que não poderiam ajudar Kaien, então cruzaram os dedos, torcendo para que os outros tivessem mais sorte.

Do outro lado da cidade, a tristeza parecia estar em um lugar longínquo, pelo menos assim era para Ichigo que recebera a notícia de seus testes no mesmo dia.

Para a sua alegria, tinha sido um dos novos contratados.

— E também, para novos escalados, Tachikawa Senna. — comunicou um dos instrutores, passando os olhos por uma lista.

— Ah, cara! Eu não acredito que consegui! Obrigada sensei! — agradeceu, mais escandalosa que qualquer um, fazendo uma de suas famosas dancinhas comemorativas.

— Fico surpreso que uma loja desse patamar venha admitir uma pessoa tão irresponsável e maluca como você. — zombou Ichigo, agora mais amigável com a garota, apesar de não parecer.

— Você só está com inveja, Ichigo! Inveja! — ela saltou, sendo contida pelo instrutor que a mandou ficar quieta antes que mudasse de ideia em relação a sua admissão.

Senna empalideceu, pedindo mil desculpas e voltando ao seu lugar.

Muitas pessoas riram, mas Ichigo se restringiu a expor a expressão entediada que costumava fazer quando alguém fazia coisas muito idiotas.

Ao fim do anúncio sobre os novos empregados listados, o instrutor os deixou à vontade para que conhecessem a loja onde trabalhariam.

Era uma loja de conveniência bastante extensa, repleta de seções, mercadorias e fregueses, principalmente, fregueses.

Ichigo não se espantou. Afinal, não podia ser diferente já que se situava no shopping.

Algumas pessoas aproveitaram a oportunidade para ligarem para seus familiares e respectivos parceiros, dando-os a notícia de que estavam empregados. A alegria era contagiante.

Ichigo mirou os olhos para Senna, estranhando que ela não ligasse para ninguém e nem ao menos comentasse sobre o assunto.

— Olhe essas fitas, que incríveis! Sinto vontade de comprar todas! — Senna encheu as mãos de fitas coloridas, deslumbrando-se com a variedade. 

— Hey Senna, não vai dar as boas-novas para ninguém? — ele apontou para os outros, indicando os celulares.

A garota repuxou um breve sorriso, coçando a nuca.

— Meus pais estão no trabalho. Não gostam de serem incomodados, então... — ela pareceu se embaraçar nas próprias explicações, mas resolveu tomar outro caminho que julgou ser sua válvula de escape. — E você, Ichigo? Não tem ninguém importante para ligar?

De imediato, a imagem de Rukia fora impressa em sua mente como uma fotografia e aquilo lhe trouxe uma angústia perfurante.

Desejava ligar para a pequena e contar sobre o seu mais novo emprego e de como estava feliz com aquilo, mas, certamente, ela ainda festejava o show dos Thunders.

Relutou com a ideia que martelava incansavelmente a cabeça.

Seu orgulho não o permitiria ligar. Repetiu a si mesmo, milhares de vezes, que não ligaria.

Não ligaria. Não ligaria. Não ligaria.

As mãos se mexeram por conta própria, ignorando o tão prezado orgulho. Elas descobriram o celular no fundo da bolso, discando de cor o número de Rukia.

Ele preencheu os pulmões com o máximo de ar que suportava, acalmando o coração saltitante.    

Senna o observou, achando que talvez estivesse diante de um esquizofrênico.

Nesse mesmo instante, o celular de Rukia quase a matou de susto ao vibrar.

A pequena se apressou em atendê-lo. Estava tão desconcertada que nem vislumbrou o número no visor.

— Alô. — suspirou.

— Rukia?! — perguntou um chiado masculino. Apesar da ligação estar péssima, pôde identificar a animação exaltada na voz.

— Quem é? — ela esfregou um dos olhos, sem muita paciência.  

— Como assim quem é?! Você não tem o meu número? Sou eu, Ichigo, é claro! — resmungou a voz, tornando-se reconhecível aos ouvidos da morena. — Escuta, eu sei que você ainda deve estar no show, mas só liguei para avisar que passei na seleção e sou um dos mais novos contratados!  

— Isso é bom... — ela retrucou sem emoção. — Ichigo, desculpe... Mas, não é uma boa hora.

Silêncio. Ichigo não sabia o porquê daquela resposta, mas também não queria articular uma pergunta, ou melhor, não queria descobrir o motivo que levou Rukia a agir com aquela frieza. 

— Desculpe. Acho melhor nos falarmos outra hora.

— Espere, Ichigo!

— O quê?

— Kaien-dono sofreu um acidente e agora está precisando de uma transfusão de vida ou morte...

Os resíduos da voz de Ichigo saíram em um estalo incrédulo.

— Como foi isso...? Que loucura, Rukia.

— Ele foi atropelado. Agora necessita de uma transfusão imediata de sangue AB- ou morrerá. — Rukia trancou um soluço, pigarreando.

— Espera aí! AB-? Esse é o meu tipo de sangue!

A morena esbugalhou os olhos, limpando a garganta.

— Isso é sério, Ichigo?! Você pode vir aqui nesse exato momento?!

— Mas é claro! Estou saindo do shopping agora. Estão no hospital do centro?

— Sim. É aqui mesmo. Por favor, Ichigo, não demore...

A ligação foi finalizada.

— Senna! Eu tenho que ir embora! Nos vemos quando começarmos a trabalhar. — Ichigo deu um aceno rápido, pegando a sua pasta.

— O que houve, Ichigo? — ela perguntou, o estranhando.

— Um amigo da minha namorada está no hospital. Necessita de uma transfusão e só eu tenho o tipo de sangue que ele precisa. — ele explicou por alto, apanhando tudo e finalmente correndo. — Preciso chegar lá o quanto antes, então até.

Para a sua surpresa, Senna o seguiu, correndo.

— O que está fazendo? — perguntou ele, se espatifando contra um homem pançudo. — Err... Foi mal! — ele não se demorou em assistir a raiva nos olhos do homem, tornando a correr.  

— Eu tenho uma moto! Posso te dar uma carona e assim você chega mais rápido pra ajudar o amigo dela! — ela suspendeu as chaves da suposta moto, pela primeira vez com um rosto sério.

— Obrigado... Senna. — o ruivo agradeceu, seguindo-a apressadamente até o estacionamento.      

— Ainda não me agradeça. Faça isso se chegarmos a tempo. — a garota saltou por cima da moto rubro reluzente, jogando um dos capacetes para Ichigo. — Segure-se firme.

Ele se acomodou atrás da garota, sentindo-se um tanto incomodado por ter de colocar os braços em volta da barriga da mesma.

— O que está esperando? Segure logo na minha cintura. — reclamou Senna, arqueando uma das sobrancelhas ao ver a relutância do rapaz.

— Desculpe. — corou, girando a cabeça pro lado ao tempo em que encaixou os dedos as extremidades de sua cintura.

O motor rugiu como um tigre furioso, tirando-os do estacionamento.  

Ela acelerou cada vez mais, por pouco não o arremessando pra fora da moto.

— Está muito rápido, sua maluca! Desse jeito vamos acabar batendo nos carros! — gritou Ichigo, com o vento açoitando as frestas do capacete, chicoteando os cabelos em seu rosto.

— Você quer salvar o seu amigo ou não?! — ela grunhiu, fazendo algumas manobras arriscadas entre umas fileiras e outras de carros no trânsito congestionado.     

— Ele não é meu amigo! Ele é amigo da minha namorada! — esclareceu, sem humor.

— Que detalhista numa situação como essa. — ela deixou um sorriso nervoso escapar dos lábios, quase perdendo o controle sob a moto. — Hospital central?

— Sim... Espero chegar a tempo...

Enquanto isso, Ukitake retornava com os resultados dos testes sanguíneos. Hitsugaya era o único a acompanhá-lo. Grimmjow, Hisagi e Renji haviam ido comprar comida. Àquela hora, mesmo sem vontade para comer, o estômago roncava em protesto.   

— Infelizmente, nenhum deles pode ajudar. — murmurou com tristeza.  

— Ukitake-san, eu acabei de falar com o meu namorado... Ele diz ter o mesmo tipo sanguíneo do Kaien-dono. — anunciou Rukia, esperançosa.

Ukitake quase soltou os papéis com a notícia.

— Isso é ótimo, Rukia-chan! Onde ele está? — indagou num alvoroço.

— Está a caminho...

Como por encanto, a expressão feliz do médico se desfez, retornando ao seu estágio anterior. 

— Compreendo... Não sei se teremos tempo suficiente... — ele sibilou, apreensivo, passando a mão pelos longos cabelos.

— Existe uma chance, não é?! Vamos confiar nela! — Toushirou se agitou, colocando-se em frente ao médico.

Não houve tempo de reação. A porta de cirurgias abrira novamente, atraindo a atenção de todos.

Kuchiki Byakuya saia do local, fitando especialmente os olhos de sua irmã, até finalmente dirigir-se para Ukitake, meneando a cabeça.

— Kuchiki-dono...? — Ukitake não quis captar a linguagem feita por sinais mais que sugestivos.

— Não há mais tempo. — ele sussurrou, puxando a máscara que cobria os lábios. — Ele conseguiu acordar. Essa é a melhor chance pra... — tornou a encarar a irmã, sem conseguir completar, ele indicou a entrada da sala mesmo sem autorização de seu superior.

Ukitake também não mostrara disposição em repreendê-lo.

Por um segundo, Rukia e Toushirou se entreolharam, correndo às pressas para dentro da sala.

Riruka, Tsukishima e Ulquiorra se detiveram. Por mais que desejassem encontrar Kaien, sabiam que o hospital não tolerava alvoroço.

Aceitaram que os pequenos fossem os últimos a verem Kaien com vida.

Colocando os pés dentro da sala gélida, nada os havia apavorado tanto quanto ver Kaien naquela cama. Fraco, distante da sua costumeira postura.    

Hitsugaya foi o primeiro a se mover, embora relutante. Ele marchou em silêncio, tocando uma das mãos de Kaien.

Rukia engoliu em seco, tomando coragem suficiente para encarar os próprios passos.

Ela se juntou a eles, tocando a mão esquerda.

Os olhos de Kaien estavam abertos. Úmidos e apagados. Acompanhavam com dificuldade cada esboço de reação dos amigos.

Mexeu os dedos, no que pareceu ser um aperto de mão.

Estava agarrado a seu melhor amigo e a mulher que amava.

E ficaram assim. Se olhando, em silêncio. As palavras não saíam. Não havia o que dizer para acabar com aquela lenta agonia.

Estava sofrendo, sim, Kaien sabia, mas não queria deixar evidente.

Uma vez por outra se demorava em cada um deles, olhando-os fixamente, como se quisesse gravar aquelas últimas imagens, embora não gostasse de vê-los tristes.

Rukia e Toushirou não se aguentaram. As lágrimas desceram em um riacho inconformado. Os soluços se fizeram como música de fundo.

Era mentira, não é? Kaien não poderia morrer. Não ele. Ele era o tipo de homem que você não imaginava morrendo. O tipo de homem imortal.

Kaien abriu e fechou a boca inúmeras vezes, mas de seus lábios não saiam nada além de murmúrios incompreensíveis, talvez palavras confortantes para que eles não chorassem.

Rukia inclinou a coluna, beijando-lhe demoradamente a mão, molhando-a.

O moreno esticou um sorriso fraco, enferrujado e sem o mesmo brilho de antes. Foi seu último sorriso naquele silêncio odioso. Morreu sorrindo. 

A máquina que marcava seus batimentos parou em um guincho torturante.

Rukia arregalou os olhos, sentindo o coração cavar o peito em busca de mais espaço. As costelas doíam ao perceber o quão real e concreto era aquele momento.

O estômago tinha levado um chute imaginário que lhe fez querer vomitar.        

Foi como a mais poderosa das anestesias.

Dor, tristeza, melancolia, ódio.

Nada disso a permeava. Foi um baque e tanto, ainda precisava de tempo para digerir, para processar, para aceitar. Seu cérebro tinha travado e nada que tentasse para sair daquele transe parecia surtir efeito.   

As lágrimas a devoraram.

Ela passou a mão delicadamente na palidez da bochecha de Kaien.

— Ele está tão gelado. — a voz vacilou junto com todo o corpo que tremia, ainda sem acreditar no que havia acontecido.

— Kaien! Você não pode morrer assim! Volte a vida, maldito! Isso não é justo! Por favor, VOLTE!!! — berrou Toushirou, forçando o peito do rapaz, como se estivesse impulsionando o coração para que voltasse a bombear. — O que eu farei sem você...?! KAIEN!!!!!!! — o grito rasgou suas cordas vocais, mas foi inútil.

Hitsugaya desmoronou ao lado do melhor amigo, apertando-lhe a mão enquanto afundava a cabeça em seu peito, gritando e chorando.

A dor se aprofundou em seu coração, rasgando-o.

Kaien se foi e nunca mais voltaria.

Fora da sala, um ruivo corria o máximo que suas pernas aguentavam, seguindo em rumo ao primeiro corredor que lhe apareceu na vista.    

Inicialmente, ele reconheceu a imagem de Riruka, aos prantos, depois viu Renji e o restante dos Thunders na mesma situação lamentável.

Ele diminuiu a velocidade dos passos, resfolegando.

Seu coração acelerou em pensar no que aqueles rostos indicavam. Se Senna não estivesse ao seu lado, talvez caísse ali mesmo, massacrado por suas próprias cobranças que o recriminavam por não ter sido mais rápido.  

Seria possível? Havia realmente falhado?    


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Notas finais do capítulo

E essa foi a resolução do tão esperado caso do Kaien.
Comentários, críticas, indignações?! Vou receber com gosto.