Aurora Boreal escrita por Maiah Oliveira


Capítulo 3
Laço




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Capítulo 1 - Laço

Sinceramente acho que há muito alarde sobre toda essa questão de morte e sendo alguém que já morreu de modo literal, posso dizer que não tem nada tão apoteótico como Hollywood adora mostrar, nada de mil coisas passando na mente ou de toda a sua vida passando diante dos seus olhos, que apesar de ter todo um charme e glamour, não condiz em nada com a realidade. Há muita dor pra você pensar em qualquer outra coisa, se bem que o meu caso foi particularmente doloroso, azarada como eu sou não podia esperar nada de diferente. Enfim, é isso, a morte não é nada demais. Morrer na verdade é muito fácil, o desafio está realmente em viver, para isso é necessário coragem. Mas eu não estava mais sozinha, havia alguém que precisava de mim, foi ele que me deu toda a coragem para tentar.

Joie Chevalier.

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Olhou desorientada a sua volta, algo a havia despertado, um barulho ensurdecedor que faria até um morto se levantar da sua tumba. Apesar de ser uma noite sem lua ela viu, porque era impossível não ver, o fogo brilhante como uma pira olímpica naquela escuridão profunda. E assim que compreendeu que era um carro que pegava fogo, aos poucos foi tomando consciência do seu corpo. Uma infeliz consciência, porque tudo o que sentia era dor por toda parte, por todo o corpo, era como se todos os seus ossos estivessem esmigalhados como pequenos cacos de vidro.

Talvez lembrasse vagamente da sensação estranha que era ter o corpo jogado numa posição tão insólita, tão antinatural e que isso por si só já dizia muito sobre a extensão das suas fraturas. Era muito pouco provável que se lembrasse daquele escarpado no meio do nada, do farfalhar das árvores, da chuva fina que caia em cima dela ou do quanto aquele lugar era bonito. Um belo lugar para se morrer! Mas naquele momento só havia dor, uma dor excruciante, principalmente em sua cabeça, tinha certeza que ela iria explodir a qualquer momento, a dor era tão forte que fechou os olhos instintivamente na intenção inútil de contê-la, queria gritar, rugir sua agonia a todo pulmões, mas só o simples ato de soltar leves gemidos lhe causava uma dose a mais de dor.

E ainda assim, no meio daquela névoa de dor ela soube o momento em que deixou de estar sozinha no meio do nada. Abriu os olhos em um ato reflexivo e viu o homem agachado tão perto de si que quase era capaz de sentir o calor do corpo dele, ele esticou sua mão para tocar seu rosto e ao invés da dor que ela esperava sentir, o toque dele foi um bálsamo inesperado, a dor tinha como por encanto desaparecido, como se ela jamais a tivesse sentido. E sem a dor sua mente começou a clarear e compreendeu que mesmo com toda a dor do mundo seria impossível não notá-lo. O homem que agora tocava seu rosto possuía uma atmosfera tão intensa de poder e força que era quase esmagadora. Quem seria ele? O que ele estava fazendo ali, com ela no meio do nada?

Concentrou sua atenção no homem e não mais na sua imponente presença, parecia ter por volta dos trinta anos, tinha os olhos quase negros e cabelos escuros que iam até o ombro e pareciam úmidos pela chuva, sua pela tinha um tom dourado, como a de um surfista e seu rosto era em poucas palavras, magnífico. Nunca tinha visto ninguém tão bonito, e olhando diretamente para os seus olhos podia afirmar que também nunca tinha estado perto de alguém tão letal, não sabia de onde vinha essa certeza, mas sabia que aquele homem era muito perigoso e podia matá-la a qualquer momento, se assim quisesse e tendo em conta seu estado, sabia que não ia conseguir oferecer qualquer resistência. Mas curiosamente não sentia medo, apesar dos olhos afiados e da postura séria, sentia... Não, sabia que ele não a machucaria. De onde vinha essa certeza, nem ela mesma sabia. Talvez fosse pela familiaridade do seu rosto... Sim, ela já o tinha visto em algum lugar, só não se lembrava onde.

Ele se debruçou um pouco sobre ela, como se verificasse suas condições, talvez fosse um médico, concluiu. No entanto deixou de contemplar qualquer possibilidade quando um barulho agudo e continuo, rasgou a noite, virou o rosto de lado e viu as luzes piscarem ao longe na estrada. Luzes coloridas, provavelmente de uma ambulância. Ia ser resgatada, suspirou aliviada. Observou como os paramédicos e policias começavam a descer o escarpado, provavelmente em direção ao carro queimando há alguns metros de distancia, eles ainda não a tinham visto, mas logo a achariam.

O homem também viu a movimentação, com isso tirando a mão do seu rosto e, logo que ela foi consciente disso, ele tinha desaparecido. Um segundo depois a dor voltou, como um trator sobre ela, mas forte e intensa que antes. Então ela parou de lutar contra ela e deixou-se afogar na escuridão.

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Estava flutuando, ou pelo menos, era assim que sentia, pois seus pés mal tocavam o chão, sentia seu corpo brilhar, um vento suave dançar ao redor de si e o melhor de tudo, não sentia mais dor, nenhuma dor, só paz. Encontrava-se em um túnel cheio de portas tão brancas como tudo ao redor parecia, mas curiosamente no fim do túnel havia uma porta aberta que tinha algo em seu interior que parecia brilhar mais forte que tudo, possuindo dentro dela uma luz branca leitosa.

Andou em direção ao fim do túnel totalmente atraída, algo curioso acontecia a cada passo que dava a seu objetivo, tinha a sensação de que estava perdendo coisas importantes ao longo do caminho, mas não se lembrava do que. Aliás, não conseguia se lembrar de muita coisa... Mas não importava. Nada importava! Só chegar à luz, sabia que quando chegasse tudo ficaria bem, tudo acabaria.

– Então é isso, vai desistir?

Estacou no lugar e deu um giro de quase 180º graus para seguir o som rico e profundo da voz desconhecida, só para encontrar com um rosto que parecia um tanto familiar. Mas de onde?

Deu um passo a frente curiosa então lembrou.

Era ele!

O homem que estava ao seu lado naquele escarpado e que, de algum modo estranho e surpreendente que nem sequer conseguia começar a compreender, aliviou todas as suas dores com um só toque.

Ele tinha um olhar intenso, que parecia atravessar a sua alma, enquanto esperava pela resposta.

– Do que você está falando? – disse devagar sem entender a intenção nas palavras dele.

– Da sua vida! – respondeu num tom duro.

– Da minha...

Ele se aproximou e foi então que se deu conta de quão alto ele era e do quão intimidante ele conseguia ser em toda a sua altura, quis dar um passo para trás e se afastar dele, mas antes que fosse capaz de cumprir tal tarefa ele segurou seu pulso e a prendeu no lugar.

– Não precisa ficar com medo. Eu nunca te machucaria! – havia quase uma suplica em seu olhar e foi isso que a convenceu.

– Quem é você? – sussurrou em parte curiosa em parte amedrontada com a resposta, de alguma forma sabia que era alguém importante para ela.

– Talvez o mais importante seja saber quem você é... – respondeu calmamente ainda a segurando no lugar.

– Quem eu sou? Eu sei quem sou! – respondeu automaticamente achando a pergunta ridícula por si mesma.

– Sabe mesmo? – ele arqueou a sobrancelha em descrença.

– Claro!

– Então me diga, qual é o seu nome?

– Meu nome?

– Sim. Acho que é uma pergunta simples o suficiente ou não?

– Sim... – havia um tom de insegurança em sua voz que ela odiou.

– Então... – ele sorriu de um jeito malicioso, como se as coisas estivessem seguindo o rumo que desejava.

Ela tomou aquilo como um desafio pessoal.

– Meu nome é... é...

– Não se lembra, não é? – o sorriso dele aumentou.

– É claro que me lembro!

É claro que se lembrava afinal era seu nome, nunca poderia esquecê-lo. Não, é? Não, é?

Forçou sua mente, seu nome estava lá em algum lugar escondido. Ele estava perto, sim... Muito perto, tão perto que quase podia sentir a palavra sair de seus lábios, mas ela não saiu. Não pode se lembrar. Balançou a cabeça, tentado clarear suas ideias. Mas não conseguia! Não conseguia! Não conseguia se lembrar de nada! Mas talvez...

– Você sabe, não sabe? O meu nome, quem eu sou... Não sabe? – disse num sussurro desesperado.

– Sei – disse calmamente.

Tinha chegado exatamente onde queria, agora ela o seguiria, até lhe dar a resposta. Ela podia não lembrar seu nome ou como chegara ali, mas isso não mudava quem ela era e ele a conhecia muito bem. Iria aonde fosse para conseguir o que queria.

– Então me diga! – pediu não aguentando mais esperar.

– Venha comigo! – deu um leve apertão no pulso que ainda estava em sua mão e a puxou levemente, tentando afastá-los da porta aberta no fim do túnel.

Ela o seguiu sem pestanejar, não importava o que ele fosse, ou quem fosse, só que ele desse a resposta que ela precisava ouvir.

Um, dois, três passos.

– Qual é seu nome? ... – pediu ele como se soubesse que agora obteria uma resposta.

– Eu não... – começou a dizer que não se lembrava, mas então agora isso não parecia o certo – Jo... Joie – disse como se a palavra fosse arrancada de sua mente.

Não, isso não era o certo. Aquele era seu apelido, agora se lembrava. Seu nome na verdade era...

– Josephine – o nome fluiu dos seus lábios inesperadamente.

Lembrava-se de que se incomodava um pouco com o nome, não parecia dizer quem era diferente do seu apelido que era leve e engraçado, mas o que detestava era seu primeiro nome... Eleanor. Era um nome bonito, decidiu, mas algo sobre ele a incomodava profundamente, a fazia se sentir mal.

Deu inconscientemente outro passo em direção ao homem, enquanto tentava se concentrar nos motivos de sua repulsa, sim era esse o sentimento, sentia repulsa por aquele nome. Ouviu o desprezo na voz enquanto aquele nome, Eleanor, era pronunciado e reconheceu a voz e com aquele reconhecimento, vieram mais lembranças, muitas delas, que a atingiam como laminas a fazendo sangrar por dentro.

Estava tão concentrada no seu inferno particular, que eram as suas lembranças, que não se deu conta de que continuava a andar junto com o homem para longe da porta no fim do corredor. As lembranças a assaltavam por toda parte e doía tanto, mas nada doeu tanto quanto se lembrar de Danielle...

– Não! – parou. Tentando impedir a memória de chegar até ela.

Não queria se lembrar, não queria reviver sua lembrança mais dolorosa e enfim se deu conta do que estava acontecendo. Ela estava recordando seu passado, estava se lembrando de quem era, estava recuperando suas memórias. Era isso que tinha perdido ao longo do caminho, que havia percorrido antes sozinha.

Sentiu ser puxada levemente pelo homem que ainda segurava seu pulso.

– Não... – repetiu olhando para ele – Eu não quero, não posso... – sua voz saiu num sussurro angustiado, enquanto olhava para baixo fitando qualquer lugar em branco que seus olhos pudessem alcançar, desejando que sua mente ficasse tão em branco quanto aquele lugar.

– Você pode. – disse firme, entendendo o que ela queria dizer. Mas não ia permitir que ela retrocedesse agora que estavam tão perto de conseguir o que ele queria. Seus olhos a fitaram tão insistentemente que não teve outra opção a não ser olhar para ele, seu rosto pétreo tinha um olhar que a desafiava – Você vai. Tenho algo importante para te mostrar! – a voz adquiriu um timbre suave, irresistível, instigante.

No estado que se encontrava, tão frágil pelas lembranças que a assaltaram tão inesperadamente, foi impossível resistir, mesmo que em alguma parte de si soubesse que ele tinha tomado o controle de sua vontade em algum nível. As memórias não a abandonaram, mas Joie não conseguiu mais ter força suficiente para parar ou tentar impedir o inevitável.

Joie não resistiu mais às lembranças, boas ou ruins, ela deixou que a invadissem, as aceitou e de algum modo elas se tornaram mais suportáveis ao longo do caminho. Se tinha sido porque ela não resistia mais a elas ou se pela presença daquele homem ao seu lado, que tinha se aproximado mais dela e apertado reconfortantemente seu pulso, quando retomaram o caminho, Joie não sabia. A única coisa da qual teve consciência, foi de que em algum ponto do caminho, as memórias deixaram de doer e invadir, para se tornarem parte dela mesma como sempre foram e não mais a incomodaram. Então Joie fez o que sabia fazer de melhor, trancou todas as suas recordações ruins e não deixou que elas a influenciassem ou machucassem.

Eles caminharam até chegar a uma porta de madeira cor de mogno, que ela só havia notado agora. Ele abriu a porta se colocando atrás dela com as mãos em seus ombros, quase protetoramente e então entraram na sala.

Joie não sabia o que estava por vir, mas certamente não esperava entrar em um hospital, quando deu um olhar de relance para a porta que eles tinham acabado de atravessar só encontrou uma parede branca. Deixou-se guiar com certa curiosidade e um pouco de medo. Andaram por alguns corredores, até começarem a encontrar pessoas no caminho, mas as mesmas seguiam seu caminho ignorando a presença dos dois estranhos, como se eles fosse invisíveis e talvez realmente fosse esse o caso, concluiu Joie.

Quando eles finalmente atravessaram o que pareceu ser a última porta, Joie teve um dos maiores choques da sua vida. Talvez devesse ter cogitado essa possibilidade depois dos últimos acontecimentos, mas não tinha tido tempo de se debruçar muito sobre os motivos que a fizeram estar em um corredor vazio, de como tinha se esquecido de toda a sua vida ou de como agora estava no meio de tantas pessoas sem ser vista. Mas o motivo estava ali, deitado em uma cama de hospital, assistida por diversos médicos e presa a vários tubos, estava ela, ou melhor, seu corpo.

Os médicos estavam frenéticos em sua volta, o som agudo e constante vindo das máquinas ligadas ao seu corpo e que Joie conhecia tão bem, dos vários seriados e filmes que já tinha visto, indicava que seu coração tinha parado de bater e explicava a conduta dos médicos que tentavam ressuscitar seu corpo sem vida.

– Então é isso, estou morta! – disse olhando seu corpo estendido na maca, sendo cercado pelos médicos e o som agudo da máquina, confirmando sua sentença.

– Esse é apenas um jeito de ver as coisas! – disse o estranho com um sorriso enigmático.

O olhou por um segundo intrigada com a sua afirmação, para logo depois jogar sua atenção novamente ao seu corpo.

Era isso, estava morta. Simples assim, normal como qualquer outra fato da vida. Não se sentia desesperada por saber da notícia, como talvez fosse normal para a maioria das pessoas, simplesmente aceitava como algo natural, algo esperado.

Depois do choque inicial, passou a olhar desapaixonadamente os esforços dos médicos em trazê-la de volta. Joie se sentia desconectada de tudo, na verdade por anos tinha se sentido assim, não havia motivo para lamentar sua morte, muito menos quando já não sentia dor alguma, o único fato que sempre a assustara na ideia de morte.

Sabia que não haveria muitas pessoas que sentiriam sua falta, as poucas que sentiriam também superariam logo essa perda e ainda haviam aquelas que ficariam aliviadas e até felizes com a sua morte. Pessoalmente Joie tampouco lamentava a sua morte, não havia pessoas com quem se sentisse ligada o suficiente para não querer abandoná-las ou se separar delas. Na verdade não havia ninguém em sua vida por quem valesse à pena lutar para se manter viva. Ninguém que precisasse dela, ninguém de quem ela precisasse em vida.

– Você está errada! – quase se assustou com a voz do homem logo atrás dela, estava tão perdida nos seus pensamentos e na visão do seu corpo destroçado em cima daquela maca, que tinha esquecido que não estava só.

Antes que pudesse perguntar sobre o que estava errada, ele respondeu.

– Existem pessoas que precisam de você... – o olhou com clara descrença – melhor dizendo que irão precisar muito de você – isso captou sua atenção como ele esperava – Uma em especial. Ele não sabe o quanto precisa de você, mas precisa e você também precisa dele com igual intensidade.

Ficou surpresa com a resposta dele, não podia negar afinal ele de algum modo tinha lido a sua mente e dito algo que ela não esperava que mesmo não admitindo, queria muito ouvir. Desviou seu olhar do dele, na tentativa de ocultar seus pensamentos e observou seu corpo em silêncio. Não, ele muito provavelmente estava mentindo, desde que ele tinha aparecido, parecia querer salvá-la, por motivos que ainda lhe eram desconhecidos, mas duvidava muito que não houvesse várias outras intenções por baixo dessa atitude tão altruísta da parte dele.

– Estou dizendo a verdade! – disse irritado – Existe alguém no mundo real, no mundo que você quer abandonar que precisa de você desesperadamente.

– Me prove se é verdade então! – respondeu ainda olhando o seu corpo em uma clara amostra de que não acreditava que ele poderia fazer algo a respeito. Mas aparentemente estava errada.

Ele se aproximou de Joie sem ela se dar conta e tocou sua fronte com uma das mãos e foi então que sentiu. Uma dor tão forte e inesperada que roubou seu fôlego e quase a pôs de joelhos. Era uma dor que não a pertencia, o sentimento era conhecido, corrosivo, esmagador. Rejeição. Ele, sim era ele, um garoto, um rapaz ou um homem, não soube determinar com certeza. Estava tão perdido, tão desolado. Ele a amava muito, mais do que ele tinha gostado de qualquer garota, mas ela não o amava o suficiente, nunca o suficiente para ficar com ele e não com o outro. Ela tinha escolhido o outro ao invés dele, mesmo tendo praticamente implorado para ela ficar, ela tinha partido, atrás do outro que só a tinha feito sofrer.

E machucava, machucava tanto, mais do que qualquer coisa que já tinha sentido, mais do que tê-la afastado quando achou ser necessário, porque na época sabia que a estava protegendo, mas agora era muito pior, ela estava correndo em direção à morte, ela queria morrer para ficar com o outro para sempre e ele não podia fazer nada, não podia impedi-la ou prendê-la. Era escolha dela, não podia interferir. Estava sozinho agora, sabia que viva ou morta ela não seria sua, ela tinha feito sua escolha.

E Joie sem perceber chorou por ele, pelo seu sofrimento, como ela há anos não se permitia chorar. A miséria e solidão dele eram velhas conhecidas dela, mas saber que isso vinha dele tornava esse pesar estranhamente maior, incrivelmente lancinante. Ela já tinha se acostumado tanto àqueles sentimentos que achou que estivesse anestesiada deles, mas as emoções vindas do garoto pareciam reverberar no seu corpo e produzir um som alto. O sofrimento dele ecoou no seu coração. Queria dizer, queria gritar que ele não estava sozinho.

Então naquele momento aconteceu algo estranho, a sua dor a muito guardada pareceu se misturar a dele, como dois solos de uma mesma música, elas se uniram e se tornaram um dueto melancólico, mas ainda sim um dueto, nenhum dos dois se sentiu só, um tênue laço tinha se estabelecido, então ouve um momento de paz nos dois lados desse laço e depois o sofrimento de ambos amainou.

O homem removeu a mão da fronte de Joie e rompeu o contato bruscamente. Ela olhou assustada, desejando se sentir unida novamente àquele garoto fosse quem fosse, mas ficou mais calma quando ainda pôde sentir o laço que agora os unia, ele estava lá do outro lado e aquilo a confortou. Sabia que também o confortava. Não estavam mais sozinhos.

– E então o que você escolhe? Lutar ou desistir? – o homem perguntou de uma forma quase arrogante como se soubesse a resposta.

Fechou os olhos sentindo o laço, o tocando mentalmente, era bom se sentir ligada, não se sentir mais só, ele precisava tanto dela e Joie era humilde o suficiente para saber que ela precisava dele na mesma medida, nunca ninguém a tinha necessitado e há muito tempo ninguém se importava com os seus desejos ou sonhos, e sabia mesmo sem conhecê-lo ou ver o seu rosto, que ele se importaria, que ele a entenderia como poucos.

No entanto... Olhou em direção à porta que haviam atravessado, do outro lado havia alguém que amava e que queria desesperadamente encontrar e agora finalmente... Mas então esse garoto, essa pessoa da qual nem sabia o nome precisava dela, precisava tanto, sentiu como um presságio que ele estaria perdido sem ela.

Por um momento tinha cogitado que tudo tinha sido uma mentira, um engodo desse homem que parecia empenhado em mantê-la viva, mas não havia mentira nos sentimentos do garoto, era tudo genuinamente verdadeiro e ela não podia ignorar ele. Se escolhesse lutar será que Danielle ficaria muito magoada por ela escolher um estranho a ficar com ela?

– Ela não vai! – o homem disse com voz calma – Ela vai se sentir orgulhosa de você, como sempre se sentiu.

Mordeu os lábios, incerta de confiar nas palavras dele.

– Se não pode acreditar nas minhas palavras acredite no que digo agora, ela vai sempre te esperar, não importa quando você venha.

Isso sabia que era verdade, Danielle a amava, esperaria o quanto fosse para se reencontrarem assim como ela própria faria.

– Você sabe que ela nunca colocaria a felicidade dela acima da de outra pessoa. Se tiver alguém que precisa de você, Danielle abriria mão da sua companhia para que você pudesse ajudar essa pessoa! – ele deu o golpe final convencido de que ela aceitaria suas palavras como a verdade que eram.

Joie não pôde contestar suas palavras, Danielle era exatamente esse tipo de pessoa por isso a amava tanto.

– Eu vou lutar! – disse resoluta.

Ele soube esconder muito bem sua satisfação, deu um passo atrás saindo de seu caminho e estendeu um braço amplamente como se dissesse que ela podia passar.

– Você sabe o que fazer.

E curiosamente ela sabia. Com um conhecimento e uma certeza que ela não sabia possuir até aquele momento, ela andou até a maca de hospital passando através de alguns médicos. Eles pareciam ter desistido de ressuscitá-la, mas não se importou, o que tinha que ser seria, ela estava fazendo a sua parte, caberia ao destino fazer a dele. Tocou seu corpo inerte na maca. 'Alea jacta est'¹ pensou um segundo antes de ser envolvida por uma luz cegante.

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Notas finais do capítulo

¹'Alea jacta est' (grafia em latim: Alea iacta est) significa, em português, "Os dados estão lançados", mas traduzido comumente como "A sorte está lançada. [1] Na linguagem popular, é uma expressão utilizada quando os fatores determinantes de um resultado já foram realizados, restando apenas revelá-los ou descobri-los.



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