Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 4
Capítulo 3




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    Pronto! Era só o que me faltava! Tem como a minha vida ficar melhor? Sinceramente, que pecado hediondo eu cometi na última vida para agora estar comendo o pão que o diabo amassou? Sério, eu devo ter tacado pedra no papa, pichado a muralha de Jericó, ou coisa ainda pior para merecer o encosto que é esse Paulo Chermont! Esse monitorzinho de quinta resolveu colocar “infernizar a vida da aluna nova” na sua lista de atividades. Ok, confesso que fui total uma megera ontem à noite, na minha “estréia” nesse colégio estúpido (não que eu me arrependa, claro, eu até gosto de ser uma megera). Mas ele precisava levar tudo como uma afronta pessoal? Eu estava sendo uma vaca com todo mundo, fazendo pouco das regras idiotas de modo tão descarado, mas não tinha nada em especial contra ele. Tá, talvez eu o tenha chamado para o braço, mas nós nem chegamos a esse ponto nem nada. Quer dizer, se eu tivesse pelo menos quebrado o nariz do infeliz, entenderia todo esse ódio acumulado.

    Honestamente, Paulo Chermont precisa de uma terapia.

    Ou ele deveria simplesmente bater em alguém, para extravasar tanta energia negativa. Não que eu esteja me oferecendo para apanhar, meus rosto já é bastante ruim sem um olho roxo e um nariz torto para enfeitar.

    Além disso, duvido que aquele monitor de quinta bata numa garota, mas mais por medo de apanhar dela do que por ser cavalheiro. Ah, garotos certinhos são tão previsíveis. Aposto que ele morreria de vergonha de apanhar de mim.

    E isso é o que vai acabar acontecendo se ele continuar com essa palhaçada toda de implicar comigo. Quem aquele idiota pensa que é para me colocar de detenção logo no meu primeiro dia de aula? Não que eu não esteja acostumada com castigos, na verdade eu sou mandada para a detenção tantas vezes que já nem lembro de me importar. E não é como se eu tivesse muita coisa para fazer além de odiar a minha vida, assistir aulas estúpidas e ficar olhando para o teto do meu novo quarto.

   Os problemas mesmo são dois: normalmente quando eu sou mandada para o castigo, é porque eu mereço mesmo, e não porque um moleque estúpido não curte a minha cara. Além disso, eu sempre fui mandada para a detenção por professores, inspetores e até diretores – quando a coisa ficava feia mesmo. Mas nunca, nunca, por um pivete mal amado, arrogante do capeta, metido a monitor, que deve ser, no máximo, um ano mais velho que eu, mesmo que seja bem uns vinte centímetros mais alto, e olha que eu ando por volta dos 1,70m.

   É, além de idiota, arrogante e metido, o desgraçado ainda é gigante. Coisinha anormal.

   Pena que esse anormal é tão bonitinho, com aquele cabelo onduladinho fofo, aqueles ombros largos e aquelas duas safiras brilhantes no lugar dos olhos...

   Credo! O que eu to pensando? Ah, por que os bonitinhos nunca prestam? Ou são certinhos demais ou malvados demais, nunca estão no ponto.

   Não que eu me importe, sério.

   Como se eu realmente fosse ficar perdendo meu tempo pensando naquele monitorzinho de quinta, principalmente quando tenho muitas outras coisas com que me preocupar, tipo como chegar até o fim do dia sem matar ninguém.

    Eu posso até ser um pouco agressiva de vez em quando, o que pode explicar por que fui expulsa dos três últimos colégios em que estudei, mas nunca tive vontade de fazer ninguém engolir a apostila de botânica. Até que cheguei na porcaria deste colégio e esses malditos caipiras começaram a ficar me encarando como se, a qualquer momento, fosse nascer um braço no meio da minha testa ou coisa parecida.

    O que me leva de volta ao desgraçado do Chermont. Que teve a audácia de me mandar para o castigo só porque eu me atrasei para o café da manhã. E o pior não é nem isso. Além de ter que ficar retida durante uma hora depois que as aulas acabarem, o safado ainda me mandou para a sala de detenção antes mesmo de a aula começar. Isso mesmo, ele nem me deixou entrar no refeitório e eu acabei sem café da manhã!

   E isso tudo por causa de um atraso insignificante! Absurdo, eu sei, e eu realmente quis tirar aquele sorrisinho cínico da cara daquele otário com um soco, mas havia testemunhas demais no local e de qualquer jeito eu estava sonolenta demais para realizar qualquer movimento mais complexo que bocejar. Por isso não fiz nem disse nada.

   O que foi um erro, agora eu percebo. Eu não devia ter ficado lá, calada e com cara de sono, aceitando todo aquele abuso de poder. Agora mesmo que o Chermont vai querer me fazer de gato e sapato. E sabe o que mais? A culpa do atraso nem foi minha! Eu realmente não funciono de manhã e, apesar dos sinos da igreja terem me acordado (eles começaram uma badalação dos infernos às seis da manhã, seis da manhã!), eu demorei muito para ficar pronta porque, e é uma desculpa totalmente aceitável, eu tive que esperar todas as garotas do andar saírem do banheiro (nem morta que eu ia ficar por aí pelada na frente delas) e ainda me compliquei para vestir a meia calça. A última vez que eu fiz isso deve ter sido na minha colação de grau do primário.

   O que me traz uma pergunta à cabeça. Qual é o problema que essa escola tem com jeans? Até mesmo aquelas calças horrorosas de moletom, que ficam parecendo pijama, seriam uma opção melhor que meia calça que, além de ser desconfortável, não é muito eficiente contra o vento frio. E eu nem vou contar a novela que é ir ao banheiro com essa coisa.

   Ah, e ainda tem o problema da saia. Para falar a verdade, eu nem lembro a última vez que usei uma. Como a gente pode se sentir confortável usando saia?! Tem que ficar o tempo todo se preocupando em sentar com as pernas fechadas e tudo isso. Que inferno!

    Com todas essas coisas, até me surpreendi por não estar mais atrasada, só uns dez minutos. Nem sequei meu cabelo para não me atrasar mais e agora ele está encharcando as costas do meu uniforme até alcançar minha pele, me fazendo ficar toda arrepiada. E mesmo assim, aquele monitorzinho imundo me deixou de castigo, sem café da manhã!

    E agora estou numa sala úmida e fria, sozinha (pois os outros alunos dessa escola são perfeitinhos demais para serem mandados para o castigo) e com o estômago implorando por comida, já que fiquei sem jantar e sem café da manhã, tudo graças ao maldito Chermont. Junte o frio, a fome e o meu cabelo molhado nas costas...eu juro que, se ficar resfriada, vou fazer questão de tossir bem na cara dele!

   Era só o meu primeiro dia de aula e eu já estava no meu limite. Na noite passada, cansada e com raiva, havia caído no sono antes que minhas “colegas” de quarto voltassem do refeitório e, nessa manhã, elas se vestiram e saíram antes que eu pudesse acordar totalmente para dar uma boa olhada nas duas. Só o que eu sabia – porque só sendo muito míope para deixar de perceber – era que uma delas, que era magrinha e alta, tinha os cabelos curtos e repicados, pintados de um berrante rosa-chiclete. Nem me surpreendi por nenhuma das duas ter me dirigido à palavra.

    Estava quase cochilando na minha cadeira do castigo quando o sinal tocou e eu me arrastei lentamente para a minha primeira aula que, de acordo com o horário que as freiras me deram ontem, era matemática com o professor Hertzog, no segundo andar. Ótimo, a aula perfeita para o meu estado de espírito. Era mesmo só o que faltava.

    Cheguei à sala antes que o resto dos alunos, porque a sala do castigo era bem mais perto que o refeitório, e escolhi uma mesa bem no fundo, logo embaixo da janela alta e estreita, que estava aberta, brindando meus olhos com uma paisagem linda do bosque e, mais embaixo, da cidade que, de longe, parecia até bem charmosa. Quase compensava o fato de eu ter acabado na trajetória do vento gelado que vinha de fora diretinho nas minhas costas. Mas quando percebi isso já era tarde demais, os outros alunos já estavam chegando e, sabiamente, sentando em mesas longe das janelas.

    Reconheci, numa mesa não muito distante de mim, minha colega de quarto de cabelos cor-de-rosa rodeada por outros estudantes, conversando e rindo alto. Percebi que, apesar do cabelo exagerado, a garota era muito bonita. Rosto fino, boca e nariz pequenos e grandes olhos azul celeste, um tom bem diferente do meu azul acinzentado. Como já havia reparado antes, era bem alta, a menina mais alta da classe, mas era muito graciosa. Além de ser tão obviamente popular. Era impossível não reparar em como ela monopolizava as atenções de todos, com aquele jeito confiante e esnobe típico desse tipo de garota.

    Reconheci a menina sentada ao lado dela como minha outra colega de quarto. Era bonitinha, de um jeito abandonado, frágil. Pequena, pálida, cabelos castanhos longos e lisos e opacos olhos marrons. Apagadinha ao lado da amiga exuberante e linda. Se é que as duas eram amigas, porque apesar de sentarem juntas, se ignoravam totalmente. Na verdade, a menor parecia detestar toda aquela atenção que a outra recebia e que acabava respingando nela.

    Passei os olhos pelos outros estudantes, sem me prender muito em nenhum, até que percebi que não era a única isolada na sala. Fosse solidão auto-imposta ou não, o negócio é que ele parecia estar mais sozinho do que eu. Será que também era novato? Era só o que vinha na minha cabeça para explicar porque todos o ignoravam, pois o garoto era lindo. Não a beleza bronzeada, forte e iluminada daquele monitorzinho meia boca, tipo garoto Califórnia. O garoto solitário parecia ser um pouco mais alto que eu (não dava para ter certeza porque ele estava sentado), esguio sem ser magrelo e tinha cabelos negros e bagunçados que chegavam quase aos ombros e emolduravam um rosto delicado e pálido, mas com certeza muito bonito.

    Estava do outro lado da sala, com a cabeça encostada na parede e os olhos fechados, tão relaxado que parecia dormir, o que não devia ser muito fácil, já que a sala estava barulhenta, a voz esganiçada da menina de cabelos cor-de-rosa era a que se ouvia mais clara e frequentemente. Mas nada disso parecia perturbá-lo.

   - Sentem-se todos – disse uma voz grave. Devia ser o professor e acabava de entrar na sala. Estava tão entretida com o garoto solitário que nem reparei. Mas agora dava uma olhada melhor nele. O professor Hertzog era baixinho, magro e franzino, devia beirar os 40 anos, mas já começava a ficar careca, e parecia meio irritado. Talvez por isso seu cabelo estivesse caindo.

    É lógico que não fui com a cara dele. Não gosto de professores e não gosto de matemática. Matemática simples, qual o resultado?

   Todos se sentaram imediatamente e a sala caiu em silêncio enquanto o professor começava a fazer a chamada. Um silêncio incomum e anormal, pelo menos para mim. Qual era o problema dessas crianças? Pareciam robôs, todos quietinhos, não dava nem para ouvir as respirações, completamente diferente de minutos antes, quando a sala estava em rebordosa. A mudança era assustadora.

    - Gabriel! Gabriel! – berrou o professor, arrancando-me dos meus pensamentos. – Alguém acorde esse menino!

    Então o nome do garoto solitário que eu estivera observando era Gabriel, como o anjo. Decidi que combinava com ele.

    Gabriel levou um cutucão de alguém e acordou. Seus olhos eram incríveis e eu fiquei fascinada por eles. Profundos e negros, tão negros que era impossível distinguir a íris da pupila. E que se destacavam naquele rosto pálido. Por um momento fiquei hipnotizada por eles, eram olhos tão profundos, mas do tipo que você não consegue enxergar nada além da superfície, perfeito para esconder segredos. Gabriel deve ter sentido meu olhar, porque virou repentinamente para mim, fitando-me de maneira perturbadora por alguns segundos, até que eu desviei a cabeça para o outro lado da sala.

    O professor continuou com a chamada e parou quando chegou ao meu nome.

    - Julieta – disse, lentamente, varrendo a sala com os olhos até pousá-los em mim. – A aluna nova, certo? Por que não vem até aqui se apresentar à turma?

    Ah, só podia ser sacanagem. Esse cara obviamente não estava sabendo de ontem, certo? Dane-se, nem morta ia aguentar aquela humilhação de ficar ali em pé, me apresentando à turma, como se todos já não soubessem quem eu sou.

    - Obrigada, professor, mas essa eu passo – respondi, tentando ao máximo não revirar os olhos nem fazer muita cara de nojo.

    Devo registrar que a reação das pessoas foi totalmente exagerada e despropositada. Quer dizer, eu não mandei o senhor Hert ir matar a mãe dele ou coisa do tipo, não que eu não tivesse vontade, mas não queria passar mais uma hora no castigo só para deleite do Paulo.

    Além disso, eu fui educada! Eu até disse “obrigada”, isso não é sintoma de educação? Vou te contar, a galera dessa escola é totalmente absurda.

    - Acho que eu não fui muito claro – o professor disse, recuperando-se da surpresa que lhe causou minha resposta (surpresa infundada, não falei nada de mais) e voltando a ser absolutamente sério e profissional. – É uma ordem, não um pedido.

    Pelo jeito que as coisas iam, eu devia ter esperado por isso.

    Respirei fundo e, com toda a paciência do mundo, disse:

    - Eu entendi perfeitamente, professor. O senhor me deu uma ordem, ordem que eu escolhi não obedecer, o que, para ser sincera, acontece o tempo todo. Chama-se Resistência ao Sistema – acrescentei com uma piscadela, não conseguindo segurar a vadia cínica dentro de mim.

    - Detenção depois da aula – anunciou solenemente, quase como se estivesse entediado.

    - Diz uma coisa que eu não sei – soltei com um suspiro, mas não tenho certeza se ele ouviu ou não.

    O resto da aula prosseguiu normalmente, como qualquer aula de matemática, ou seja: em grego. Esta em particular, era um pouco mais complicada do que eu estava acostumada, ou seja, grego antigo. Apesar de nos últimos anos eu nunca ter ficado acordada tempo suficiente para prestar atenção em alguma coisa nas minhas antigas escolas, dava para ver que eu estava claramente atrasada em relação aos meus novos colegas de classe.

    Nada que, é claro, entrasse na minha lista de preocupações. Estava claro que eu ia matar alguém antes do final do dia, minha meta agora era resistir até, pelo menos, o intervalo, quando eu podia facilmente encontrar Paulo no refeitório e acabar com a raça dele de uma vez.

    A aula de matemática foi seguida pelas de Literatura, Inglês e Geografia. Sentia-me cada vez mais faminta e fraca, e tropecei nos próprios pés algumas vezes no caminho para as aulas, além de não conseguir anotar nada, pois minhas mãos tremiam (não que eu fosse anotar qualquer coisa, ainda que não estivesse numa crise sério de hipoglicemia). Não vi Paulo, suspeitava que não tínhamos aulas juntos (ele devia ser do último ano), e os outros alunos me evitavam como se eu fosse a personificação da lepra.

    Nas aulas, ficava sempre no fundo da sala e os professores, talvez devidamente alertados sobre mim, me deixaram em paz e nem hesitaram ao ler meu nome na lista de chamada.

    Gabriel, além de estar na minha aula de matemática, também tinha Inglês comigo. Fiquei feliz, de uma maneira meio mórbida, ao ver que seu comportamento, e principalmente o comportamento das pessoas com ele, permanecia inalterado desde a aula de matemática. Ele era um rejeitado da sociedade, assim como eu.

    Sempre podemos contar com a maldade alheia para nos aquecer o coração e levantar nossa moral. Pelo menos agora, sabendo que não era a única rejeitada, não me sentia tão só.

    Quando o sinal finalmente soou, anunciando o intervalo da minha tortura acadêmica (intervalo que, infelizmente, dura apenas 30 minutos), eu me sentia péssima. Estava sonolenta e fraca, meus membros tremiam de frio e fome, de modo que mal conseguia me manter de pé, meu organismo clamava por açúcar e eu já começava a tossir e espirrar incessantemente. Além disso, já tinha conseguido puxar um bocado de fios da meia calça e, graças ao ar úmido, meu cabelo ainda não estava totalmente seco.

    Meu intento era ir ao refeitório o mais rápido que minhas pernas trêmulas permitissem e engolir a primeira coisa comestível que encontrasse pelo caminho.

    Já estava quase chegando e podia sentir o cheiro divino da comida que vinha de lá quando tive meus planos frustrados e fui brutalmente interceptada por uma montanha vestindo um uniforme que se materializou no meu caminho.

    - Você vem comigo – Paulo anunciou, agarrando meu braço antes que eu pudesse sequer esboçar uma reação, e arrastando-me na direção oposta ao meu paraíso gastronômico.

    - Espera!... – eu disse, desesperada e fraca demais para lutar contra ele, tinha dificuldade até em respirar. – É o meu intervalo, estou com fome!

    - Não é problema meu – respondeu friamente, sem parar de me arrastar pelo corredor, seu aperto era como aço em meu pulso fino. – Deveria ter pensado nisso antes de arrumar problemas na aula. Quando o professor Hertzog me contou o ocorrido, confesso que nem fiquei surpreso. Só posso esperar o pior de um tipinho como você, não é?

    E voltamos ao meu tipinho outra vez.

    Ele estava tão certo que, se eu tivesse fôlego, teria rido. Mas aquela situação não era nada engraçada, para falar a verdade. As pessoas que estavam nos corredores nos olhavam surpresas e, naquela hora, ficou claro para mim que aquele não era o comportamento normal do Chermont.

    O que pode significar duas coisas: ou o garoto desenvolveu um transtorno bipolar ou ele realmente me odeia.

    Adivinha em qual eu estava apostando?

    Comecei a tossir, tudo bem, exagerando um pouco, mas nem isso fez com que Chermont interrompesse sua missão maligna. Ele me arrastou até a sala úmida em que eu tinha ficado de castigo mais cedo, antes da aula.

    - Entre aí – ordenou, abrindo a porta e tentando me conduzir para dentro.

    - Não! – resisti, reunindo o que restava das minhas forças. – Olha aqui, seu aprendiz de ditador, pode parar já com –

    - Cala a boca, garota – disse, interrompendo-me e me empurrando para dentro da sala. Ouvi a porta da sala ser batida e o barulho da chave girando na fechadura. Por estar fraca e tonta, o empurrão que Paulo me deu me fez perder o equilíbrio e acabei caindo no chão, ralando o joelho e acabando de uma vez com a maldita meia calça.

       - Volto no final do intervalo para te levar para a próxima aula - ouvi através da porta fechada.

    - Merda – sussurrei, por não conseguir fazer com que minha voz ficasse mais alta. Ah, aquele garoto estava pedindo para morrer. Assim que eu saísse dali, recuperasse minhas forças e dormisse por um três dias seguidos, eu iria atrás dele com uma machadinha e só descansaria depois de ter a cabeça do desgraçado numa bandeja.

    Levantei-me com dificuldade e sentei numa cadeira. Tirei os sapatos e arranquei a meia com violência, para dar uma olhada melhor no meu machucado. Sangrava um pouco e ardia, mas era só um arranhão. Mesmo assim, rasguei um pedaço da minha já destruída meia e improvisei uma atadura, sonhando usar aquela mesma meia para enforcar o maldito Chermont.

   Depois fui até a porta e, mesmo já sabendo que estava trancada, tentei a maçaneta. Nada. Será que não existia nenhuma lei que proibisse esse tipo de coisa nessa escola? O desgraçado podia me manter em cárcere privado só porque era a porra de um monitor?

  Sentia-me indignada e ultrajada. Quem aquele garoto pensava que era?! Ah, mas era bom ele estar preparado, porque ia haver retaliação!

   Mas se eu fosse sincera comigo mesma, o que eu não costumava ser com frequência, eu teria de admitir que antes do ultraje e da indignação, antes até mesmo da fome e da fraqueza que tomavam conta do meu organismo, eu estava mesmo magoada.

    Magoada! Não fazia o menor sentido! Meu pai havia me chutado de casa, minha mãe não me reconhecia, minhas antigas amigas me viraram as costas, meu ex namorado me traíra e minha irmã mais velha me odiava, isso só para começar. E mesmo diante de tudo isso, eu me mantive distante e indiferente. Pensava que nada mais importaria depois daquilo. Pensava ter chorado todas as lágrimas que possuía, que nada mais me atingiria, teria o poder de me magoar. Depois, experimentei apenas ódio, rejeição e indiferença daqueles que deviam e diziam me amar, mas eu simplesmente não sentia. Não doía. Nada doía. Não mais.

   Até agora.

   Agora, quando um garoto idiota, que representa tudo o que eu desprezo e que conheço há menos de 24 horas me tirou do meu torpor. Ameaçando-me e me maltratando, agindo como se eu fosse mais suja e desprezível que um cão de rua. Jogando verdades na minha cara e me humilhando.

   Já passei por tudo isso e ainda coisa pior. E de pessoas que me eram importantes e amadas. Mas nada me atingiu.

   Esse garoto conseguiu o que meu pai, minha irmã e quase todos os que eu conhecia tentaram e não conseguiram.

   Ele me fez sentir.

   Tudo bem que as emoções que eu experimentava agora eram apenas ódio, dor e humilhação. Mas eu sentia! Sentia-me viva de novo, um pouquinho parecida com a garota forte e confiante que um dia fui.

   Apesar de a ideia me desgostar, a verdade é o que eu devia muito ao Chermont. O que, obviamente, não mudava meus planos de acabar com a raça do desgraçado. Quem ele pensa que é para me tratar como lixo? O rei da cocada preta?

   Mas agora eu iria fazer tudo com mais classe, o que seria bom para ele, já que descer a porrada no garoto no meio do refeitório na hora do almoço era um item riscado da minha lista.

   Pelo menos ele não ia ser humilhado na frente de todos. Já é bastante consideração, não é?

   Com as energias renovadas, voltei a calçar os sapatos e joguei o trapo sujo e rasgado que um dia fora uma meia calça no lixo. Agora, com as pernas nuas, sentia ainda mais frio. Meu joelho latejava, mas isso não me desanimou. Arrastei, com dificuldade, a grande e sólida mesa de mogno até a única janela da pequena sala que, infelizmente, era estreita e alta. E estava trancada.

   Mas como todos deviam estar no refeitório, não ouviriam se eu a quebrasse. Procurei algum objeto pesado para quebrar a janela, mas não achei nada, então resolvi que ia jogar uma cadeira mesmo. Não era algo que eu tivesse feito isso antes, mas não devia ser muito diferente dos alarmes de incêndio que eu já quebrei uma vez ou duas quando estava entediada.

   Consegui na segunda tentativa.

   Julieta, a ninja.

   Subi na mesa para alcançar a janela, mas como estava meio fraca, demorei um pouquinho para conseguir me içar. Finalmente consegui, depois de ter conseguido um belo corte na mão esquerda, obra de um caco de vidro. Eu não estava nada bem, tudo estava meio que rodando.

   Apoiei-me por alguns instantes ali para descansar um pouco antes de começar a descida pelo outro lado, tomando cuidado para não me cortar de novo. Acabei decidindo que a janela não era assim tão alta e seria bem mais rápido pular. Calculei errado e caí de mau jeito, quebrando o salto do sapato, machucando o pé e ralando os dois joelhos e as mãos.

   - Droga! Eu sou uma idiota mesmo! - resmunguei comigo mesma, levantando-me devagar. Por que não deixar para calçar os sapatos depois de saltar?

   Ajeitei meu uniforme e meu cabelo bagunçado do jeito que pude. O joelho que já estava machucado antes, agora sangrava bastante, empapando o curativo improvisado de sangue, que já escorria pela canela. Mas a minha mão estava pior.

   Olhei ao redor e me vi no pátio do colégio, que agora estava vazio, o que significava que o intervalo já estava quase no fim e os alunos já se dirigiam às suas salas. Paulo devia estar vindo me buscar e agora eu não tinha condições de brigar com ele. Precisava sair dali e comer alguma coisa.

   Como já passava da hora do intervalo, não podia ir ao refeitório agora em busca de comida e também não podia ir esperar a hora do almoço no quarto, porque seria o primeiro lugar em que me procurariam, então todo o trabalho que tive para fugir do meu cárcere teria sido em vão.

   O sinal tocou de repente, forçando-me a tomar uma decisão. Tirei os sapatos e manquei até o outro lado do pátio. Certifiquei-me de que não havia nenhum retardatário por ali e me esgueirei para o corredor, entrando pela primeira porta que identifiquei como desabitada. Tive sorte, era um almoxarifado.

   Ok, sei que tudo isso parece a maior burrada, considerando a extensão dos ferimentos que eu, sozinha, acabei me causando. Bom, dane-se se for burrada, essa sou eu, e Julieta Vaughan não aceita merda de ninguém. Posso ter acabado completamente ferrada, sangrando e latejando nos joelhos e nas mãos, mas estava me sentindo bem melhor do que estaria se estivesse esperado pacientemente a volta daquele monitor de quinta que gosta de brincar de sequestrador.

   Depois de me trancar ali, sorri. Já tive experiências em lugares como esse. Talvez eu não tenha mencionado, mas existe uma verdade sobre mim: eu sou meio que vagabunda, quer dizer, eu era.

   E no pior sentido da palavra mesmo. Eu não era assim, mas mudei tanto, passei por tantas coisas que parei de me importar com coisas como amor verdadeiro, alma gêmea e toda essa besteira. Que, aliás, é só besteira mesmo e não existe de verdade.

   Então eu simplesmente deixava rolar. E não me envergonho disso. Depois do safado traidor que eu tive a infelicidade de ter como primeiro namorado, eu simplesmente mandei tudo pro inferno. Nenhum homem presta mesmo, pulam de garota em garota sem parar e as esquecem com a mesma velocidade com que as conquistam.

   Então eu simplesmente resolvi fazer a mesma coisa. Trocar de garoto como troco de sapatos. E devo dizer que a coisa toda funciona muito bem. Não me envolvo seriamente com ninguém, só curto o momento e se o carinha começar a me entediar ou querer alguma coisa mais séria comigo, eu só digo adeus e boa viagem. Ah, e também não coleciono figurinha repetida. Simples assim.

   Sou meio fácil e não me envergonho disso. Ou pelo menos eu era. Decidi, pouco antes de ser mandada para esse colégio dos infernos, que iria dar um basta nos homens.   Ultimamente eles só têm me trazido problemas e foi um garoto, inclusive, o responsável por eu ter sido expulsa da minha antiga escola e, consequentemente, mandada para cá.

   Mas, nos meus tempos de piranha, almoxarifados, depósitos, banheiros e salas vazias eram os lugares onde eu costumava me esconder para dar uns amassos com o garoto da vez. E apesar de eu nunca ter ido até o fim com nenhum deles, nem com aquele biltre do meu ex, por quem eu me julgava loucamente apaixonada, confesso que já fiz umas coisas bem pesadas.

   Se eu já não tivesse decidido parar de pensar em garotos, aquele seria um bom lugar para chamar aquele carinha, o Gabriel, para se divertir um pouquinho. Mas, não sei a razão, algo me dizia que, mesmo se eu o chamasse, ele não aceitaria.

   E o Chermont?

   Aham, essa é boa! O monitor certinho e a novata rebelde se pegando num almoxarifado. Ele provavelmente apareceria apenas para me deixar trancada lá para morrer. E, parecia óbvio, agora que eu parava para pensar no assunto, que Chermont provavelmente tinha uma namorada. Uma boa menina, bonita, delicada e certinha, do tipo que nunca iria chamá-lo para ir se pegar no almoxarifado. Como eu faria se fosse a garota dele.

   O que é isso? Que estou pensando? Eu, garota daquele ditadorzinho? Que piada.

   Comecei a imaginar quem seria a namorada dele. Não o tinha visto próximo de garota nenhuma ainda. Pensei na bonita e expansiva Luma, a garota de cabelos cor-de-rosa, que eu tinha quase certeza que era um demônio. Depois restava a minha outra colega de quarto, Willa, a menina bonitinha e frágil de cabelos compridos. Eram as únicas que eu “conhecia”.

   Essa última era claramente a que devia fazer o tipo do Paulo. Parecia dócil, delicada e boa aluna. Combinava perfeitamente com ele e não conseguia imaginá-lo com a linda e popular Luma. Mas é claro que havia muitas outras garotas na escola, muitas que faziam o tipo do monitor.

   Mas por que raios eu estava pensando sobre a namorada do Chermont? Ela que fosse para o inferno - de preferência levando-o junto!

   Estava acomodada em cima de um balde virado de cabeça para baixo. Continuava espirrando e tossindo, já ficando doente. Ódio!

   Fechei os olhos por um momento, sentindo o corpo inteiro doer, o estômago vazio e uma ardência na garganta. Agradeci mentalmente pelo ar quente do aposento, pois pelo menos não congelaria e viraria fóssil.

   Sabia que precisava limpar meus arranhões e o machucado feio no meu joelho esquerdo (que ardia e latejava), sem falar do corte na minha mão, que sangrava profusamente, mas estava tão fraca e cansada, e tão sem recursos, que acabei deixando tudo do jeito que estava.

   Consegui cochilar por algum tempo naquela posição desconfortável, estava morta de sono. Acordei, com torcicolo e dor de cabeça (além do pé e do joelho, que doíam bastante, e o corte na mão, que doía, mas parara de sangrar), faltava apenas pouco menos de uma hora para o almoço. Sentindo-me um pouco mais animada ante a perspectiva de finalmente comer alguma coisa, calcei os sapatos (um com o salto quebrado) e passei a mão boa pelos cabelos. Eu estava suja de sangue seco, tinha até um pouquinho no meu uniforme e, antes de ir para o refeitório, daria uma passadinha no banheiro para me limpar.

   Para passar o tempo, peguei meu celular no bolso da saia e comecei a jogar tetris. É, eu sei, é realmente muita falta do que fazer. Quase gritei aleluia quando o sinal finalmente tocou.

   Fui mancando até a porta, a abri e, aproveitando o fluxo de estudantes que saíam das salas de aula ali perto, tentei me misturar. No início deu tudo certo, até porque todos estavam conversando animados e felizes pelo fim das aulas da manhã, e não prestavam muita atenção em mim. Reparei que apenas poucos alunos se dirigiam ao refeitório e foi então que lembrei que os alunos do segundo e do terceiro anos tinham permissão para sair da escola para almoçar na cidade. Alguns iam almoçar em casa, outros em algum restaurante caipira qualquer.

   A ideia pairou por minha cabeça por alguns segundos, afinal eu era do segundo ano e poderia ir, se quisesse. E seria muito mais difícil eu topar com o Chermont fora da escola. Ok, não tão mais difícil, já que essa cidade é do tamanho de um ovo, mas mesmo assim seria mais seguro do que ficar na escola.

   Mas só a ideia de ter que andar até a cidade me fazia pensar se não seria simplesmente mais fácil deitar num cantinho e morrer. Eu não aguentaria mais um minuto se não comesse alguma coisa, quanto mais andar todo o caminho até a cidade, a maior parte ladeira abaixo, e ainda procurar um restaurante. Sem falar que eu teria que correr até meu quarto para pegar dinheiro. E eu até podia pedir uma carona para um dos alunos que tinha carro e que estava indo até a cidade, mas duvidava que alguém dissesse sim, ainda mais considerando o estado deveras desgrenhado em que eu me encontrava.

   Não, o melhor mesmo seria almoçar no refeitório, tomar um banho, tirar um cochilo e depois me preparar para a batalha. Há essa hora, eu já tinha certeza que Chermont ia armar um escarcéu por eu ter matado aula, sem falar na janela quebrada. Com certeza esse garoto é um desocupado e não tem nada para fazer da vida além de me perseguir.

   Estanquei de repente. Não sabia onde ficava o banheiro daquele prédio. Teria que perguntar para alguém, mesmo que não gostasse da ideia de falar com as meninas frescas daquele colégio. Mas quando estava indo até um grupinho delas, uma mão se fechou em torno do meu cotovelo.

   O-oh. Fui pega.

   Sabia quem era, mesmo que não pudesse vê-lo. E antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, fui praticamente arrastada dali.

   - Pare! – consegui dizer, tentando puxar meu braço, sem sucesso. – Você tá me machucando, seu idiota!

   - Você é boba, por acaso? – Chermont perguntou furioso, largando-me de repente quando chegamos a uma parte vazia do pátio, e virando-se para me olhar. – Tem algum tipo de retardo mental? Acha que destruindo propriedade da escola e desobedecendo as regras vai conseguir alguma coisa? Você quer atenção, é isso? Fique sabendo que...

   Ele parou de falar de repente. Seus olhos se prenderam no meu uniforme manchado de vermelho e na minha perna suja de sangue seco. Reparou até no salto quebrado do meu sapato.

   - O quê...? – começou, pasmo, sem consegui terminar a frase.

   Sorri. Ou pelo menos tentei, estava muito fraca até para consegui sorrir direito.

   - O que você achou? – perguntei, tentando fazer minha voz soar audível. – Que pular daquela janela foi fácil? Dá para ver que você nunca fez nada como isso antes, nunca nem deve ter quebrado um osso ou arranhado sua preciosa pele. Mas não fique muito feliz não, meus ferimentos não vão me matar. Uma pena para você, não é? Ah e isso – apontei para meu joelho machucado – não foi resultado da queda.

   Era uma meia verdade. Eu tinha machucado o joelho quando ele me empurrou, mas quando caí, o ferimento ficou pior. Mas ele não tinha como saber disso.

   - V-você está dizendo que... – gaguejou, surpreso e...arrependido? Não dava para dizer com certeza. O desgraçado sabe como esconder o que sente. – Eu fiz isso?

   Não respondi. Tinha chegado ao meu limite, respirar fundo era difícil e eu tive uma crise de tosse. Antes que eu percebesse, Chermont se aproximou e segurou meus ombros com força.

   - Ei, o que você tem?! – perguntou, parecendo preocupado, mas eu quase não o ouvia, sua voz parecia distante e seu rosto, borrado. – Você está bem?! Responda!

   Tentei, mas não deu. Minhas pernas cederam e eu me preparei para cair, mas não senti o chão. Senti braços me segurando com força e me levantando sem esforço. Tentei abrir os olhos, mas estava tudo girando. Respirei fundo e relaxei nos braços dele.


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Notas finais do capítulo

Estou ficando preguiçosa, confesso. Não revisei esse cap, então, novamente, qualquer erro, me perdoem. Beijos!