Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 17
Capítulo 16


Notas iniciais do capítulo

Heeey, gente, curtindo as férias? Então, eu nem demorei tanto pra postar em Manchas dessa vez...ok, demorei sim. Mas eu disse que os caps aqui não seriam tão frequentes. Bom, esse cap ficou horrivel. Sério, odeio dizer isso sobre meu proprio cap, mas é verdade. O negócio é que eu não soube escrever ele e precisava mesmo assim...saiu isso. Desculpem. O próximo vai ser muuito mais legal,prometo.
Boa leitura :)



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   Era a segunda vez que eu estava chorando nos braços de Gabe.

   Patético, estou cansada de saber.

   Meu peito se mexia com a força dos soluços e minhas lágrimas eram absorvidas pelo algodão da camisa dele. Eu estava sentada em seu colo, encolhida como uma criança, enquanto ele apoiava o queixo na minha cabeça e gentilmente acariciava meus cabelos. Ele não fez perguntas. Só me ofereceu o calor de seu abraço quando percebeu que eu não estava bem. Eu gostava um pouco mais dele por isso. Sua respiração era tranquila enquanto a minha era superficial, mas ele continuava me segurando, me abraçando e me apertando contra ele, como se não o incomodasse em nada.  De fato, agia como se gostasse de me ter ali.

   Eu tinha estado tão transtornada quando o encontrei na saída do dormitório masculino que não tinha pensado duas vezes antes de correr para ele e me afundar em seu peito, em seu consolo. Eu precisava daquilo. Eu inclusive havia quebrado minha regra auto imposta e o havia levado até meu pequeno refúgio no meio das árvores. Se Gabe tinha ficado surpreso com o lugar, eu não pude ver, pois meus olhos estavam baixos, segurando as lágrimas como podiam, como uma represa prestes a se romper. Eu não queria que ele me visse novamente tão...vulnerável. Era uma fraqueza.

   E eu odeio ser fraca.

   Infelizmente, eu não consegui me conter e chorei como uma menininha. Sem nem saber o porquê daquilo. Por que eu me sentia tão cansada? Tão machucada? E por que o carinho de Gabe doía e era bom ao mesmo tempo? Minha cabeça dava voltas, tantas voltas que eu me sentia tonta, sem chão, sem algo em que me segurar...

   Quando a mente lhe falhar, minha criança, esqueça-a e use seu coração.

   Como eu ri quando meu avô me disse isso. "Minha mente nunca me falha, vovô" eu havia lhe dito "e o coração é volúvel demais para ser confiável". 

   Talvez Paulo Chermont estivesse certo. Talvez eu realmente achasse que sabia de tudo. Eu certamente sempre agi como se soubesse, como se a minha dor tivesse me ensinado tudo, como se ela tivesse aberto meus olhos para tudo. Mas minha arrogância era a venda que me cegava. Minha dor não era a única. Meu pecado não era o único. Eu não era só no mundo. E agora eu estava cercada de pessoas que, a seu modo, podiam sofrer tanto quanto eu. Por que Gabe era tão solitário? Por que Paulo o odiava tanto? Por que queria me manter longe dele? Por que eu me sentia tão bem com Gabe? E por que precisava sentir que odiava Paulo quando, na verdade, nunca quis ficar tão perto de alguém como queria ficar perto dele?

   Minha mente se confundia no meio que tantos porquês e eu nunca conseguiria encontrar uma resposta assim. Então senti que era a hora de finalmente escutar as palavras de alguém que era mais sábio do que eu. Talvez, apesar de enferrujado, meu coração ainda funcionasse. Talvez ele quisesse chegar ao fundo daquilo e descobrir porque duas pessoas de quem eu parecia precisar tanto, pareciam tão perdidas e sozinhas.
Minhas lágrimas pararam com esse pensamento. Essa era realmente eu? Julieta Vaughan queria realmente ajudar alguém? Eu queria realmente me importar com alguém que não fosse eu mesma?

   Levantei o rosto e fitei os olhos negros que me escrutavam com preocupação. E a resposta estava ali. Gabe era tão perdido quanto eu e, mesmo assim, me oferecia seus braços e seu estranho carinho como se eu fosse importante. Importante para ele. Como se eu fosse...querida.

   — Como você se sente? — perguntou ele em sua voz suave e carinhosa, sempre olhando em meus olhos.

   — Diferente — respondi.

   — Quer falar sobre isso?

   Respirei fundo e disse:

   — Na verdade, sim.

   Estávamos sentados na velha poltrona e eu não quis sair do seu colo. Além do frio, era porque eu o queria perto, queria absorver suas reações e enxergar suas respostas. Queria que ele me deixasse ver o que havia por trás da sua solidão. 

   Queria poder curá-lo.

   E em nenhum momento, depois que olhei naqueles olhos negros, as palavras de Paulo me abateram. Eu simplesmente sabia — sentia — que não eram verdadeiras.

   — Me fala sobre ela, Gabriel — pedi.

   Por um momento, vi uma profusão de sentimentos passarem por seus olhos. Ele sabia exatamente do que eu estava falando, era como se lembrasse da nossa primeira e perturbadora conversa em sua casa. E sabia que, dessa vez, eu não recuaria.

   — Por quê? — perguntou, desviando os olhos dos meus. 

   Eu podia sentir sua relutância, seu medo, sua dor. Não seria fácil para ele. Mas se fosse fácil, eu não estaria ali, insistindo em conhecer todas as reentrâncias da sua alma.

   Eu precisava fazer aquilo. Simplesmente estava fazendo o que meu coração mandava.

   — Porque é a hora — respondi, segurando seu rosto delicadamente com uma mão e fazendo-o se voltar para mim. — Lembra do que eu disse? Disse para você não me soltar. Disse que eu não soltaria você. Me deixe fazer isso. Me deixe ser sua cura.

   — Você é. Eu não sei por que, não entendo, mas você é como...como...

   — Como? — pressionei.

   — Como uma bomba de oxigênio.

   Franzi as sobrancelhas em confusão e ele deu um sorriso tímido, antes de dizer:

   — É como se eu estivesse me afogando. Sozinho, no mar. É como se eu soubesse que morreria, como se eu esperasse, ansiasse, por isso. E então você aparece, soprando ar para dentro de mim. Devolvendo-me a vida que eu não percebi que queria de volta. 

   Suas palavras caíram em mim como pedras, duras e pesadas, apesar de serem apenas sinceras e...apaixonadas. Era como se eu estivesse me negando a enxergar o que meu coração, no fundo, já sabia.

   Às vezes escutar o coração pode ser uma grande merda.

   — E é por isso que eu tenho medo de perder você — ele continuou, ao perceber minha mudez. — A cada minuto, eu fico imaginando que você vai descobrir tudo e...e me desprezar por isso. Temo que você tire a vida que está me devolvendo.

   Me estiquei em seu colo até nossos rostos ficarem na mesma altura, segurei-o com minhas mãos e encostei minha boca na sua. Suavemente, com toda a ternura que eu pude reunir. Seus lábios eram gelados e sua respiração, quente. Senti suas mãos leves em meu cabelo, mas ele não me puxou para ele nem se aproximou mais. Eu finalmente afastei minha boca da dele e olhei em seus olhos.

   — Eu gosto de você, Gabe — disse. — E passado por passado...eu também tenho esqueletos no armário. Espero que você não me ame menos por isso.

   — Eu não faço.

   — Então confie em mim. Confie que, não importa o que você me diga, eu vou continuar aqui. Eu não posso prometer isso, mas é no que você deve acreditar.

   Seus olhos brilharam para os meus uma vez mais. E eu senti exatamente o momento em que ele cedeu. Ele me puxou para seu peito, onde eu estivera chorando, e me abraçou tão forte que doeu. Mas eu não reclamei, eu sentia que ele precisava me sentir ali, precisava que eu estivesse tão perto quanto possível. Porque ele não queria me perder.

   — O nome dela era Clara — começou. — E era como uma princesa. Linda, pequena, frágil e delicada. E Paulo Chermont a amava. Na época, éramos melhores amigos, crescemos juntos, os três. Eu considerava Paulo um irmão. Mas eu também amava Clara. E doía ver os dois juntos e ter que esconder isso, ter que ter vergonha dos meus sentimentos. Ter vergonha de mim mesmo por querer vê-los brigando, vê-los separados, infelizes. Eram meus amigos! Como eu podia desejar isso? Eu me odiava, mas não conseguia parar de pensar nisso, em tirá-la dele, em tê-la para mim.

   Gabe tremia ligeiramente, parecendo afetado com as lembranças. Eu entendia isso bem demais e segurei sua mão, firme, entre as minhas. Estava gelada e eu a levei até meus lábios e soprei. Ele continuou falando:

   — Paulo não entendia Clara, não a enxergava. Ele era apaixonado por uma ilusão, uma bela e inocente ilusão. Mas ela não era assim. Clara não era doce nem inocente. Era mimada, egoísta, cruel. E eu era o único que a via do jeito que era. E a amava mesmo assim. Eu a queria exatamente daquele jeito corrompido e torpe. Mau. Mas ela era dele, que a desprezaria se soubesse como realmente era. E isso estava acabando comigo.

   "Uma noite, há quase dois anos, eu estava muito mal por isso. Estava sozinho em casa e havia bebido. A vagabunda da minha mãe estava fora com um dos seus homens e eu tive que suportar toda a alegria dos meus amigos na festa de aniversário de Clara. Precisei vê-la beijar Paulo repetidas vezes. E sabia que estava me provocando. Ela sempre me provocava. Era maliciosa, má. Queria que eu traísse meu melhor amigo. Ficava...excitada com isso. E, Deus me perdoe, como eu a amava!

   "Mas eu fazia o possível para me manter longe dela, da sua teia, da sua manipulação. Era difícil, mas eu me odiaria se fizesse o que ela queria, se enganasse aquele que considerava um irmão. Mas naquela noite tudo parecia mais difícil, como se minha luta fosse inútil. E no fim, foi. Eu me sentia excluído da felicidade que parecia rodear a todos, me sentia só. Cheguei em cada e me embebedei. Algumas horas depois, Paulo me ligou e eu fingi estar bem. Ele me disse que Clara e eu estávamos agindo estranho e que ele estava preocupado. Eu disse qualquer coisa para tranquilizá-lo. Funcionou. Estava tudo bem até que ele me confessou que há alguns dias tinha outra garota na cabeça. Me disse que a viu por uma foto, uma maldita foto! E que algo nela havia mexido com ele. Se ele estivesse na minha frente, eu teria quebrado seus dentes! Indaguei sobre Clara, sua namorada, e ele teve a cara de pau de dizer que sabia que não duraria para sempre. Que os dois eram muito diferentes!

   "Desliguei o telefone sem dizer mais nada. Queria matá-lo. Ele tinha a garota que eu amava tanto que doía e nem ao menos a queria para sempre, como eu! Eu teria feito tudo por ela, teria sido o que ela quisesse, teria dado o que me pedisse. Mas por respeito a ele, por amá-lo como a um irmão, eu recuei. Apesar de inconscientemente me pegar desejando-os separados, me esforcei para vê-los felizes, para aceitar tudo aquilo. E justamente quando eu me achava naquele estado de espírito, Clara resolveu aparecer na minha casa. Para me tentar, me punir por tentar ser bom, para me envolver e me obrigar a fazer o que ela queria. E dessa vez, eu resolvi não pensar em ninguém mais, só em mim. E nela. Fiz o que queria há muito tempo, fiz o que ela queria, o que me desafiava a fazer tantas vezes. Não me cansava de beijá-la, de tê-la em meus braços, parecia tão certo a sentir ali! Bebemos muito. Muito mesmo. Estávamos ambos fora da realidade. Ela...ela...”

   Eu sentia que ele tentava fazer o que eu fizera há pouco tempo. Tentava controlar as lágrimas. Eu tentei olhar para ele, mas ele me impediu, me apertou ainda mais forte, quase como se não percebesse o que estava fazendo. Senti seus lábios em meu cabelo, senti que ele lutava contra a vontade de falar e a vontade — muito mais forte — de esquecer aquilo para sempre.

   Mas só porque não falamos, não quer dizer que esquecemos.

   Segurei sua mão com mais força, tentando passar segurança para ele, pedindo silenciosamente que continuasse.

   — Ela queria ir até Johnstone Hill...que é onde as pessoas aqui vão para...ficar, entende? Ela insistiu para irmos, que seria divertido, mas já era tarde o lugar ficava meio longe. Precisaríamos roubar o carro da minha mãe, e eu estava muito bêbado. Mas ela insistiu, disse que poderia dirigir, que estava bem, que...que podia chegar lá. E eu...bem, eu...concordei.

   Sua voz falhava e sua batalha contra as lágrimas já havia sido perdida. Eu já começava a entender aonde aquela história iria acabar, mas não o interrompi, fiquei calada e apenas o escutei.

   — Nós...bom...nós... — respirou fundo, como se tentando forçar as palavras a sair, mas desistindo. — Eu...eu fiquei bem. Exceto por alguns arranhões e duas costelas quebradas, nada aconteceu comigo. Só tinha uma coisa que eu queria. Minha mãe tinha um...namorado que trabalhava na perícia e ele fez o relatório como se eu estivesse dirigindo. Assim...assim as pessoas não pensariam mal dela. Assim, continuariam lembrando dela como a doce e inocente Clara, que estava no lugar errado, na hora errada. Que confiou em quem não devia. Que era tão boa que entrou no carro do seu amigo bêbado para tentar pará-lo, salvá-lo...

   Finalmente, ele me permitiu levantar o rosto para vê-lo. Seus olhos negros brilhavam com as lágrimas recentes. Como eu poderia julgá-lo por isso? Como eu podia olhar naqueles olhos tão escuros e não me sentir indigna da sua atenção, do seu carinho? Sim, ele cometeu um erro. E, como eu, decidiu pagar por esse erro por toda a vida. Eu o entendia e até me sentia...será que posso dizer orgulhosa? Meu Gabe se mostrou forte e honrado, assumindo a culpa no lugar daquela que amava. De quantos garotos você pode dizer isso hoje em dia?

   — Eu a matei, Julieta — ele sussurrou, a dor quebrando-se como uma onda em seus olhos. — Eu a matei. C-como você consegue olhar pra mim? Por que você ainda não foi embora?

   Os cantos dos meus lábios se levantaram um pouco, involuntariamente, num sorriso fraco. Sem nunca deixar de fitá-lo nos olhos, eu comecei a acariciar seus cabelos negros, depois passei os polegares por suas sobrancelhas. Delicadamente, percorri com um dedo a ponte do seu nariz e a curva dos seus lábios, a linha da sua mandíbula.

   — Esta noite, Paulo me disse que você era um assassino — eu contei, meus dedos ainda percorrendo as linhas delicadas do seu rosto. — Ele, mais uma vez, me pressionou para me afastar de você. 

   — Ele o quê?!

   — Mas o que importa é que, ao sair de lá, eu me joguei imediatamente nos seus braços. E eu ainda estou neles, mesmo depois do que você me contou. Não sou boa com palavras, Gabe Kimak, então você vai ter que se contentar com isso. Eu continuo aqui, com você, e não pretendo ir embora. Isso significa mais do que qualquer palavra que eu possa dizer.

   Eu vi o momento em que ele entendeu. Seu cenho se franziu em confusão por um segundo, antes que eu pudesse ver o brilho de alívio em seus olhos. Ele estava me beijando antes que eu pudesse notar qualquer outra coisa. Seus lábios eram frios e delicados contra os meus, ao mesmo tempo em que se moviam de maneira quase desesperada, como se eu fosse a última gota de água no Saara. É, Gabe tinha aquele talento que poucos caras têm de fazer com que uma mulher se sinta única e preciosa com apenas um tocar de lábios.

   Não creio que ele tenha percebido o que estava fazendo. Não era planejado, deliberado ou agressivo como tinha sido o beijo de Paulo. Era apenas uma demonstração dos seus sentimentos. Era puro, inocente. Era como se, do mesmo jeito que eu não era boa em me expressar com palavras, ele também não o fosse. E, como eu, escolheu outra maneira para me dizer o quanto amava que eu estivesse aqui, com ele, mesmo depois de me dizer a verdade sobre seu pesadelo particular.

   Correspondi, é claro. O mais delicadamente que consegui. E o beijei profundamente enquanto acariciava os lados do seu rosto. Meus olhos estavam fechados, mas eu senti o momento em que ele percebeu o que estava fazendo. Não se soltou de mim com surpresa ou violência, apenas se afastou um pouco e deu um leve selinho em meus lábios úmidos. Abri os olhos e encontrei os dele, mais leves do que eu já tinha visto alguma vez.

   — Obrigado — ele disse, sem que eu precisasse perguntar pelo quê ele estava agradecendo. Eu sabia. — E perdão. Eu não deveria tê-la beijado desse jeito.

   Não me senti ofendida. Ele não estava arrependido por ter me beijado, apenas envergonhado por fazer isso sem saber se eu queria. Diferente de certos monitores nazistas, que tomavam o que queriam sem se importar com a opinião dos interessados, Gabe era do tipo que se preocupava mais com o que eu queria.

   Sorri, apoiando minhas mãos em seus ombros, e ele sorriu também. Já disse que ele tem o sorriso lindo, mas este...era de tirar o fôlego. Havia cor em seu rosto e seus olhos brilhavam. Os lábios estavam vermelhos, não descorados, os cantos curvando-se sem esforço, como se ele nem percebesse que estava sorrindo. E que aquele sorriso espontâneo era para mim. 

   Talvez eu o tivesse curado, talvez apenas o tivesse libertado. Não da culpa, isso eu não podia fazer. Mas do medo de nunca mais poder se aproximar de alguém por receio que de ninguém pudesse perdoar seu passado. O custo de uma vida é alto demais para se pagar, ainda que com a própria vida. O sofrimento, a dor e a culpa não trazem os mortos de volta.

   Talvez eu devesse aprender isso de uma vez.

   Mas, então, no meu caso, não havia sido um acidente.

   Havia um quê de fatalidade nos erros de Gabe. Ele não quis machucar ninguém. Ele não sabia o que estava para acontecer. Não estava completamente são. E lutara contra isso.

   Eu estava. Eu quis fazer mal, machucar. Quis ver sangue vermelho, vivo e pulsante, manchar minhas mãos. Quis ouvir os gritos, a dor dela...

   Então talvez não restasse descanso para minha maldição, no fim das contas.

   — Você não acreditou nele? — perguntou Gabe de repente, me arrancando dos meus devaneios. — Não ficou com medo de mim?

   Ele estava falando do Chermont e da declaração dele de que Gabe era um assassino.

   — Paulo realmente acredita no que me disse — eu respondi. — Eu acreditei nisso. Que ele realmente o condena. Mas não, não fiquei com medo de você, nem acreditei que pudesse ser o que ele dizia que era.

   Um criminoso reconhece o outro, cara.

   — E por que você saiu de lá chorando? Ele machucou você? Fez alguma coisa...?

   — Não — menti. Afinal, por onde eu deveria começar? Pelo momento em que ele praticamente me acusou de ser uma vadia barata ou pelo momento em que acabei com qualquer chance de que pudéssemos nos dar bem contando a grotesca verdade sobre mim?

   Coisas como essas podem estimular o canal lacrimal de garotas como eu. Normalmente não o faziam, mas eu suspeitava que Paulo Chermont tivesse um tipo de acesso rápido às minhas lagrimas.

   — Tem certeza? — insistiu Gabe.

   — Ele só me fez lembrar a razão pela qual estou aqui — contei, e não era exatamente mentira. — E certos aspectos do meu passado ainda mexem muito comigo.

   — Você não vai me contar?

   — Não.

   — Mesmo depois de eu ter te contado tudo sobre o meu passado? Coisas que eu nunca havia dividido com mais ninguém?

   — Sim. Não vou te contar nada.

   — Isso é injusto.

   — Certo, sabe aquele seu receio de que eu me afastasse de você, caso me contasse a verdade? Bom, eu não tenho esse receio. Eu tenho certeza. Se eu contar, vou perder você. Ainda quer ouvir?

   Ele percebeu a sinceridade em minhas palavras. Eu o vi procurando algum vestígio de brincadeira em meus olhos.

   Mas eu não brincava. Não sobre isso.

   — Não — ele respondeu, sério. E então, deu um sorrisinho. — Por que, então, você não me conta que diabo de lugar é esse? Eu estudei nessa escola por anos e não sabia desse lugar!

   Eu ri e, apesar do jeito que me sentia no início, fiquei feliz de compartilhar meu pequeno refúgio com meu amigo Gabe. Comecei a contar para ele tudo o que sabia, como o achei e as pequenas coisas que fiz para tentar torná-lo habitável. Ele se ofereceu para me ajudar com o banheiro, o encanamento e a lareira. Era uma sorte que tivesse eletricidade, apesar de que Gabe gostaria de dar uma olhada na fiação para ver se era mesmo seguro.

   Ficamos horas lá, apenas conversando e rindo. Aos poucos, Gabe se sentiu mais confortável para me contar alguns detalhes sobre o seu passado, ainda que o nome de Clara não fosse mais mencionado. Ele nunca conheceu o pai, e foi sempre criado pela mãe leviana. Conheceu a família Chermont e todos os irmãos do Paulo ainda pequeno, quando eles moravam na cidade. Nasceram todos lá, mas depois que o irmão mais velho do Chermont fugiu e desapareceu no mundo, a mãe deles quis ir embora da casa em que moravam. Acabaram indo para uma outra cidade, próxima o suficiente para que Paulo e os outros irmãos pudessem frequentar a Werburgh. 

   — Ele pega o trem toda sexta feira, no fim do dia — contou. — E vai pra casa com o irmão. A mãe deles é muito superprotetora.

   Gabe contou também sobre o ano em que passou fora da cidade. Foi logo depois do acidente, quando foi para um reformatório. Não que ele tenha dito algo sobre isso, mas eu percebi que sua insistência em culpar a si mesmo pela morte da garota o pusera em maus lençóis. Talvez por ser menor de idade e não ter antecedentes criminais, as coisas foram um pouco menos severas, mas eu ainda percebia que seus lábios tremiam um pouco quando falava no reformatório.

   Meu próprio passado não voltou a ser mencionado.

   O céu já havia escurecido e o ar esfriara bastante quando deixamos o chalé. Qualquer idiota perceberia que havíamos perdido o jantar e, provavelmente, o toque de recolher. Meus dentes estavam batendo com o frio, apesar do braço quente e protetor de Gabe em volta da minha cintura. Eu também estava morrendo de fome e a perspectiva de ir para a cama sem comer era triste, mas provável. Estávamos no meio do caminho quando Gabe disse:

   — Droga! Esqueci minhas chaves no chalé! Vou precisar ir buscá-las.

   — Tá louco? Você quer voltar com esse frio? Nem pensar! Pega as chaves amanhã!

   — Não dá, vou precisar delas. Faz assim, vai andando na frente e me espera na saída das árvores. Aqui é mais frio por causa da umidade.

   Relutantemente, concordei. Ele voltou pelo caminho que fizemos e eu segui sozinha. As árvores já estavam mais espaçadas, o que significava que eu já estava quase saindo daquele matagal, quando a chuva caiu sem aviso. Chuva forte e gelada, que me ensopou quase imediatamente.  Amaldiçoando, cruzei meus braços sobre o peito e baixei minha cabeça, olhando o chão molhado a cada passo que dava. Odeio chuva. O chão começou a ficar enlameado e escorregadio, sujando meus tênis. Grande momento para Gabe me largar sozinha para buscar as malditas chaves!

   Finalmente, passei pela última árvore e da escuridão esmagadora. As luzes da escola eram visíveis dali, apesar de não oferecerem muita ajuda para mim, com toda aquela chuva. Fiquei parada, xingando baixinho por alguns segundos quando vi algo se mover em minha direção. Meu coração acelerou e eu apertei os olhos para ver, mas a chuva não me permitia enxergar nada com clareza. Dei dois passos para frente, para tentar ver melhor, e acabei tropeçando numa pedra.

   — Droga! — exclamei, enquanto recuperava o equilíbrio.

   Antes que pudesse levantar os olhos e perscrutar novamente as sombras, fui praticamente tirada do chão por um par de braços, que me apertaram em um abraço duro e ávido.

   — Graças a Deus! — o dono dos braços exclamou, a boca perto da minha orelha. — Eu fiquei tão preocupado! Por que você sumiu com ele? Por que não acreditou no que eu disse?

   Paulo se afastou um pouco apenas para me olhar. Na escuridão, só o que eu podia ver o contorno e o brilho dos seus olhos verdes que, no momento, pareciam negros. Eu estava tão atônita que, a princípio, nem entendi suas palavras.

   — Paulo?! — exclamei, tentando controlar os batimentos desesperados do meu coração. — Quer me matar de susto?!

   Suas mãos tiraram meus cabelos molhados do rosto com carinho e ele nem pareceu ouvir minha indignação. 

   — Você está bem... — foi só o que disse, antes de me abraçar de novo, me apertando em seu peito e enterrando o rosto no meu pescoço, aspirando ruidosamente por causa da chuva.

   Fiquei paralisada. Sentia meu corpo enregelado frágil entre aqueles braços fortes de Paulo. Tremia ainda mais, não só de frio. De confusão, de medo e de antecipação. Sem perceber, aconcheguei-me mais a ele, apertei-me em sua segurança incerta. O que aquilo significava? Nem tanto o fato de Paulo ser obviamente bipolar e o que ele estava fazendo ali, na chuva, procurando por mim. Está além das minhas capacidades imaginar o que se passava na mente absurda daquele garoto. Mas o que significava o fato de eu me sentir tão ligada, tão dependente dele? Por que não me importava com a chuva se estivesse entre seus braços? O que havia nele de tão especial? 

   De repente, senti o corpo de Paulo se retesar. Ele me soltou do seu abraço apenas para me colocar atrás do seu corpo, como se estivesse me protegendo.

   — Você vai morrer, Kimak — murmurou sob o fôlego, com uma raiva sem precedentes pontuando suas palavras. – Se tiver tocado num fio de cabelo dela, você está morto.

   Assustada, olhei por sobre o ombro dele e vislumbrei os contornos de Gabe na escuridão molhada.

   Algo me dizia que a coisa não ia prestar. 

   Que Paulo tenha avançado em Gabe até que os dois estiveram rolando na lama entre socos e chutes foi uma boa dica.

   Mas então, eu sou campeã em dizer coisas óbvias.


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Notas finais do capítulo

Hey, pra quem lê O Amor É Clichê, tem post esses dias ainda. Desculpem ter demorado tanto, mas é que eu to de férias, né, gente, e fui pra praia, numa cidade no Espírito Santo. Muito legal lá. Enfim, não tinha internet e eu não tinha como entrar, a não ser pelo celular, aí já viu né...
Enfim, espero que nao tenham achado esse cap tão ruim, deixem reviews, me façam feliz, afinal eu fiz aniversário semana passada! :)))
Obs: Um beijão e um obrigado especial pra Ágatha Rivera, pela recomendação linda *-*