Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 10
Capítulo 9


Notas iniciais do capítulo

Eu to postando cedo hoje o/
Eu amei esse capítulo, amei escrevê-lo, foi muito divertido :) Além disso, eu vou dedicá-lo pra Lê, que é uma leitora muito fofa, pela recomendação linda que ela fez *-*
Boa leitura, até lá embaixo :)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/162378/chapter/10

   É, talvez eu não fosse um gênio, no fim das contas. Havia deixado duas pontas soltas e agora não sabia o que fazer. Primeiro, onde estaria Luma? Eu precisava encontrá-la e acertar as contas com ela de uma vez e não tinha tempo de ficar procurando no colégio todo. Por que eu fui tão burra a ponto de esquecer de olhar que atividade ela estaria fazendo naquele exato momento? Segundo – e o problema mais grave – e se aquela velha da coordenadora abrisse aquela boca de dentes falsos para o Chermont e dissesse que estaria presente na minha detenção? Aí ferrou tudo. Ele iria sacar que havia algo errado na hora e não cairia na minha armadilha!

   Tudo ia acabar dando errado e eu nem tinha quebrado a cara daquela menina com cara de morango azedo ainda!

   Estava tão concentrada fazendo e descartando planos em minha cabeça que acabei colidindo com alguém no meio da escada.

   - Olha por onde anda, idiota - comecei a dizer, muito mal humorada, mas parei quando vi quem era.

   - Vou tomar mais cuidado da próxima vez, Vaughan - Gabriel disse, com a expressão indiferente que eu estava começando a sempre associar a ele.

   - Devia mesmo, Kimak - falei, um pouco desconcertada. E irritada.

   - Saindo da sala da irmã Christine? - perguntou, casualmente. Fiz que sim com a cabeça. - Como foi?

   - Um absurdo! Alguém precisa avisar para aquela mulher que ela morreu há trinta anos e esqueceram de enterrar o corpo! Como permitem que ela seja a coordenadora de uma escola?

   Gabe não falou nada, mas deu aquele seu sorriso que não era bem um sorriso. Aparentemente, era um garoto com muitas características únicas. A expressão indiferente do Gabe, o sorriso do Gabe, era tudo só dele, e eu gostava disso. Pensei em contar a ele que havia me inscrito nas aulas de desenho e pintura, mas não estava certa do que ele acharia dessa informação e resolvi que seria melhor fazer uma surpresa e simplesmente aparecer lá na terça-feira - as aulas de desenho e pintura eram no terceiro andar do prédio central às terças e quintas. Além disso, minha cabeça estava muito cheia de problemas naquele momento para me preocupar com isso.

   - Bom, tenho que ir entregar um trabalho - disse Gabe, passando por mim e subindo o resto dos degraus. Fiquei olhando para ele, pensando em como era misterioso e interessante. E também a única pessoa - além de mim, é claro - que não tinha vontade de se ajoelhar e lamber os pés daquele monitor nazista do inferno.

   De repente tive uma ideia. Não, era melhor não, ele não faria aquilo por mim, afinal, nós mal nos conhecíamos...mas por outro lado, não custava nada perguntar.

   - Gabe, espera! – chamei, subindo os degraus atrás dele. O garoto virou para trás muito rápido e eu teria esbarrado nele de novo, se ele não tivesse me segurado com as duas mãos.

   - Espera aí, você me chamou de Gabe? – perguntou, soltando-me e mais do que um pouco surpreendido.

   - É o seu nome, não é? – disse, torcendo para ele não ficar chateado com o apelido.

   - Na verdade, é Gabriel, – respondeu. Mas. Que. Merda. Eu não tenho sorte mesmo. – Mas você pode me chamar de Gabe, se quiser. Gostei do som da sua voz dizendo meu nome, de qualquer jeito.

   - Ah – ruborizei. Como é que esse garoto consegue dizer essas coisas com essa cara de quem está perguntando que sabor de pizza eu vou querer? Eu ainda ia ter um treco conversando com ele. – Tudo bem, então.

   - Você quer alguma coisa? – ele perguntou, com aquele mesmo olhar meio concentrado meio fascinado por meu rosto corado.

   - Na verdade, sim – eu disse, antes que perdesse a coragem. – Queria saber se você podia me fazer um favor.

   - Um favor?

   - É, preciso que você vigie o Chermont.

   - Por causa do que aconteceu hoje? Da discussão que vocês tiveram no corredor?

   - Você ficou sabendo? – por que ele nem comentou nada? Devia saber que havíamos discutido por causa dele, certo?

   - A escola inteira ficou sabendo, aliás, a cidade inteira, provavelmente. E, para falar a verdade, pensei que você não falaria mais comigo depois disso.

   - Por quê?

   - É o que as pessoas fazem.

   Eu, que costumava ser uma rocha, estava triste por aquele garoto. O isolamento, a expressão sempre indiferente, aquele ar de tristeza...tudo me levava a crer que o culpado era o Paulo. Ele aparentemente não havia transformado apenas a minha vida num inferno, Gabe também parecia ter sofrido nas mãos dele. Ah, mas aquilo fez com que minha sede de vingança aumentasse. Nunca fui o tipo de garota que protege os fracos e oprimidos, normalmente estou muito ocupada com os meus problemas para sequer notar os dos outros, quanto mais fazer algo a respeito. Mas algo no Gabe me fazia querer ajuda-lo, protegê-lo como se ele fosse um menininho.

   - Gabe, - eu comecei, chamando-o propositalmente pelo apelido – eu só faço o que eu quero, ok? E esse idiota do Chermont não vai me impedir de falar com você, se eu quiser. E eu quero.

   - O que você quer mesmo que eu faça?

   Ok, eu estava a ponto de dar pulinhos de alegria, tudo daria certo, enfim.

   - Vigie o Chermont e, se aquele zumbi, digo, a coordenadora, ou alguém mandado por ela for falar com ele, você espera um pouco, depois vai até ele e diz que a irmã Christine não vai mais se encontrar com a gente antes do jantar para a minha detenção. Diz que aconteceu alguma coisa, sei lá, diz que a dentadura dela fugiu ou a pele está soltando. Ou que ela precisava fazer outra coisa. Só preciso que você faça esse garoto pensar que vai ficar sozinho comigo hoje.

   - Ele te colocou na detenção? – Gabe perguntou, não parecendo muito satisfeito.

   Ouvi alguns passos e vozes animadas de meninas pelo corredor, aproximando-se.  Como não queria que ninguém percebesse que Gabe e eu estávamos maquinando planos para desbaratar a ditadura do monitor de quinta, eu me encostei na parede e puxei o menino para cima de mim.

   - Me abraça – sussurrei na orelha dele. E fiquei surpresa, pensei que o garoto ia se fazer de tímido e eu teria de obriga-lo a me tocar, mas ele fez justamente o contrário.  Empurrou-me mais na parede e me abraçou, colando seu rosto no meu.

   - Assim? – perguntou.

   - Assim – engoli em seco – está ótimo.

   As meninas passaram e começaram a cochichar e rir quando nos viram, mas eu acho que tudo deu certo e elas não nos reconheceram, afinal, Gabe estava de costas, e meu rosto estava escondido pelo seu. Ele era apenas alguns centímetros mais alto que eu, apenas o bastante para eu sentir sua respiração quente e úmida no meu rosto. E não era uma sensação desagradável, nem de longe.

   Quando as garotas foram embora, eu perguntei:

   - Então, você vai fazer isso por mim?

   - Vou, – ele respondeu – mas nada é de graça. E isso vai te custar alguma coisa.

   Nós ainda estávamos agarrados um ao outro e eu estava muito ciente do fato. Porém, estava meio chateada por ele ter dito que queria alguma coisa de mim. Eu era mesmo uma otária e tinha me deixado cativar por um moleque babaca como outro qualquer. De qualquer maneira, eu precisava dele e, desde que o pedido dele não fosse muito excessivo, eu faria.

   - O que você quer? – eu perguntei, apenas fingindo que não estávamos abraçados como um casal de namorados.

   Ele fechou os olhos por um momento, depois os abriu, respirou fundo e chegou mais perto, fazendo sua boca quase roçar na minha orelha, me causando um arrepio. Então disse:

   - Eu quero te pintar.

   Fiquei estática por alguns segundos, sem ter certeza de ter ouvido direito. O garoto havia mesmo dito que queria me pintar? Tipo, numa tela? Tipo, eu?! Eu não era nenhuma musa nem nada disso e ele ainda queria me pintar?

   - Você disse o que eu pensei que disse? – perguntei, confusa.

   Ele não disse nada, mas passou aqueles inescrutáveis olhos negros por todo o meu rosto, como se eu fosse a coisa mais linda e preciosa que ele já tinha visto. Era uma sensação tão boa, ele não dizia nada nem fazia nada, apenas estava perto o suficiente para eu sentir sua respiração na minha pele, fitando-me com aqueles olhos incríveis como se quisesse gravar cada centímetro de mim na memória. Suas mãos estavam apoiadas na parede atrás de mim e ele não fazia nenhum esforço para tirá-las dali e me tocar, mas eu sentia aquele olhar como uma carícia e minha respiração ficou curta e rápida.

   Eu fechei meus olhos e esperei ele me beijar. Quer dizer, ele tinha que me beijar, não é? Ou não estaria me olhando daquele jeito tão intenso, certo? Mas os segundos passaram e...

   Nada.

   Abri os olhos, sentindo-me uma idiota, sensação que só se intensificou quando vi aquele meio sorriso no seus lábios finos.

   - Você tem o rosto mais simétrico que eu já vi – ele disse, usando um dedo para percorrer o contorno do meu rosto. – O rosto perfeito para eu usar para o meu projeto de fim de semestre.

   Ok, agora era a hora que eu enfiava a cabeça num buraco e morria.

   - Ah – Julieta, dava para parecer mais retardada? – Obrigada, eu acho.

   Podia sentir meu rosto quente e não tinha a menor dúvida de que nunca tinha estado tão vermelha e envergonhada na vida. E logo com o Gabe! Eu definitivamente não tinha mais salvação.

   - Então, – ele finalmente disse – temos um acordo?

   - O quê? Ah, isso. Claro, tudo bem. Você pode me pintar, se quer tanto.

   - Obrigado.

   - De nada.

   Agora a situação era simplesmente insustentável. O garoto claramente não ia me beijar, mas também não me largava e continuávamos agarrados na parede. Certo, Julieta, saia dessa agora.

   - Você vai voltar para casa hoje? – perguntou ele, quando ficou claro que eu não iria dizer nada.

   - Não, vou ficar aqui o final de semana inteiro.

   - Então podemos começar amanhã?

   - Tudo bem.

   - Encontre-me na sala onde temos aula de matemática, depois do café.

   Fiz que sim com a cabeça, confusa demais para falar. Então ele finalmente me soltou.

   - Ah, e a garota, Luma Britto – disse, já se afastando. – estúdio de dança, primeiro andar.

   - Espera aí! – gritei para as costas dele, completamente aturdida. – Como você sabe que eu estou procurando essa vadia? E como…espera! – mas ele já tinha se mandado. Que inferno! Gabe Kimak é positivamente de outro mundo, para me deixar desse jeito.

   Balancei a cabeça, afastando pensamentos inúteis. Não tinha tempo nem paciência para essas coisas. Kimak e seus mistérios, apesar de me intrigarem e fascinarem, não eram meus para desvendar. Não nesse momento, pelo menos. Eu já estava inscrita na atividade que ele coordenava, teria tempo para me dedicar a ele depois. No presente momento, eu precisava era encontrar aquele cão do inferno em forma de garota.

  Desci rapidamente até o primeiro andar e logo achei o estúdio de dança. A aula parecia ter acabado e uma pequena multidão de garotas vestindo tutus cor-de-rosa e toda aquela parafernália ridícula estava preenchendo o corredor com vozes agudas e risinhos superficiais. Escondi-me atrás de uma coluna e esperei para ver um coque cor-de-rosa flutuando mais alto que todos os outros, mas aquela desgraça não estava visível em lugar nenhum. Continuei escondida e esperei até a última menina deixar o corredor. Eram muitas e eu havia começado a me perguntar quantas cabeças de vento são necessárias por metro quadrado e que, certamente, estaríamos muito melhor se eu pudesse exterminar algumas delas.

   Deviam fabricar um repelente, sei lá.

   Assim que o corredor ficou vazio, me arrastei até a porta da sala de dança, que estava apenas encostada e comecei a espiar. A sala era grande o bastante para acomodar todas aquelas retardadas, com piso de madeira e espelhos enormes e perfeitamente limpos cobrindo metade das paredes, onde também havia umas barras, tipo aquelas que colocam nos corredores dos asilos pra velharada se apoiar e não ficar levando tombos o tempo todo. Mas não achava que elas tivessem o mesmo propósito ali, apesar de não saber bem para que serviam. Num canto daquela sala esquisita havia um lindo piano branco que fez meus dedos coçarem. Também havia uma estante com um aparelho de som, algumas pastas e papéis impecavelmente organizados e, sentadas no chão ali perto, estavam Luma e Willa. Luma estava visivelmente transtornada e Willa parecia tentar acalmá-la com aquela voz baixinha e confortadora, mas não parecia estar tendo muito sucesso.

   - Ele me descartou como se eu fosse um brinquedo velho! – disse Luma entre lágrimas, alto o bastante para eu ouvir. – Ele mentiu para mim esse tempo. Dizia que eu era especial, diferente das outras, que me amava! – terminou num soluço particularmente patético.

   Willa continuava falando com ela, mas sua voz era tão suave e baixa que eu não conseguia ouvir, mas parecia mesmo que estava consolando a outra, pelo jeito que passava as mãozinhas pequenas no cabelo rosa de Luma e fazia de tudo para secar suas lágrimas.

   - Desculpa? – ginchou Luma, com uma nova torrente de lágrimas escorrendo por seu rosto. – Ele nem se deu ao trabalho de inventar uma! Teve a audácia de dizer na minha cara que simplesmente cansou de mim! E está interessado na menina nova!

   - Aquela?! – dessa vez eu pude ouvir a voz da Becker, já que foi quase um grito de horror.

   - A própria! E eu ainda passei pela humilhação – soluço – de deixá-la – soluço – me ver chorando! Mas no final ela se ferrou, pelo menos isso.

   Luma agora secava furiosamente as lágrimas com as mangas do cardigã branco que usava, seu rosto estava horrível, todo inchado e vermelho. Com o coque se desfazendo e aquela cor de cabelo, ela parecia um morango amassado. Willa continuava a tentar acalmá-la, o que na verdade só fazia com que ela se descontrolasse mais.

   - O que ele viu naquela caminhoneira afinal?! – gritou, o rosto molhado contorcido de fúria. – Como ele pôde me dispensar por uma moleca horrorosa, mal educada, boca suja, violenta e burra, que parece que foi cuspida no mundo?

   Meu rosto já estava esquentando de raiva e eu já estava mais do que pronta para entrar naquela sala e deixar as duas com os olhos roxos, quando Luma disse uma coisa que me fez estancar.

   - Eu fui uma idiota – disse ela, e eu podia dizer que concordava totalmente. – Achei que ele estava tentando me proteger de todo o falatório da escola quando pediu para mantermos nosso namoro em segredo, mas foi só para me usar sem perder sua pose de menino bom e decente! Como eu o odeio! Odeio! Odeio! Odeio! – ela parou de gritar histericamente e olhou para Willa com os olhos azuis que, de súbito, ficaram frios e ferozes. – Willa, você tem que jurar que ninguém nunca saberá disso. Ninguém nunca pode saber como Luma Britto foi humilhada por aquele idiota. Jure, anda, JURE!

   Enquanto Willa balançava freneticamente a cabeça em afirmação e Luma voltava a cair no choro, um sorriso lento foi se espalhando pelos meus lábios. Ao que parecia, eu não precisaria bancar a caminhoneira cuspida no mundo e quebrar as costelas daquela idiota.  Tinha na cabeça uma vingança com muito mais classe. E o melhor era que eu não precisaria fazer nada, ela mesma já tinha feito tudo sozinha. Eu só teria que ter certeza de que cada aluno naquele hospício ficasse sabendo do fato…

   Afastei-me silenciosamente da sala e, com uma olhada no grande relógio no meio do corredor, vi que ainda faltavam umas duas horas para o jantar, mas mesmo assim me emcaminhei logo para o dormitório. Tinha certos preparativos a fazer e seria o lugar mais óbvio para Kimak me procurar se precisasse passar alguma informação. Além do mais, eu estava quase certa de ser alérgica aos imbecis daquela escola e quando mais tempo passasse longe deles, melhor para mim.

   Enquanto caminhava, fiquei pensando em outras coisas que a maldita da Britto havia dito. Está interessado na menina nova. Era eu, é claro, ainda que todos aqueles doces adjetivos que saíram da boca dela tenham me dado maior certeza do que o fato de eu ser a única aluna nova na escola. Quem era o namorado, ou melhor, ex-namorado secreto daquele projeto de stripper de Las Vegas? E por que estava interessado em mim? Bom, não posso fingir que a primeira pessoa que veio à minha cabeça não foi aquele ditadorzinho, e meu coração meio que disparou. Deve ter sido de nojo.

   Não importava como eu visse a coisa, tudo apontava para ele. Os dois eram amigos próximos, viviam juntos e ela vivia fazendo o que ele queria. E ainda tinham aquelas piadinhas sobre Chermont e eu que ela soltava para todo mundo, podiam ser provocações causadas pelo ciúme. Explicava aquela cena do banheiro, que foi pelo menos metade real. E além do mais, quantos garotos com pose de menino bom e decente, mas que por dentro já apodreceram, podem haver nesta escola?

   A coisa era que…bom, eu não conseguia vê-los juntos. Sei lá, eles eram tão parecidos que não combinavam. E ambos eram tão completamente autoritários e geniosos que era difícil imaginá-los sendo mais do que amigos. Tinha de ser outro garoto.

   E isso não tinha nada a ver com o fato de que eu detestei pensar nos dois juntos, fiquei com o estômago revirado e com vontade de vomitar. Por que não fiquei assim. E eu também não conseguia acreditar em um mundo em que Paulo Chermont terminasse com a namorada porque tinha uma paixão incontrolável por mim. Chermont e eu?  Dificilmente.

   Quando cheguei ao dormitório, ainda não havia resolvido o mistério do namorado, ex-namorado, secreto de Luma Britto que, aparentemente, estava interessado em Julieta Vaughan, a aluna nova caminhoneira. O dormitório estava quase vazio àquela hora, então aproveitei e tomei um banho, depois fiz umas adaptações necessárias no meu uniforme e o vesti, colocando um roupão por cima. Não queria que ninguém visse o figurino antes do espetáculo começar. Sequei e penteei os cabelos com esmero, deixando-os cair soltos e sedosos pelas costas. Estavam precisando desesperadamente de um corte. Até joguei pro vento o que restava dos meus escrúpulos e passei um pouco da maquiagem daquela criatura do abismo com cabelos cor-de-rosa. E um perfume um pouco doce demais da escrava sem personalidade.

   Eu estava até apresentável. Bonita, eu diria. Não deslumbrante e graciosa como muitas garotas daquele inferno, mas também não estava de se jogar fora. Estava limpa, cheirosa, com os cabelos soltos e desembaraçados, alguma cor no rosto e um uniforme muito mais interessante depois das minhas pequenas, mas substanciais, mudanças. Com um pouco de sorte, falta de bom senso e coragem, eu me vingaria daquele ogro.

   Ainda tinha algum tempo antes de ir encontrar com o Chermont, então peguei meu velho laptop e sentei na cama, começando imediatamente a trabalhar na vingança número 2, mas parando, apreensiva, de 5 em 5 minutos para olhar pela janela ver se Kimak tentara se comunicar comigo. Mas não o vi. Isso tinha de ser bom, certo? Se algo tivesse dado errado, ele me avisaria. Eu esperava que sim.

   Depois de algum tempo, comecei a ouvir o barulho das meninas chegando ao dormitório para se arrumarem para o jantar, e resolvi que era melhor eu descer logo, mesmo que ainda faltassem uns 15 minutos para a minha detenção. Não queria correr o risco de dar de cara com minhas adoráveis colegas de quarto. Troquei o roupão por um sobretudo preto que cobria todo o uniforme, passei mais uma vez a escova pelos cabelos, respirei fundo e desci. Meu coração estava disparado.

   Passei rápido pelas meninas que entravam no dormitório e saí. A noite estava fria e, pela primeira vez na vida, o frio era bem vindo. Justificava meu sobretudo. Acabei achando um lugar para ficar, encostada em um carvalho velho, onde ninguém poderia me ver e eu poderia ver todo mundo. Estava lá há apenas alguns minutos quando alguém soprou na minha orelha e me fez dar um pulo.

   Mas que d…?

   - Juro que achei que teria de subir e trazer você pelos cabelos. – Chermont disse com um sorrisinho. O idiota tinha vindo pelo outro lado.

   A arrogância daquele garoto me deixava queimando de raiva, mas eu precisava me controlar. Mordi a língua até sentir gosto de sangue, mas fiquei de boca calada. Não confiava em mim mesma para dizer nada naquele momento, por isso só assenti com a cabeça.

   - Você está um pouco adiantada, mas não tem problema, - disse ele, apoiando-se na árvore, ao meu lado – podemos ficar aqui e conversar um pouco.

   Como se eu quisesse conversar com aquele maldito! Mas aquilo seria ótimo para os meus planos, por isso, discretamente, dei uma olhada na porta do dormitório para ver se ainda havia alguém ali fora, mas todas as garotas já tinham entrado. E, aparentemente, aquele zumbi que fazia o trabalho de coordenadora da escola não achava que devia comunicar tudo ao presidente do Comitê Estudantil.

   - Seus joelhos já estáo quase cicatrizados, – observou ele – você já pode vestir o uniforme completo.

   O estúpido estava se referindo à meia calça. Minha língua coçava para dizer que, se ele gostava tanto daquela porcaria, ele mesmo podia vestir. Mas respostas mal criadas não iam me ajudar. Respirei fundo para me controlar e disse, baixinho:

   - Tudo bem, vou me lembrar disso da próxima vez.

   Paulo me olhava como se eu tivesse acabado de sugerir que nós dois fugíssemos pra casar em Vegas. E eu segurei o riso com dificuldade.

   - Julieta, você está bem? – perguntou ele, colocando a mão grande e quente na minha testa e me olhando com uma ruga entre os olhos.

   - Não, não estou bem – respondi, com uma voz frágil. – Na verdade, estou muito mal.

   - O que você tem? Quer ir à enfermaria? – perguntou, preocupado.

   - A enfermeira não pode me ajudar com o meu…problema.

   - Qual é o problema? Eu posso te ajudar?

   - Eu…acho que sim. Mas…você não vai querer – disse, quase com lágrimas nos olhos.   Hahá, vou ganhar o Oscar.

   Ele me segurou pelas mãos e me levou até um banco de pedra ali perto, me fazendo sentar e sentando-se ao meu lado. Ótimo, aquele era um lugar bem visível, ficava bem embaixo de um poste de luz. Eu continuava com a cabeça baixa, evitando fitá-lo nos olhos. O triunfo ia ser difícil de esconder.

   - Você pode me contar qualquer coisa – disse ele, ainda sem largar minhas mãos. – Eu sei que não começamos da maneira certa, mas você pode confiar em mim. É claro que eu vou te ajudar, eu sempre vou te ajudar.

   Aham, e eu ia realmente cair nessa. Otário.

   - Jura? – perguntei, com minha voz de menininha assustada.

   - É claro.

   Virei para o lado, como se tivesse vergonha do que ia contar, mas ele, delicadamente, segurou meu queixo e me fez olhá-lo. Empurrei sua mão e olhei para baixo.

   - Será que você não percebe? – perguntei, fingindo estar quase chorando. – Todas as coisas que fiz para chamar a sua atenção…e você…você só me trata mal…nunca vai me querer…

   Paulo estava atônito. Mais chocado, impossível. Ele me olhava com aqueles lindos olhos verdes completamente arregalados e eu quase não podia segurar a vontade de rir na cara dele. Era mesmo muito babaca se realmente pensava que eu – eu! – podia ficar mesmo que remotamente atraída por um troglodita como ele.

   - J-julieta, você – gaguejou ele, soltando repentinamente minhas mãos. – E-eu…

   - Não fala nada – eu disse, aproximando-me lentamente.

   Então, eu o beijei.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Gente, mandem reviews senão eu fico triste mimimi. Bom, espero que tenham gostado, beijos :)