Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 11
Capítulo 10


Notas iniciais do capítulo

Então, como amanhã é feriado e eu talvez não possa postar no sábado, estou postando hoje. Esse capítulo é dedicado a tathajovi, que fez uma recomendação super linda pra Manchas. Sério, fiquei super feliz e honrada, esse cap é pra você :)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/162378/chapter/11

 Ele congelou sob meus lábios. Eu também não me movi, mas fechei os olhos e implorei mentalmente para que aquilo desse certo. Comecei a ficar nervosa mesmo, o garoto parecia petrificado. Pronto, tinha tudo dado errado, eu não tinha a mínima ideia do que fazer. A opção menos humilhante seria me afastar e rir, dizendo que aquilo era só uma brincadeira. Certo, era isso que eu faria. Estava decidida a fazer isso, mas não fiz. Porque depois de uns trinta segundos, quando eu estava quase me afastando, Paulo levou uma de suas mãos para o meu pescoço e me beijou de volta. 

   Seus lábios eram quentes e macios, e seu hálito cheirava a hortelã. Sua mão no meu pescoço continuava firme e ele passou a usar a outra para brincar com meu cabelo. O beijo dele era gentil, como se pedisse permissão, completamente diferente do que eu achei que seria. 

   Melhor. 

   Mas eu não queria gentileza, não era disso que precisava para o meu plano dar certo. E eu quase esqueci disso por um minuto ou dois, confesso, quando aquele beijo me tirou o ar e me fez apertar as mãos com força até que as unhas feriram as palmas. Mas logo voltei à razão, precisava esquentar aquilo ali. Coloquei as mãos nos ombros dele e os arranhei com força, depois o puxei para mais perto de mim. Ele fez um barulho muito sexy com a boca colada à minha e usou a língua para me fazer separar os lábios. 

   Foi como se tudo sumisse da minha cabeça, já nem lembrava o porquê de estar fazendo tudo aquilo, só sabia que não queria parar. Mas uma pequena parcela de mim – que ainda estava funcionando corretamente – me avisou que era importante tirar o sobretudo, coisa que fiz, antes de abraçá-lo com mais ímpeto. Acabei com as costas no banco frio, mas não me importei, desde que a boca daquele monitor de quinta continuasse fazendo aquela mágica… 

   Não sei como, já que minha mente não estava funcionando muito bem, ouvi sons de passos. Acho que era porque estava um silêncio de morte por ali. Abri os olhos sem muita vontade, odiando quem quer que tivesse vindo nos atrapalhar, mas não vi ninguém. Já estava quase fechando os olhos novamente quando vi aquela coordenadora morta-viva horrorosa chegar vagarosamente na porta do dormitório, acompanhada de outra freira e um garoto. Ainda não tinham nos visto, mas era apenas uma questão de olhar um pouco para a esquerda, não estávamos exatamente escondidos.

    Tudo voltou como um raio. Em que merda eu estava pensando? Idiota, idiota, idiota! Havia quase esquecido do plano, da vingança e do ódio que eu estava sentindo pelo garoto que, atualmente, estava com a língua enfiada na minha garganta. Por cerca de um segundo, eu pensei em parar tudo, avisar ao Paulo e dizer para nos escondermos. Mas por quê? Só porque o maldito garoto beijava bem? Ok, muito bem. Mas isso não o redimia, ele ainda era um arrogante, depravado, idiota e corrupto. E eu ainda o odiava.

    E eu ainda seguiria com o meu plano.

    - Me solta! – gritei, de repente, depois de soltar minha boca da dele, com todo o ar que havia nos meus pulmões. – Socorro!

    Chermont soltou-me imediatamente e quase caiu do banco com o susto. Seu rosto estava pálido como eu nunca imaginei que sua pele poderia ficar e eu senti meu coração apertar. Eu não estava entendendo…por que raios me sentia tão culpada?

    Percebi que a morta viva e seus capangas nos tinham visto, graças aos meus gritos, e agora deviam estar tendo alguma reação. Pena que eu nunca saberia qual era essa reação, porque meus olhos não se desgrudavam de outros, verdes e feridos. Uma coisa eu precisava dizer sobre Paulo Chermont: ele não era tão burro assim. Seus olhos me diziam claramente que ele havia entendido tudo, mas agora já era tarde demais para fazer alguma coisa.

    Isso ficou óbvio quando um par de braços fortes o agarrou e tirou de perto de mim com violência. Reconheci o garoto como sendo um dos amigos do Paulo, o com cara de surfista. O garoto ficou segurando o Chermont como se ele fosse voltar a me “atacar”, mas ele se soltou quando as freiras chegaram ao local, muito lentamente graças à dificuldade da coordenadora zumbi de se movimentar.

    - Meu Deus! – ginchou irmã Christine e a freira ao seu lado, irmã Manuela, fez coro.

    As duas alternavam os olhares entre Paulo e eu. O rosto dele estava pálido, seus lábios vermelhos de me beijar, as mãos apertadas ao lado do corpo, a expressão sombria e impenetrável, seus olhos fixos em mim como se estivessem me vendo pela primeira vez.   Eu estava com o uniforme todo rasgado, a blusa quase sem botões – eles estavam agora na lixeira do banheiro do dormitório feminino -, o cabelo bagunçado pelos dedos do Paulo. Eu não sei, mas devia estar parecendo assustada. E não era encenação, eu estava mesmo assustada. Só que não pelos motivos que os outros estavam pensando.

   Continuei estática, olhando assombrada para o Paulo até que irmã Manuela pegou meu sobretudo do chão e me cobriu com ele. Eu comecei a rezar para que ninguém me pedisse para explicar o que havia acontecido e só me mandassem para o meu quarto no dormitório. Eu já não tinha certeza do que diria. Todas as acusações que eu tinha cuidadosamente ensaiado haviam sido carbonizadas por aquele olhar verde. Paulo me olhava como se o desprezo dele não pudesse ser maior, como se eu o houvesse traído da forma mas vil e cruel, como se ele quisesse que eu sumisse da frente dele para sempre.

   Era justamente isso que eu queria fazer. Não suportava mais ser olhada daquele jeito. Desviei os olhos e fitei meus sapatos.

   - Eu não acredito na cena que acabei de presenciar – irmã Christine soltou, colocando uma mão no rosto, como se quisesse cobrir os olhos. – Em todos os anos em que trabalho nesta instituição…nunca…estou tão chocada…não, não posso resolver isso, não mesmo, não tenho mais idade nem suporte emocional. Irmã Manuela, leve-os para a Madre Superiora.

   - Irmã, mas a menina… - disse irmã Manuela, praticamente abraçando-me. – Não acho que seja bom ela ficar tão perto do…do…

    - Sim, claro – concordou irmã Christine, rapidamente. – Você leva a menina e você, Vicentini, espere um pouco e leve o Chermont até o gabinete da Madre Superiora.

   Ainda olhando para os pés, segui irmã Manuela para o prédio principal, que logo estaria cheio de alunos indo para o refeitório para o jantar, mas que agora estava quase vazio. Eu não tinha ideia de onde era o gabinete da madre superiora, não me importava muito, estava cheia de coisas na cabeça, até tropecei enquanto subíamos as escadas. Juro que era melhor do que se eu estivesse encenando. Meu olhar assustado, minha apatia e distração...passavam exatamente a ideia que eu queria passar no início. Irmã Manuela passou um braço pelos meus ombros, como se aquilo fosse me confortar. Como se eu precisasse ser confortada! Não a rejeitei, mas fiquei com uma vontade estranha de...chorar.

    Chegamos a um tipo de sala de espera, perto da sala de irmã Christine, e irmã Manuela me fez sentar numa poltrona antes de bater na porta do gabinete da madre superiora. Entrou logo em seguida, deixando-me ali sozinha. Tudo o que eu não queria. Porque agora tudo o que me vinha à cabeça era o beijo gentil e quente do Paulo...e depois seu olhar frio e traído. Qual era o problema comigo? As coisas em que estava pensando não eram normais para mim, não era do tipo que se importava se machucasse as pessoas, mesmo antes de toda a minha vida mudar. Por que, então, sentia-me tão culpada? Por que queria sair dali, correr até Paulo, abraçá-lo e pedir desculpas por ter sido uma megera filha da mãe com ele? O que diabo estava acontecendo comigo? Eu estava realmente cogitando a ideia de me desculpar? Eu? Com aquele adorador do satã?

   Apoiei a cabeça nos joelhos e rezei para sumir. Só queria ir para o meu quarto, desaparecer embaixo das grossas cobertas e acordar amanhã sabendo que tudo isso tinha sido um pesadelo. Ouvi uma porta se abrir e pensei que era irmã Manuela saindo da sala da madre superiora, mas era a porta da sala de espera que se abriu e Paulo e o garoto Vicentini entraram. Estremeci e me ajeitei no sofá, mas Paulo não olhou na minha direção nenhuma vez, diferente do seu amigo, que me lançava olhares quando pensava que eu não estava olhando. Nenhum de nós disse nada.

   Irmã Manuela saiu da sala da madre superiora visivelmente transtornada e fitou os dois meninos com desaprovação, mas quando seu olhar caiu em mim, seu semblante se suavizou. Senti-me ainda mais culpada e desviei o olhar.

   - A Madre Superiora deseja falar com o sr. Chermont e a srta. Vaughan, como já era de se esperar – disse, torcendo os lábios como se estivesse contrariada. – O sr. Vicentini pode me esperar lá fora por enquanto, não vou demorar e o senhor poderá me acompanhar até o refeitório, se não se incomodar.

   O garoto concordou com um aceno de cabeça e uma olhada rápida para Paulo e eu, então saiu. Irmã Manuela voltou-se para mim assim que a porta bateu, sentou-se ao meu lado e segurou minhas mãos. Só fiquei olhando para ela, aturdida.

   - A senhorita não precisa ter medo – ela disse, com um olhar maternal e uma ruga de preocupação entre as sobrancelhas. – Eu prefereria que a madre os visse separadamente…mas ela sabe o que faz – acrescentou mais para si do que para nós.   Depois voltou a olhar para mim com carinho.

   Seu olhar era tão doce e preocupado que eu me senti suja e puxei minhas mãos das dela com rispidez e não disse nada. Ela deu umas palmadinhas no meu ombro e eu levantei rapidamente, atravessando o aposento e entrando no gabinete da famosa madre superiora sem bater. Eu estava ligando o modo "dane-se". Aquela freira não me assustava e eu não aguentava mais ficar perto da irmã Manuela e da sua preocupação.

   A sala da madre superiora era apenas ligeiramente maior que a da irmã Christine e a decoração era bem parecida. A diferença mais óbvia eram os armários com arquivos numa das paredes, que eram bem maiores que os da coordenadora zumbi, e as cadeiras na frente da escrivaninha, que pareciam infinitamente mais confortáveis do que aqueles objetos de tortura da morta viva. E também tinha a própria madre superiora, alta, morena e corpulenta. Devia ser uns vinte anos mais jovem que a irmã Christine, mas algo nela transmitia sabedoria. Talvez fossem seus olhos, grandes e astutos, de cor meio indefinida, algo entre o castanho e o cinza. Havia algo em seu rosto que me avisou que, apesar de bondosa e justa, aquela não era uma mulher que eu poderia enganar. Engoli em seco. 

   Ela apenas me olhou por um momento, sem raiva ou desaprovação, mas como se estivesse me avaliando. Não dissemos nada e eu não me movi. Ouvi batidas na porta e depois de um "entre" dito numa voz grave e austera pela madre, Paulo entrou na sala.   Sabia que era ele, mesmo sem me virar para vê-lo, sabia que era ele porque meu coração não bateria tão rápido no peito se fosse outra pessoa, sabia que não podia ser ninguém mais porque eu conhecia o cheiro dele, que ainda estava impregnado em mim, sabia que era ele porque minhas mãos começaram a suar e eu precisei secá-las no meu casaco.   Mesmo agora eu podia lembrar de como ele fora doce comigo, de como o beijo dele me havia feito sentir e de como eu queria sentir aquilo de novo.

   Meu senhor, estou louca!

   - Sentem-se, por favor - a madre pediu, desviando seu olhar para o Paulo, que agora estava ao meu lado, a distância de um braço esticado. - Fiquem confortáveis.

   Paulo se moveu antes de mim e sentou-se na cadeira da direita e eu logo ocupei a da esquerda, esforçando-me para manter os olhos fixos nas minhas mãos e não olhá-lo nem de relance. Não foi fácil.

   - Ainda não tivemos a oportunidade de nos conhecer, Julieta - começou a madre, assim que nos sentamos. Ela olhava diretamente para mim, parecendo simpática, mas seus olhos eram duros. - Entretanto, eu já ouvi muito sobre você de alguns professores e do Paulo aqui.

   Se era essa galera que estava falando de mim para a madre superiora, só podia ser merda. De maneira nenhuma eu conseguia ver o professor Hertzog ou o Paulo enchendo minha bola para a diretora. Não resisti e revirei os olhos.

   - Algum problema? - perguntou ela.

   - As pessoas não deveriam falar do que não conhecem – reclamei, mas só por reclamar. Ainda que Paulo e os professores me conhecessem de verdade, não haveria nada de bom para falar sobre mim.

   É, sou esse tipo de pessoa.

   - Concordo totalmente com você, Julieta, mas é exatamente por isso que o garoto sentado ao seu lado é muito valioso para mim. Apesar da pouca idade, nunca conheci uma pessoa capaz de julgar um caráter tão bem quanto ele.

   Estremeci e desviei o olhar para o Paulo por apenas um segundo. Sua expressão era impenetrável e eu senti que faria qualquer coisa para saber no que ele estava pensando. E o que será que ele tinha dito de mim para aquela freira? Coisa boa não era, eu tinha certeza, já que todas as vezes que nós ficávamos no mesmo aposento, acabávamos começando uma guerra. O garoto não tinha mesmo nada de bom para falar de mim, até eu admito.

   - E é por isso que eu queria vê-los juntos - a madre continuou, com sua voz grave, mas agradável. - Acho que dessa vez, Paulo cometeu um erro. Ele errou com você, Julieta. Mas eu não tenho certeza disso, por isso estamos todos aqui.

   O modo como ela falava meu nome, como se me conhecesse há muito tempo e soubesse coisas sobre mim que nem eu sabia, já estava me assustando.

   - Um erro? - repeti. - Que erro?

   A madre fez que não com a cabeça.

   - Falaremos disso depois, quando eu tiver certeza - disse. - Agora o importante é saber o que você fará, Julieta.

   - O que eu f-farei? - gaguejei. Aquilo não estava cheirando nada bem.

   - Se as coisas realmente aconteceram como irmã Manuela disse de forma tão enfática, certas atitudes precisam ser tomadas e eu precisarei da sua ajuda.

   - Que tipo de atitudes precisam ser tomadas? E como eu posso ajudar? - perguntei baixinho, minha voz tremia.

   A madre me fitou com um olhar atento e fixo, com a sugestão de um sorriso no rosto, que desapareceu tão rápido como veio. Eu devia ter sonhado.

   - Paulo Chermont é um aluno exemplar, dedicado, correto e talentoso. - disse. - Será uma enorme perda para a instituição, mas em vista dos recentes acontecimentos, creio que a única solução será expulsá-lo, você não acha?

   O quê?! Não! Quer dizer, não era aquilo que eu queria! Tudo o que eu queria era fazê-lo sofrer um pouco, acabar com a pose de certinho dele, fazê-lo saber que não podia mandar em mim, que não podia fazer o que quisesse. Mas não queria que as coisas acabassem daquele jeito.

   - O que eu realmente quero saber é se você pretende ir à polícia denunciá-lo - continuou a madre, já que o choque parecia ter paralisado minha língua. - É claro que a escola lhe dará todo o suporte e tenho certeza que as irmãs Manuela e Christine não se importaram de relatar o que viram. Até ouso dizer que Pietro também não se oporá. Apesar de sua conhecida amizade com Paulo, Pietro tem a fama de nunca perder a oportunidade de impressionar uma mulher. E ouso dizer que até hoje ele não falhou. Um menino engraçado, mas muito querido por aqui. Não tenho dúvidas de que ele também lhe ajudará.

   Aquilo tinha de ser um pesadelo! O mundo não podia simplesmente pirar daquele jeito! Não estava certo! Eu não queria que nenhuma freira me ajudasse a denunciar o Paulo, ele não tinha culpa, não tinha feito nada de errado! Eu estava perdida, o que tinha de fazer?

   Por que raios eu me sentia tão mal?

   - Tenho certeza de que você tomará a decisão correta, - a madre continuava falando - afinal, essa é uma situação muito grave e inaceitável nesse colégio e -

   - Chega! – gritei, incapaz de continuar ouvindo aquela loucura. - Não foi nada disso.

   - Não?

   - A culpa é toda minha, ok? Eu armei tudo porque estava com raiva do Chermont e queria me vingar. Ele não fez nada de errado.

   Sou mesmo idiota.

   - E por que você está dizendo isso agora? Ter ele fora da escola não seria a vingança perfeita? – a madre insistiu.

   - Não!

   A sala ficou mergulhada em silêncio. Conseguia ouvir minha respiração ofegante e o coração martelando nos ouvidos. Encarava a madre superiora com a cabeça erguida, mas aquela horrível vontade de chorar ainda não havia me deixado. Sentia uma pontada atrás dos olhos, mas me controlei. Julieta Vaughan sempre foi controlada. Não ia chorar na frente daquela galera. Humilhação não combina comigo.

   - Então você armou tudo isso para se vingar, certo? - a madre perguntou, sem nunca mudar o tom de voz. Era como se ela soubesse, não estava nem um pouco surpresa. É, eu sou burra mesmo. Ela fez todo esse teatrinho e eu caí completamente. - E sabe que agora que contou a verdade, você que corre o risco de ser expulsa, não é? O que você fez foi muito grave.

   - Eu não me importo - disse. Já cavei minha sepultura mesmo...

   - Se não se importa, por que não deixou Paulo ser expulso em seu lugar? Afinal, que diferença faria?

   Respirei fundo, já perdendo a paciência.

   - É o seguinte - eu disse, com toda a calma que pude juntar. - Eu não sou valiosa ou querida nesta escola. Não sou dedicada ou estudiosa. Estou longe de ser um exemplo. Sou de fora. Não pertenço a este lugar. Nunca quis vir para cá, para começo de conversa. Ele é valioso, querido, dedicado, estudioso, talentoso e todas essas merdas. As pessoas gostam dele. O lugar dele é aqui. Mas o meu não é. Não me importo de ser expulsa. Não é como se isso fosse novidade, não é?

   Recusava-me a olhá-lo, mas sentia seus olhos em mim. Eu estava muito interessada na textura sem graça do tecido da cortina, ao que parecia. A madre superiora também me olhava, mas eu não estava com medo ou com vergonha dela, mesmo depois de tudo o que eu havia dito.

   Vergonha na cara? Pois é, não tenho.

   - Paulo, querido - a freira disse, de repente, quebrando o silêncio e virando-se para ele. - Você poderia repetir, isto é, se ainda se lembrar, o que me disse sobre a aluna ao seu lado, dois dias atrás?

   Fiquei paralisada. Não estava certa de que queria ouvir aquilo, minha noite já tinha sido mais do que eu poderia esperar ou aguentar e tudo o que eu queria era cair na cama e dormir por três meses. Fechei os olhos e esperei, mas ele não disse nada. Parecia que Chermont estava com tanta vontade de dizer quanto eu de escutar. A curiosidade brotou em mim. O que poderia ser tão ruim? Abri os olhos e reuni coragem para encará-lo. O garoto me fitava com uma expressão que eu não conseguia entender. Eu via raiva e mágoa nos seus olhos. Mas havia outras coisas também.  Orgulho? E por que seu cenho estava franzido como se ele estivesse preocupado?

   - Você se lembra, querido? - perguntou a madre.

   - Sim - ele respondeu, com a voz rouca por ter ficado tanto tempo calado.

   - Se importa de repetir para mim?

   Ele passou uma mão pelos cabelos e continuou me encarando. Agora olhávamos um nos olhos do outro. Verde e azul se enfrentavam, como se quisessem enxergar por trás das cores. Então ele disse:

   - Não acho que Julieta Vaughan seja uma aluna especialmente interessada ou esforçada. Não presta atenção nas aulas e não tem respeito pelas regras ou pelas pessoas. Não se mistura, não se envolve e não faz amizades. Acha que consegue se sair bem sozinha e não precisa de ninguém. Tem medo de se aproximar, de depender das pessoas, tem medo de se machucar. É sensível e vulnerável, mesmo que não deixe ninguém perceber. Acho que, no fundo, ela tem uma enorme vontade de encontrar um lugar onde possa se encaixar. Algo ou alguém a machucou muito no passado e isso mudou sua forma de ver o mundo. É uma garota incrível, que me surpreende a cada segundo que passo com ela. Quando penso que não há mais nada para ver, ela me mostra algo diferente em sua personalidade. Ela precisa ser amada, cuidada e protegida. Não tem a menor ideia do efeito que causa nas pessoas.

   Ele estava falando sério?

   - Seus olhos fazem com que eu queira descobrir mais sobre ela – ele continuou, cortando o contato visual comigo e olhando para algum ponto da parede. – E seu sorriso é lindo.

   Desviei o rosto. Não conseguia pensar em nada para dizer. Não conseguia pensar e ponto. A culpa agora era como fogo líquido queimando em minhas veias. Ele havia conseguido ver meu coração e alma, de um jeito que nunca ninguém pôde. Ele havia me lido e descoberto muito sobre mim em apenas poucos dias. E ainda me via uma pessoa melhor do que eu realmente sou. O garoto era uma contradição. Esperto e ingênuo. Duro e gentil. Enxergava o animalzinho ferido dentro de mim, mas onde eu via remorso e ódio, ele via algo que parecia...valer a pena. Quem sou eu, afinal? 
   Uma lágrima solitária ameaçou escapar de um dos meus olhos e eu fiz o impossível para contê-la. A madre superiora me encarava com um sorriso bondoso nos lábios e Paulo parecia ter achado algo muito interessante na cortina que eu fitara apenas momentos antes. 

   - E então, Paulo, – começou ela - já faz dois dias que você me disse exatamente essas palavras. Algo mudou desde então? Você acha que cometeu um erro de julgamento?
   Sim.

   - Não.

   - Eu também acho que não, mas precisava ter certeza – a madre então se voltou para mim. – O que você pensa sobre segundas chances?
   - É para eu ser sincera? – perguntei, ainda um pouco trêmula.
   - Nunca lhe pediria nada menos que sinceridade.
   Respirei fundo e disse, ainda que fosse acabar com qualquer chance que eu ainda tivesse:
   - São inúteis. As pessoas não mudam, a não ser para pior.

   - Eu sou de opinião diferente. E estou disposta a lhe dar uma segunda chance, isto é, se Paulo também estiver. Afinal, ele foi o mais afetado nessa história toda. O que você acha, querido?
   - Nós não podemos obrigá-la a ficar - ele respondeu, ainda olhando fixamente para a cortina. - Mas também não precisamos obrigá-la a ir. Eu estarei de acordo com a decisão que a senhora tomar, madre.

   Que diplomático. Ótima maneira de dizer “que seja, eu não poderia me importar menos”.

   - Ótimo, então – a madre disse, visivelmente satisfeita. – Você pode não acreditar em segundas chances, mas vai receber uma de qualquer jeito. Espero que saiba aproveitá-la. Vocês estão com fome?
   Sacudi a cabeça em negação e Paulo fez o mesmo.

   - Então sugiro que vão para o dormitório. Falarei com as irmãs Manuela e Christine, e também com Pietro, para que essa história fique entre nós. Estão ambos dispensados.

   Levantei-me lentamente, não confiando em minhas pernas para me sustentarem. Paulo já havia desejado boa noite para a madre superiora e já estava na porta, quando ela o chamou.

   - Sim?
   - Seja um cavalheiro e leve Julieta até o seu dormitório, Paulo, querido – pediu, num tom que não deixava dúvidas de que, no fim das contas, era uma ordem. 

   - Claro.

   - E você, Julieta, a quero aqui no meu gabinete na segunda feira, às 7 da manhã. Acredito que precisamos conversar.

   Assenti e Paulo segurou a porta para eu sair da sala da madre. A expressão dele era neutra, mas eu podia perceber que seus lábios estavam apertados em uma linha fina. Eu ainda estava tão atônita que não tinha forças para repelir a ordem da diretora, nem para nos poupar de uma caminhada constrangedora até o dormitório feminino. Saí da sala sem me despedir e caminhei na frente do Chermont. Ouvia seus passos atrás de mim, fortes e decididos enquanto descíamos as escadas. Meu coração batia forte no peito, até o ponto em que pensei que ele saltaria pela minha garganta. Eu sabia que ele não me deixaria ir assim. E já tinha planejado as palavras que diria a ele.

   Sua mão apertando meu antebraço e me puxando em direção a uma sala vazia não foi bem uma surpresa. Ele fechou a porta atrás de si e encostou-se nela. Fitou-me com intensidade, como se estivesse tentando ver algo através de mim. Seu rosto estava pálido, as maçãs do rosto ligeiramente coradas, o cabelo bagunçado pelas minhas mãos e depois, pelas dele. Os olhos eram duas esmeraldas frias queimando minha pele.

   - Sobre o que você disse lá em cima, eu – comecei, mas ele levantou uma mão, fazendo-me calar.

   - Esqueça isso – ele disse, frio. – Eu só quero saber uma coisa.

   - O quê? – perguntei, nervosa. Aquilo não era nada do que eu estava esperando e não sabia como reagir.

   - Quando você me beijou...o que você sentiu?
   Prazer. Desejo. Liberdade. Paz. Fogo. Foi como provar o céu. Foi uma dor que eu não queria parar de sentir. Uma tortura doce. Uma lembrança e um aviso. O que minha vida era e o que poderia ter sido. Confusão. Medo.

   Mas para ele, eu apenas disse:

   - Nada.

   - Nada?
   Assenti, incapaz de repetir a mentira. 
   Ele se aproximou e, por um segundo, seus olhos refletiram a mesma confusão que eu sentia. Eu fiquei parada, mesmo quando ele me segurou pelos ombros e me empurrou contra a parede com delicadeza. Uma de suas mãos subiu e segurou a parte de trás do meu pescoço, a outra deslizou com suavidade por meu rosto, antes de ele baixar a cabeça e cobrir meus lábios com os seus.

   Isso era uma surpresa.

   Foi um beijo suave e delicado, que eu senti no corpo todo. Ainda melhor que o primeiro, mais intenso e mais verdadeiro. O sabor dele era ainda melhor do que eu lembrava, apesar de tê-lo beijado apenas uma hora antes. Era doce e salgado, quente e frio, era suave e intenso, gentil e autoritário. Era como se ele me exigisse uma resposta, que naquele momento eu não tinha problemas em dar. Mas quando eu correspondi ao seu beijo e levantei os braços para passá-los por seu pescoço, ele se afastou.

   - O que houve? – perguntei, rouca. Então percebi o que tinha estado fazendo e senti minhas bochechas se tingirem de vermelho. – Q-quer dizer, o que você pensa que está fazendo? – perguntei, agora com um tom que eu esperava que mostrasse ultraje.

   - Nada – ele disse simplesmente. – Absolutamente nada.

   Então se virou e saiu, batendo a porta atrás de si.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ah, eu mudei a capa, vocês gostaram? Não deixem de mandar reviews dizendo o que estão achando, é muito importante pra mim. Beijos :)