Manchas escrita por Juliiet


Capítulo 9
Capítulo 8


Notas iniciais do capítulo

Bom, aqui tem mais um capítulo. Ele tinha ficado muito grande, então eu cortei ele e a outra parte vai ficar como o capítulo 9. Ele ficou meio chato, mas o próximo é meu preferido! Espero que gostem, nos vemos nas Notas Finais :)
Boa Leitura.



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   - Soube que a senhorita foi para a detenção algumas vezes essa semana - a coordenadora, irmã Christine, me olhava com aqueles pequeninos e sagazes olhos marrom escuro cobertos por óculos engordurados. Ela devia ter por volta de 70 anos e era tão minúscula que mal chegava à altura dos meus cotovelos. Usava aquela mesma roupa horrorosa das outras freiras e aposto que seus dentes não eram de verdade. Dava para ouvir o barulho da dentadura rangendo toda vez que ela falava.

   Nojento.

   - Pensei que estávamos aqui para que eu pudesse me inscrever nas atividades vespertinas - eu disse, mudando de posição na cadeira de visitas desconfortável do gabinete da Mulher da Dentadura. - Não para falar das minhas detenções.

   - Seu pai nos avisou que você talvez desse um pouco de trabalho - ela disse com um suspiro, mais para ela do que para mim.

   - Se eu fosse a senhora, não confiaria muito no que o velho diz. Ele é mestre na mentira – comentei. Ele é meu pai, afinal de contas. Se isso não diz alguma coisa, então irmã Christine tinha um raciocínio meio lento.

   A freira me olhou por trás das lentes grossas dos óculos, que pareciam estar sempre escorregando, do mesmo jeito que a maldita dentadura, que já me havia embrulhado o estômago. Parecia que ela estava com pena de mim, com aquela expressão que só os adultos sabem fazer, como se dissessem “tão novinha e tão burra, coitada”, que eu odiava com todas as forças do meu ser. Era só o que me faltava, receber um olhar de pena de uma mulher que já havia entrado em processo de decomposição. Estava quase mandando ela pegar aquela pena e enfiar no nariz, só me segurei por causa daquele ensinamento enraizado quase nos ossos de respeitar os mais velhos. Não que eu lembre dessa porcaria o tempo todo, só quando estou lidando com velhos mesmo. Com direito a cabelo branco e dentadura que solta.

   Ainda não cheguei ao ponto de maltratar velhinhos, por favor.

   Nenhuma de nós duas disse nada por um momento, então irmã Christine suspirou de novo e começou a vasculhar as gavetas, provavelmente à procura das listas de atividades. Enquanto ela fazia isso, eu dei uma olhada melhor no gabinete. Era de um bom tamanho, nem muito grande nem muito pequeno. Tinha aquela linda mesa de mogno atrás da qual a freira estava sentada e duas cadeiras na frente - só ter de sentar nelas já era uma espécie de punição, imagino, de tão desconfortáveis que eram - numa das quais eu estava sentada. Tinha também um armário com alguns arquivos e era só isso. A decoração - duvidosa, na minha opinião - ficava por conta de uma cruz enorme pendurada na parede atrás da irmã Christine e da enorme janela que dava para o pátio.  Aposto que a irmã passava o dia todo espionando a vida dos alunos.

   - Aqui estão - disse a freira finalmente, entregando-me algumas pastas. - Você precisa escolher no mínimo três atividades, mas, se quiser e achar que vai conseguir dividir bem o seu tempo, pode escolher até cinco.

   - Três já é ruim...quer dizer, já é bom o suficiente - falei, pegando as pastas e observando as opções que eu tinha. Já havia decidido me inscrever nas aulas de hipismo, que era algo que eu realmente gostava, mas antes precisava saber se algum filho do diabo também estava inscrito.

   É, eu realmente não dou sorte. Lá estavam aquelas criaturinhas do inferno. Luma Britto, Willa Becker e Paulo Chermont. Logo os três. A única coisa que eu realmente queria fazer e agora precisaria aguentar essa turma se me inscrevesse. Mas, quer saber?  Não iria me deixar intimidar e simplesmente faria o que eu quisesse. Paulo já me perseguia mesmo, e não se passava um dia sem que eu o visse. E Willa e Luma dormiam no mesmo quarto comigo, quer dizer, dava para ficar pior? Só se o Paulo resolvesse se mudar para o meu quarto. Só de pensar nisso, já me dava vontade de me atirar pela janela. Bom, eu peguei a caneta, assinei meu nome na lista e a entreguei para irmã Christine, então comecei a olhar as outras atividades. Dança, natação, clube de leitura, trilha, desenho e pintura, trabalhos manuais, culinária, clube de ciências, de matemática, coral, um monte de bosta. Que droga, não tinha nada que eu soubesse - ou quisesse - fazer ali.

   Irmã Christine olhava, um pouco surpreendida, para a lista onde havia assinado meu nome. Parecia que ela não me achava muito capaz de me equilibrar em cima de um cavalo. Ou isso ou ela deve ter se inteirado das minhas muitas discussões com o maldito do Chermont e não achou que eu fosse me inscrever em uma atividade que ele também fazia. No final, era isso, mas bem pior do que eu tinha imaginado, pois ela disse:

   - A senhorita sabe que essas atividades são controladas e supervisionadas pelos próprios alunos, não é? E Paulo Chermont é o responsável pelas aulas de hipismo.

   Eu juro que preciso comparecer a uma sessão do descarrego, porque eu só posso estar com um encosto!

   - E ele não vai me deixar entrar, é isso? - perguntei, rezando para que o desgraçado não aparecesse na minha frente naquele momento, já que eu não queria ser condenada por homicídio aos 16.

   - Ora, não é isso - ela respondeu, perplexa. - Todos os alunos podem participar das atividades, sem exceção. Só o que quis dizer é que Paulo Chermont é presidente do Comitê.

   - Já sei disso. Ele repete até cansar. Acho que o poder lhe subiu a cabeça.

   - Ele também é muito exigente - disse, ignorando a minha acusação de megalomania.

   - Eu também sou.

   - Bom, se insiste...

   - Eu insisto.

   - Certo, e o que mais vai fazer?

   - Nada - eu respondi, levantando as pastas e soltando-as na mesa. - Aqui só tem porcaria.

   - Que linguajar impróprio! - a freira exclamou, quase fazendo com que a dentadura se soltasse de vez. - A senhorita precisa aprender a ter modos! Só não a mando para a detenção porque já fui informada de que tem uma hoje, antes do jantar, por ter ofendido a senhorita Britto e por ter começado uma confusão no corredor.

   - Mas eu não comecei confusão nenhuma! Foi aquele monitorzinho de quinta categoria que começou a fazer escândalo e -

   - Senhorita Vaughan! Mais uma declaração dessas e vai ficar de detenção por uma semana.

   - Mas por quê? Eu não fiz nada!

   - Esse seu modo de falar vulgar e suas mentiras são coisas sérias para mim e para esta instituição.

   - Mas eu não contei mentira nenhuma, é sério! - aquela mulher estava louca? Qual era o problema dela? - Eu estava na minha e o Paulo chegou e começou a gritar e a socar a porta do banheiro e -

   - Chega! Você estava querendo ser punida e conseguiu. Detenção por uma semana! - a mulher nem me deixou terminar de falar antes de praticamente gritar isso na minha cara. Que ordinária! - O aluno, aliás, os alunos Chermont são alunos exemplares. Boas notas, bom comportamento, responsabilidade e comprometimento é o que não falta a nenhum deles, especialmente ao Paulo, que, por seus próprios méritos, foi escolhido pela madre superiora como o presidente do Comitê Estudantil. Nunca causou um problema sequer! E a senhorita vai prejudicar a si mesma se começar a inventar mentiras sobre os bons alunos desta escola.

   Espera aí, tem mais de um? Eu tô ferrada.

   - Mas eu juro que não estou inventando nada! - insisti, indignada com aquela injustiça. - A culpa foi toda do Paulo e -

   - Melhor parar com essas mentiras, menina, antes que eu adicione mais uma semana de detenção para você. Paulo Chermont é um aluno modelo e eu não vou mais discutir isso com a senhorita - como sempre, a velha moribunda nem deixava completar uma frase, depois a sem modos sou eu. Que palhaçada.

   Aparentemente ninguém por aqui sabe quem aquele infeliz daquele monitor é de verdade, além de mim claro. E talvez o Gabe Kimak, que não pareceu muito contente com o Chermont quando nós dois conversamos.

   - Vou deixar a senhorita terminar de escolher suas atividades sozinha - disse irmã Christine, levantando-se e fazendo uma pasta cair. - Ah, esqueci de lhe dar esta, tome - me deu a pasta e se apressou para a porta com passos curtos. - Estarei esperando aqui fora, com a secretária, assim lhe darei tempo para fazer suas escolhas e, quem sabe, refletir um pouco sobre o seu comportamento - terminou, sugando a dentadura frouxa para que ela não saísse da boca. Ai Deus, alguém, em nome da decência, cole a dentadura desta mulher com cimento, por favor.

   Já não restavam dúvidas. Aquilo não era um colégio, era o 3º Reich e o Chermont era o Hitler! A prova disso era que o moleque não só tinha feito lavagem cerebral nos estudantes, como nas freiras também! Nem as mortas escaparam, irmã Christine era a prova viva - ou não - disso. Que contradição. Mas voltando a falar do diabo, seria capaz de apostar qualquer coisa como aquela porcaria de Comitê ou sei lá o quê era só fachada para que aquele erro genético pudesse fazer o que quisesse e mandasse no colégio. Isso incluía ameaçar e intimidar pobres e inocentes garotas como eu. Logo eu! A novata que não havia feito nada de errado e já estava colecionando detenções.

   Ah como eu tinha nojo daquele bandido corrupto! Mas a hora dele ia chegar, eu me encarregaria disso pessoalmente. Porém, naquele exato momento tudo o que eu podia fazer era me inscrever logo em qualquer porcaria de atividade e me mandar para bem longe daquele gabinete e da coordenadora cadáver. Abri a pasta que ela havia me dado antes de sair e fiquei agradavelmente surpresa ao descobrir uma atividade não tão inútil assim. Música. Eu poderia fazer isso, claro, sabia tocar violão e piano desde pequenina, apesar de ter uma voz de papagaio gripado para cantar. E o melhor de tudo, Paulo e seu séquito estavam fora! Nenhum deles deve ter talento musical, graças aos deuses do templo da boa sorte. A aluna responsável era uma tal de Beatrice Lee Ferrer. Inscrevi-me rapidinho. Agora só faltava uma. O único problema é que era tudo merda, não tinha nada nem remotamente interessante para se fazer naquela maldita escola!

   Dança. Só se fosse para acabar quebrando as duas pernas e ter de passar o resto do semestre numa cadeira de rodas. Trilha. Só se fosse para quebrar as duas pernas, os dois braços, a cabeça, o nariz e o pescoço e ter de passar o resto da vida num hospital. Trabalhos manuais. Só se fosse para fazer cerâmica agarradinha com o Patrick Swayze. Clube de leitura. Eles liam o quê? A bíblia? Não, obrigada. Clube de ciências. Duvido muito que me deixassem fazer uma bomba para explodir esse colégio. Clube de matemática. Já me bastava a tortura semanal do professor Hertzog. Culinária. Perfeito, aí eu poderia fazer um bolo envenenado e dar para o Chermont. Desenho e pintura. Só se fosse para fumar as tintas e...

   Estava quase jogando a pasta de Desenho e pintura para o alto, como havia feito com as outras, quando vi um nome. Um nome lindo, brilhante, uma rajada de esperança em meio àquele antro de sujeira. Aluno responsável: Gabriel Adrian Kimak. Era exatamente o que eu precisava! E nem preciso dizer que as crias do satã também não estavam inscritas nessa atividade! Por isso nem pensei duas vezes e tive o enorme prazer de assinar meu nomezinho naquela lista abençoada, ainda que não soubesse desenhar nem boneco palito. Ia ter a oportunidade de passar mais tempo com o Gabriel, irritar o Chermont - com o bônus de ele não poder reclamar, afinal, não era culpa minha se Kimak e eu havíamos desenvolvido interesses em comum - e aprender a desenhar, tudo no mesmo pacote! E era mais uma atividade onde eu não teria de ver a cara das minhas colegas de quarto retardadas. Perfeição.

   Já estava com a mão na maçaneta para sair dali quando o dia ficou ainda melhor. Eu era definitivamente um gênio. Tinha acabado de me ocorrer o plano perfeito para me vingar do Paulo. Mas eu iria precisar da ajuda da irmã Christine para tudo dar certo, então sufoquei a risada maligna, cruzei os dedos e abri a porta.

   Irmã Christine e a secretária estavam conversando calmamente, mas calaram-se assim que eu saí do gabinete e olharam para mim - como sempre, com reprovação.  Aparentemente eu sou a ideia que elas fazem de uma delinquente juvenil. Aliás, apostaria todos os meus dentes que a irmã Christine era uma fofoqueira inveterada e estava contando todos os babados ao meu respeito para a secretária.

   - Acabou? - perguntou irmã Christine desconfiada. Quando assenti com a cabeça com a expressão mais inocente que consegui fazer ela perguntou - E que atividades escolheu?

- Música e Desenho - respondi, rezando para que ela gostasse dessas atividades.

- Que bom - disse, abrindo um sorriso com aqueles dentes frouxos. Sorte, sorte, sorte! - Ambas são atividades maravilhosas. Espero que a senhorita se encaixe bem nelas e não dê mais problemas.

   - Claro, claro - eu disse, com um sorriso brilhante, rezando para que a minha cara de santa enganasse aquela freira. - A senhora tinha razão em tudo. A partir de hoje, vou me comportar bem e não darei mais problemas - É, e tem um pote de ouro no fim do arco-íris e as nuvens são feitas de algodão doce.

   Irmã Christine aparentemente não era boba, me olhou com cara de quem não estava acreditando.

   - Espero que não pense que, por dizer isso, eu a liberarei do castigo - disse, muito séria.

   - Não não, claro que não. Eu mereço esse castigo, fiz muito mal ao criar confusões e contar mentiras. Não quero que a senhora me libere dele, pelo contrário. Ia até lhe pedir para estar presente na minha detenção desta noite.

    - E por quê? Garanto-lhe, senhorita Vaughan, que Paulo está completamente apto a aplicar detenções.

   - É claro, eu sei disso, afinal ele é um aluno exemplar e o presidente do Comitê Estudantil - e também o filho do demônio. - O negócio é que eu venho de uma escola muito diferente, onde só os professores e coordenadores podiam colocar os alunos na detenção e ainda não consigo ver outro aluno como uma figura de autoridade. A senhora entende, não é? Então, se a senhora estivesse lá, tenho certeza que as coisas ficariam bem melhores para mim e talvez, vendo o Paulo com a coordenadora do colégio, eu finalmente o visse como monitor e tudo. Seria ótimo para mim. A senhora não quer o meu bem? - ainda dei aquela batida de cílios infalível quando terminei de falar toda aquela porcaria. Tinha que dar certo!

   - Mas é claro! - ela disse, como se estivesse ofendida por eu sequer cogitar a ideia de pensar o contrário. Tá bom. - Ora, está bem, se vai fazer bem para a senhorita, não vejo problema.

   - Muito obrigada mesmo! - eu exclamei. A velha ia ter a maior surpresa da vida dela e eu iria me livrar, quem sabe para sempre, daquele encosto chamado Chermont! - Paulo pediu para eu encontrá-lo na frente do dormitório feminino, uma hora antes do jantar. Tudo bem para a senhora?

   - Sim, sim, eu estarei lá.

   Agradeci e sorri mais um pouco e depois fui embora antes que aquela dentadura me fizesse vomitar. Próxima parada. Túmulo de Luma Britto.


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Notas finais do capítulo

Então, eu vou agora postar todo sábado. Mas é só por uns tempos, depois eu aumento o número de capítulos por semana. Obrigada por lerem. Beijos :)



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