Os Gêmeos Bouvier - A Resistência escrita por That Crazy Lady


Capítulo 7
A noite em que ganhei uma carta misteriosa


Notas iniciais do capítulo

Mudei o dia de atualização para domingo! Fica mais cômodo para mim. Espero não ter atrapalhado vocês.



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O táxi nos deixou alguns quarteirões antes do local da festa propriamente dita. Andamos sem rumo por cinco minutos, depois ziguezagueamos e, quando eu tinha certeza de que não havia nenhum ser mal intencionado por perto, seguimos reto até a mansão.

A parte legal de você ser cigano é que pode ver as coisas pelo lado mítico ou pelo lado humano. Enquanto descíamos a rua, nosso destino aparentava ser uma casa de dois andares ligeiramente mal cuidada, com a pintura descascando, o muro pichado, o portão enferrujando e o jardim começando a virar uma pequena selva. Mas, ao nos aproximarmos, a imagem tremeu, como se fosse um reflexo n’água e alguém tivesse acabado de jogar uma pedra em cima, e se transformou em uma enorme mansão modernista.

Eu tinha que admitir: Áurea tinha bom gosto. Uma ponte em curva ligava diretamente o portão e a porta de frente da casa, e era suspensa sobre um pequeno lago particular totalmente iluminado por lâmpadas de cores vibrantes como vermelho, azul ou verde forte. Algumas plantas se estendiam aqui e ali, com graça, e um cardume passou rapidamente em frente à luz amarelada enquanto eu olhava.

A mansão em si era totalmente bizarra. Primeiro, fora feita em formato de curva, e o lago passava logo abaixo dela, desaparecendo sob um quarto e provavelmente indo desaguar no quintal. Segundo, as paredes e o chão eram, literalmente, de vidro. (Tudo bem ser futurista, mas tanto assim? Eu podia ver a casa inteira só de estar parada no portão.) A única parte que não era de vidro, ou seja, o teto, aparentava estar totalmente suspensa no ar. Além disso, um jogo de luzes bem utilizado fazia com que todas as pessoas dentro da casa parecessem flutuar.

Graças a Deus eu não tinha estômago fraco. A maioria das pessoas morreria de vertigem ali dentro.

– Era uma casa muito engraçada, só tinha teto, e mais nada... – meu irmão cantarolou zombeteiro. – Ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão. Ninguém podia dormir na rede, porque na casa não tinha parede!...

– Entendi o seu ponto, Coron, obrigada – cortei. – Ah, olha a Áurea ali...

Basicamente, ela parecia um palhaço tresloucado. Mas acho que era só efeito da excessiva maquiagem e do nosso atraso, nessa ordem.

Onde vocês estavam?! – ela cuspiu assim que se aproximou de nós. – Metade dos convidados já chegou! Qualquer um deles podia ter tentado me matar, e onde estariam meus guarda-costas?

– Nos disfarçando de fadas – respondi simplesmente. Ela parou para me encarar, como se ponderasse se eu estava zombando dela ou simplesmente sofresse de algum problema mental. – Os vampiros estão chamando muita atenção, eu vou checar o perímetro e procurar falhas nos feitiços de camuflagem. See ya!

Sim, eu estava jogando a bomba no meu irmão. Mas, como disse antes, ele é gato! Tem mais chances de sobrevivência do que eu em quesitos de vacas raivosas. Por isso não hesitei ao caminhar descontraidamente para longe.

Assim que saí da vista dos dois, pude respirar mais calmamente. A música estava alta, e me lembrava frequentemente de como era inquietante que todas aquelas pessoas na festa pudessem me ver pelas paredes transparentes. Eu esperava que ninguém estivesse prestando atenção em mim. Eles deviam estar mais ocupados com outras coisas, certo?

Certo. Quando achei que já estava longe o bastante para conseguir me concentrar direito, parei para examinar o campo de energia em volta da mansão, passando a mão esquerda por ele e deixando um rastro de fumaça azulada.

Porém, antes que eu pudesse tirar alguma conclusão do estado da coisa, um guincho me interrompeu.

– O que você pensa que está fazendo?! – Olhei em volta, mas não vi ninguém. – Tire essas mãos imundas do meu campo de energia!

– Calma, eu só estava... – Senti antes que viesse. Não fosse por meus reflexos, eu teria ganhado um soco bem na bochecha, mas me abaixei e virei a tempo. – OW! Calma aí!

– Calma? Eu estou totalmente calma! Você é que não deveria estar! – a garota guinchou de volta.

Na verdade, ela era meio assustadora. Sua pele era anormalmente clara por causa do pó muito branco que passara na face (exceto nas maçãs do rosto, que estavam rosadas de blush), as sobrancelhas haviam sido redesenhadas com carvão e ela usava um batom vermelho quase tão forte quanto o meu. Com os traços asiáticos, eu diria que a garota parecia uma gueixa, mas achei melhor não comentar o fato por causa da careta de ódio dela.

– Eu não estava mexendo no campo de energia. Só estava checando o estado! – me defendi. Ergui as mãos, como se estivesse rendida, e tentei não parecer hostil enquanto me virava. – Aqui, no ombro. Alfa. Viu? Áurea me contratou para isso.

A garota ficou mais uns dez segundos me encarando, amenizando levemente a expressão de tempos em tempos, e por fim relaxou. Só me toquei que ela tinha uma adaga sob a manga comprida da blusa quando a colocou de volta para dentro.

– Qual o seu nome? – perguntou, agora não mais guinchando.

– Sou Mirella Bouvier. – Estendi a mão. Por fora parecia um gesto firme, mas por dentro eu estava totalmente cautelosa. Não queria outro ataque surpresa.

– Ai Lich Yumi – Yumi apresentou-se, e apertou minha mão com formalidade.

Uma feiticeira! Gosto de feiticeiras. São justas, têm palavra e a maioria costuma ser tão esperta quanto eu. (Detalhe: Eu sou superdotada.) Ou seja, geralmente nos damos bem.

Pelo que eu podia presumir, Yumi tinha cerca de 400 anos, especialidade em campos de energia e treinava a arte milenar da esquiva.

(Não, eu não leio mentes. É por causa da apresentação. Ai era a posição: especialização em campos de força e magia defensiva, nível mediano/alto. Geralmente, as feiticeiras chegam nesse ponto com 400 anos, a não ser que sejam muito boas ou muito ruins. Lich era o nome do clã; pacifistas e furtivos, uma vez tive a chance de conversar com seu líder. Foi bastante instrutivo, acho. E Yumi, por fim, era o nome dela.)

Como só por três palavras eu já sabia um bocado a seu respeito, podia confiar que ela não iria mais me atacar, então baixei a guarda.

– Então, que trabalho andou fazendo aqui? – perguntei. Resolvi ir direto ao ponto porque... Ela tinha cara de quem vai direto ao ponto.

– Bom, eu distribui igualmente a magia entre camuflagem, defesa física e defesa psíquica em praticamente todo o perímetro – ela explicou. Como começou a caminhar enquanto falava, achei educado seguir. – Exceto em alguns pontos estratégicos, claro. Na frente há mais camuflagem do que defesa, e aqui, próximo da mata, eu reforcei a defesa física. Instalei também alarmes chamativos no caso de tentativas de invasão, e há um portal seletivo dentro da casa. Nenhum humano passa por ele, quero dizer.

– Eu sei o que é um portal seletivo – eu disse educada.

Lembra quando comentei que eu e feiticeiras nos damos bem? Em grande parte é porque sei que são convencidas por natureza, e não fico batendo de frente quando me subestimam. É difícil, claro, mas nenhuma delas é totalmente insuportável. Quer dizer, não sou uma completa idiota, sei como apagar uma feiticeira. Elas têm bom senso.

– Se importa se eu der uma olhada mais detalhada? – perguntei educadamente.

– Claro que não, Fei Mirella – ela respondeu, assentindo com a cabeça. – Vá em frente.

Fei? OK, agora estamos evoluindo. Quer dizer, Fei é um tratamento usado por feiticeiras que demonstra respeito de igual para igual. Geralmente, o máximo que eu ganho é um Faah, que significa “você-é-ligeiramente-inferior-a-mim-mas-eu-te-respeito”.

Ergui a palma da mão esquerda e a passei novamente pelo campo de energia, como estava fazendo ao ser interrompida por Yumi. O rastro azulado que deixei subiu e se espalhou, deixando visível o formato de semicírculo que o campo tinha. Quando chegou ao topo, deu meia volta e voltou para meus dedos.

– Ótimo trabalho – comentei impressionada. Estava bom mesmo. Totalmente equilibrado, do jeito que ela dissera; e não é fácil começar campos de energia assim, do nada. – Eu não conheço quem faria melhor.

Yumi sorriu.

– Obrigada. Metade do trabalho foi do terreno, mas, é, eu ajudei um bocado.

Sorri junto. Não dava pra dizer que ficamos amigas, mas é sempre bom contar com alguns conhecidos sem hostilidade por aí, certo?

... Ah cara. Para com isso, Mirella. Você está ficando ridiculamente otimista, exatamente como o retardado do seu irmão. Realismo! Realismo! Volte para a realidade e diga o que tem que dizer a Yumi!

– Fei Yumi – chamei. – Quando estava vindo para cá, notei uma atividade incomum de alguns humanos. Tenho quase certeza que faziam parte da Inquisição. Acho que perceberam alguma coisa; um bando de vampiros se concentrando em um local específico chama muita atenção.

Yumi concordou com a cabeça, voltando a ficar séria.

– Vou espalhar mais alguns feitiços de camuflagem pela área próxima à mansão. Obrigada pelo aviso.

– Sem problemas. – Um pequeno silêncio incômodo surgiu. Já que aparentemente Yumi tinha tudo sob controle, achei melhor acrescentar: – Vou voltar para a festa, agora.

(Levando em conta que eu nem mesmo tinha entrado, acho que voltar não era bem o termo apropriado, mas tudo bem.)

Ergui a mão em um “tchauzinho” e dei-lhe as costas, mas Yumi me chamou de volta.

– Fei Mirella?

Parei.

– Sim?

Yumi começou a remexer em uma grande bolsa que levava a tiracolo. Ergui as sobrancelhas. O que diabos Yumi estava fazendo?

Então ela tirou um envelope com um nome escrito em uma grande letra floreada, e quase me matou do coração. Porque não era qualquer nome escrito ali. Era Mirella Aguirre Bouvier.

Detalhe: Eu não tenho Aguirre no nome. Na verdade, eu só tenho um sobrenome, porque não sei o da minha mãe.

– Acho que você está entregando para a pessoa errada – eu disse com a testa franzida.

– Não, nossa Ca mandou entregar para você – Yumi insistiu, estendendo o envelope. – Maria me disse como você estaria vestida, como se parecia e o que falaria para mim. É você a destinatária, Fei Mirella. E não se pode recusar o presente de uma adivinha.

É verdade. Dá uma tremenda má sorte recusar qualquer coisa vinda de qualquer pessoa que possa ver o futuro, e ainda mais de uma Ca! Quer dizer, mulheres com o dom da adivinhação frequentemente se tornam protegidas de feiticeiras, mas os Lich eram um clã forte. Eles não iam se contentar com uma cartomante de quinta. Com certeza tinha algo importante naquele envelope.

Além disso, Yumi era uma Lich. Dizer não quero, obrigada seria muita falta de educação com sua Ca, e ela provavelmente ia apelar comigo.

Portanto, em uma atitude extremamente diplomática da minha parte, peguei o envelope como ele estivesse prestes a explodir na minha mão.

– Agradeça pelo presente por mim, Fei Yumi – disse educadamente.

– Agradecerei. – A garota gueixa sorriu para mim e deu-me as costas, sumindo em meio à mata detrás da mansão.

Muito, muito estranho. Tentando parecer calma, abri o envelope e puxei uma folha branca cuidadosamente dobrada em três partes iguais. A carta cheirava fortemente a dama da noite, e tinha a mesma letra floreada do envelope. Apenas seis palavras haviam sido escritas.

Antes da tempestade vem a Calmaria.



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