Os Gêmeos Bouvier - A Resistência escrita por That Crazy Lady


Capítulo 5
O dia em que minha mãe saiu de meu coração




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Com "mais longe que pudesse" lê-se "a estação abandonada de trem".

Eu, Lince, minha tia, meu tio e Flávio moramos em Riacho Dourado, uma cidade média localizada em Minas Gerais que cresceu às margens dos trilhos construídos em 1800 e alguma coisa para levar o ferro extraído da região até o porto. Não sei se ainda sobrou algum ferro, mas de vez em quando passam trens por ali.

De qualquer forma, a estação é abandonada porque aqueles trens que ainda passam são totalmente comerciais, e, portanto, não apanham ninguém na estação - o que a torna um lugar perfeito para passar o tempo. É claro que seria provavelmente o primeiro lugar em que Lince me procuraria, mas meu irmão tem o bom senso de saber quando preciso ficar sozinha. Acho. Espero.

Sentei no degrau que separa a estação dos trilhos, tirei a mochila das costas e sequei algumas lágrimas fujonas. Com uma última olhada em volta só para ter certeza de que estava sozinha, tirei de meu antebraço direito a meia grossa, colorida e cortada na ponta, para observar o C marcado a fogo.

Sabe, eu não me lembro de quando o ganhei. Minha mente bloqueou tudo, em uma reação que algum Freud da vida explicou como defensiva, já que as memórias são realmente ruins. Mas eu sei a versão resumida e esburacada que me contaram.

Comecemos do começo. Porém, vou logo avisando que não sei o nome da minha mãe, então vou trata-la apenas por... Bom, mãe. Como as pessoas dizem que somos parecidas, principalmente nos olhos castanhos esverdeados e pele clara-rosada (com a qual a loteria genética presenteou a mim e não ao meu irmão), eu gostaria que vocês a imaginassem como uma ariana, dessas europeias. Já meu pai era um cara que gostava muito de viajar; os dois provavelmente se conheceram em algum país frio onde todo mundo é loiro do olho azul.

Aí eles se apaixonaram, blablablablá, ela engravidou, blablablablá, eu e meu irmão nascemos em algum ponto do globo que eu ainda não descobri.

Quando eu e Lince tínhamos três anos, meu pai nos levou para um dos aeroportos internacionais de São Paulo. Acho que estávamos tentando ir para a Austrália... Ou seria para a África do Sul?... Enfim, o caso é que a Inquisição nos pegou e fomos todos presos.

A partir daí o bloqueio mental começa - o que, se você for ver, é totalmente compreensível, já que não é como se tivéssemos ficado em algum hotel cinco estrelas. Quer dizer, foi nessa época que me marcaram a fogo como se eu fosse alguma vaca, usando uma única letra para dizer ao mundo o que sou. Uma única e maldita letra que não se esconde com maquiagem ou magia - e eu tentei, acredite! Aquele C idiota que está sempre aqui para me lembrar de que, por mais tempo que passe e por mais que eu mude, eu sempre vou ser a menininha cigana de três anos que perdeu o pai para a Inquisição.

Bom, depois de um ano dentro da prisão, já haviam matado meu pai, e eu e Lince sabíamos que um de nós dois seria o próximo. Então fugimos. Não me pergunte como, porque eu não lembro! Mas, como a essa altura já estávamos totalmente órfãos, o único refúgio que encontramos foi a casa de minha tia. Já que ela é a irmã mais velha do meu pai, não viu problema algum em nos criar, pois sabia que meu pai faria o mesmo com ela (ou alguma coisa assim).

Acho que já deu pra sacar a tremenda incógnita¹ que é a minha mãe nessa história toda. E isso é um saco.

Quer dizer, eu sou superdotada. Se tem um X no meio, eu quero e vou descobrir o que ele significa. Não importa o que meu irmão diga. E, se Dinds não quer me ajudar nisso, tudo bem. Eu descubro sozinha.

De repente, meu celular começou a tocar Highway to Hell² e me arrancou com força de meus pensamentos. Fiz uma careta ao checar o número no visor.

– O que você quer, Lince? - atendi de forma curta e grossa.

– Hipoteticamente falando - ele começou -, o que você faria se eu estivesse atrás de você nesse exato momento?

Fechei os olhos e apertei-os com força.

– Te jogaria nos trilhos.

– Bom saber. - Dessa vez, a voz não saiu do telefone, e sim de meu irmão parado alguns metros distante de mim. Ele tirou o celular do ouvido e sorriu. - Vou ficar longe para evitar isso.

– Cala a boca - eu disse, arrastando a voz e virando o rosto de volta para os trilhos. Guardei o celular de volta na mochila com certa má vontade. - Não quero conversar, vai embora.

– Azar o seu, eu quero conversar. - Lince caminhou despreocupadamente até estar sentado ao meu lado. Cogitei realmente jogá-lo nos trilhos, mas... Nah.

– Eu acho que já conversamos o bastante mais cedo - soltei, azeda.

– Você é muito apelona, Mirella - ele disse, sem se importar com meu tom. - É por isso que não gosto de te contar as coisas. Eu conto e você fica o dia inteiro emburrada!

Não respondi a esse comentário. Como já disse, decididamente não estava afim de conversar.

– Ell - ele continuou, mais sério. - Você tem que deixar isso para lá.

– Lince, não vamos começar de novo...

– Ela ainda está em seu coração. Não está?

Hesitei momentaneamente, sem conseguir pensar no que responder. Minha raiva baixou, transformando-se em nervosismo e simples vontade de não querer tocar no assunto.

– Você tem que deixar isso para lá - Lince repetiu -, ou vai sair muito, muito machucada. Eu sei, tão certo como você sabe que dois mais dois são quatro.

– Bom, tecnicamente... - comecei baixinho.

– Nessa dimensão.*

– Ah. - Desviei os olhos e apertei os lábios um contra o outro.

– Escuta, eu sei que é difícil. Muito. Sei que é melhor e mais fácil ter esperança do que aceitar, porque a verdade é... Bom. Você sabe. Mas, Ell, nós temos quinze anos. Se ela quisesse vir, já teria vindo, não acha?

Não respondi. Ao invés disso, uni minhas mãos e fiquei apertando meus dedos em uma reação de ansiedade, enquanto encarava meu colo.

– Precisa deixa-la ir - ele continuou em voz suave. - Precisa esquecer.

– Esquecer não - corrigi baixo. - Honrar a partida.– Dissemos a última parte juntos, como bons gafanhotos que aprenderam direitinho o ensinamento, e eu acabei sorrindo da piada interna.

– Anda, me deixa ver - Lince pediu, erguendo a mão com a palma para cima.

Eu o observei por alguns instantes, comprimindo os lábios. Poderia dizer não. Poderia começar outro chilique. Ou poderia gritar Pegadinha do malandro! e sair correndo.

– Não confia em mim? - meu irmão jogou, percebendo a minha demora.

– Deixe de ser chantagista - eu disse por fim. Então ergui os braços e tirei o colar de meu pescoço, lentamente. Por ele estar debaixo de minha blusa, um dos pingentes ficou preso na gola do uniforme, e tive que soltá-lo com cuidado. Lince o tirou gentilmente de minhas mãos.

Rapidamente explicando, o coração é uma tradição cigana. É comum os pais presentearem os filhos com um fio que eles mesmos trançaram, e que com um fecho se transforma em um colar. Você coloca ali pingentes que representem todas as pessoas importantes para você, aquelas que vivem em seu coração. Quando elas morrem, ou se vão por algum motivo, você honra sua partida tirando seu pingente do colar e guardando este em uma caixa, gaveta ou qualquer outro lugar especial. Para que, assim, possa seguir em frente livre de luto, porém sem nunca esquecê-las.

Lince é extremamente volúvel, vive adicionando pingentes e mais pingentes para amigos, namoradas ou o novo vizinho. Para ele, é muito fácil honrar a partida dessas pessoas quando elas se tornam chatas. Eu? Mexo no meu coração de cinco em cinco anos, e olhe lá. A única mudança recente que eu tinha feito era adicionar uma pedrinha de brilhante, beeem pequena (diamantes são caros, sabe), para representar o Vítor. Além dele, eu tinha pingentes para o Lince (ÓBVIO), para a tia, para a Dinds, para a minha mãe e para o Flávio. Nem para o tio eu não tinha, porque ele não vai muito com a minha cara. Enfim, meu coração é ridiculamente vazio em comparação ao do meu irmão, e ia ficar ainda mais vazio.

– Me avise caso comece a ter um infarto - ele brincou, enquanto puxava os pingentes que estavam na frente do pequeno M que eu tinha colocado para representar minha mãe. (M de mãe. Dã.)

– Não brinque com essas coisas enquanto estiver mexendo no meu coração, Lince. Ele é delicado.

– Ele é vazio, isso sim.

– Desculpe se não tenho um pingente para cada Zé Ninguém que eu conheço - provoquei. Ele revirou os olhos enquanto recolocava os pingentes.

Agora eu só tinha cinco. Que decepção.

– Ei - disse Lince em um tom desconfiado, enquanto observava melhor meu coração. - Por que eu sou uma pedrinha de cristal e o seu namoradinho é uma pedrinha de brilhante?

– Não me diga que está com ciúmes! - eu disse chocada.

– Claro que não! - ele retrucou, com uma expressão de desprezo profundo. - Mas por que ele vale mais do que eu?

– Você está com ciúmes! Ai meu Deus! - Eu tive que rir dessa, cara. Não deu para evitar. A expressão dele era simplesmente engraçada demais.

– Você não respondeu à minha pergunta! - ele exclamou, meio tentando ignorar minhas risadas.

– Eu comprei uma pedrinha de brilhante pra ele - eu disse, ainda rindo - porque agora tenho mais dinheiro do que tinha na época em que arranjei o cristal para você. Só isso, sua coisa. Dá meu coração, agora.

Ele recolocou o colar em minhas mãos, parecendo mais satisfeito. Deus, ele é tão bobo.

– A mamãe também, Lince - pedi com as sobrancelhas arqueadas, enquanto recolocava meu coração no lugar.

– Pode deixar. Eu levo para você.

– Eu não vou colocar de volta, idiota.

– Estou sendo cavalheiro. - Ele guardou o M no bolso e se levantou. Revirei os olhos, recoloquei a meia cortada no antebraço e apanhei minha mochila.

– Você sabe que eu ainda quero saber o que aconteceu com a mãe, não sabe? - perguntei por fim, colocando a mochila nas costas. Minha perna doeu ao me apoiar nela; tempo demais sentado não faz bem a baleados. - Que tirá-la do meu coração foi só simbólico?

– Claro que sei - Lince respondeu, um sorriso irônico brincando em seu rosto. - Mas foi um ótimo primeiro passo.


¹ Incógnita: Parte desconhecida da equação, geralmente representada por um X.

² Música do ACDC.~

* Não, não é parte do enredo. É só uma teoria de alguns cientistas que fica passando de vez em quando no History Channel.



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