Os Gêmeos Bouvier - A Resistência escrita por That Crazy Lady


Capítulo 4
O dia em que meu irmão conseguiu me fazer chorar




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Como era de se esperar, os outros dois horários foram se arrastando, como pequenas lesmas apostando quem conseguia ser mais lenta. Até que, finalmente, o sinal anunciando o fim da última aula tocou.

Apanhei minha mochila na velocidade da luz e saí mancando escola afora antes que Vítor brotasse do chão para me deter com um “HELENA, o que pensa que está fazendo?! Não é só porque tenho aula de violino e não vou te acompanhar pra casa que você pode sair mancando sozinha por aí!”. Quer dizer, ele é lindo, mas é um chato. Eu sei me cuidar, pow.

– Ell, espera! – Lince gritou atrás de mim. Parei no meio da rua para que ele me alcançasse. – E aí? Como foi com a Áurea?

Acho que as três palavras que se seguiram foram bastante autoexplicativas.

– Foi um porre.

– Não pode ter sido tão ruim – ele disse, erguendo as sobrancelhas.

– Ah, não? – Puxei a mochila das costas e a remexi até encontrar a ficha. Quase a enfiei na cara dele, mas Lince segurou meu braço antes disso.

– Cacetada, Ell – ele exclamou enquanto passava os olhos pelo que eu tinha escrito durante a quarta aula. – Você não pode entregar uma análise de personalidade assim. É a filha do César!

– E daí? Vou ter que mentir, então? – retruquei irritada. – Eles dizem para a gente não mentir nesse tipo de coisa. Vamos abrir uma exceção, só porque ela é uma filhinha de papai?

Lince massageou a têmpora.

– Vamos abrir uma exceção – ele disse – porque sabemos o que é bom pra gente. – Então dobrou o papel e o enfiou no bolso sem nenhuma cerimônia.

– Mas, Lince!

– Ell, pelo amor de Deus! – ele exclamou, revirando os olhos. – Você quer ser mandada pra um fim de mundo qualquer? Eu não, mas é exatamente o que vai acontecer se entregarmos isso pra chefia.

– Mas é corrupção! Estamos nos aproveitando do nosso acesso a um bem público para obter melhorias privadas!

Lince ergueu as sobrancelhas, com um meio sorriso irônico. Aquele maldito meio sorriso irônico que nunca sai da cara dele.

–... Garota, eu realmente não entendo nada do que você diz.

Cara, eu não sei de onde veio. Só sei que meti um soco no maldito tanquinho do meu irmão gêmeo e saí pisando forte – ou perto disso, com uma perna baleada.

Não que tivesse adiantado muito. Provavelmente, minha mão estava doendo mais do que o abdômen dele. Mas tinha o valor sentimental da coisa.

– Au! – ele reclamou atrás de mim. Alguns segundos depois, senti braços me puxando pela cintura. – Você é muito apelona.

Me desvencilhei.

– Não estou falando com você – rosnei entre os dentes.

Ele apenas riu e me abraçou de novo.

– Saaai, não estou falando com você! – exclamei, tentando empurrá-lo. Tentando, diga-se de passagem, porque ele é muito mais forte do que eu. Muito.

– Eu sei que você me ama – Lince disse rindo.

– Mentira!

– Ama sim.

– Que nada, seu convencido. Agora sai de mim que está me envergonhando!

Lince me deu um beijo na bochecha, só de graça, e então me largou. Limpei o rosto dramaticamente antes de continuar a falar.

– Mas não é justo, Lince, não é!

– O mundo não é justo, Ell – ele comentou. – Se fosse, teríamos uma família perfeita e você não pintaria o cabelo de rosa. E, a propósito, esse assunto está encerrado.

– É, fala o macho da alcateia – debochei com sarcasmo.

– Você é uma chata.

– E você é idiota.

– Você é mais chata do que eu sou idiota.

– Mentira!

– E ainda por cima é uma nerd.

Parei e cruzei os braços. Depois eu era a apelona.

– Escuta aqui, Daniel/Coron/Lince/whatever...

– BUH!

Eu nem vi de onde veio o “buh!”. Só senti o braço forte de Coron me empurrando para detrás dele e tateando a espada em seu cinto, enquanto eu materializava algumas cartas básicas. Até ver quem era e baixar a guarda.

– Dinds! – exclamei feliz, fazendo as cartas virarem fumacinha azul novamente e mancando para lhe dar um abraço. Ela me recebeu com um sorriso muito branco.

Dinds/Dindinha/Madrinha (o apelido mudou com o passar dos anos) era uma mulher alta, de cabelos escuros e olhos muito negros, além de uma pele cor de café-com-leite de dar inveja. Na verdade, tudo nela era de dar inveja, se você fosse prestar atenção em suas curvas, suas unhas ou mesmo sua voz – e provavelmente prestaria.

Mas, veja bem, ela é uma sereia. Se não desse inveja era porque tinha alguma coisa errada.

– Mirella! – ela exclamou com seu sotaque nordestino, novamente não falando meu nome direito. (É espanhol, então você tem que dizer “Miredja”, mas ela insiste em falar “Mirelha”.) – E Coron!

– Hey, Dinds! – meu irmão cumprimentou alegremente. – Deu um susto na gente.

Ela riu e me largou delicadamente.

– Eu sei! Precisava ver a cara de vocês. Parecia que tinham acabado de ver um fantasma!

– A essa hora? Só podia ser um, mesmo! – disse Coron. – São o quê, onze e quarenta? Nada mais ia aguentar esse sol a pino. Aliás, está bebendo água regularmente, Dinds?

– Claro, querido! – Dinds tirou uma garrafinha com água pela metade da bolsa. – Já terminei com a primeira. Vocês demoraram muito para passar por aqui!

– Pessoas andando não vão tão rápido quanto você nadando, Dinds – argumentei.

– Você fala como se eu já não soubesse disso – ela disse rindo. – Agora, vamos ver qual de vocês adivinha primeiro por que eu estou aqui.

Lince a observou pensativo.

– Espera. Nove foi quinta, dez foi sexta...

– Dia do pagamento! – exclamei antes que meu irmão pudesse concluir o raciocínio.

–... E treze é hoje, isso aí.

Dinds riu e começou a remexer a bolsa, dizendo algo como “está aqui em algum lugar”. Apoiei um braço no ombro do meu irmão.

– Você vai comigo fazer compras no domingo, não vai?

– Awm, compras? De novo? Já fomos fazer isso mês passado.

– É, mas minhas roupas estão ficando velhas.

– Você só usa roupas velhas, Ell.

– Helena usa, Mirella não – argumentei. – Eu já usei todos os meus corpetes¹, preciso urgentemente de mais. E umas saias novas não iam mal. Acho que lançaram uns macaquinhos bonitinhos, também, tá na moda...

– Meu Deus, garota, roupas não são descartáveis – Lince disse com um tom de “não é óbvio?”.

– As de Helena não são, as de Mirella são – retruquei.

– E depois diz que não sofre de dupla personalidade.

Abri a boca para xingar Lince de alguns nomes muito feios no exato instante em que Dinds nos interrompeu.

– Ah, achei! – E eu já tinha quase me esquecido de que ela ainda estava ali. Foco, Ell, foco! – Um para você, e um para você.

Ela estendeu dois envelopes, que pegamos rapidamente. E, se quer saber, não foi muito legal sentir que o meu estava ligeiramente mais leve do que devia.

– Achei que César já tinha superado o meu tiro – comentei sarcástica.

–Ah, Ell, sinto muito – disse Dinds, provavelmente tentando me consolar. – Não foi culpa sua, o atirador realmente era mítico. É só que... César acha que você devia ter previsto isso. Mas não se preocupe, eu vou falar com ele e tenho certeza de que mês que vem você recebe a quantia correta.

Se com “quantia correta” ela queria dizer “a metade do que o meu irmão recebe porque eu sou menina”, acho que eu podia comemorar. Meu salário é isso, mesmo.

Não que eu não tenha tentado mudar. Acredite, eu enchi o saco de muita gente com tentativas de revoluções feministas. Mas não adianta. Há uma hierarquia na Resistência, e, mesmo que eu e meu irmão estejamos em um bom patamar, ainda não é tão bom a ponto de eu conseguir mudar o que César acha que é melhor para mim. Se ele acha que eu devo receber a metade do que Lince recebe, não posso fazer nada além de concordar com a cabeça e sorrir ao receber o pagamento.

Uma das coisas que me mata de raiva, aliás.

– Não, tudo bem, Dinds. Não precisa. Se ficar enchendo o saco de César, ele não vai te deixar acessar os arquivos, você sabe.

Não sou tão sensitiva quanto meu irmão para sentimentos ou expressões humanas. Mas não sou idiota, tampouco. Dava para perceber claramente como o rosto dos dois, de Lince e de Dinds, endureceu de tensão.

– Falando nisso – continuei –, fez o que eu pedi?

Dinds hesitou, como se procurasse as palavras corretas.

– Bom...

– Ell, não dá para a Dinds ficar procurando coisas sobre nossa mãe nos arquivos – Lince ajudou. – Fica muito na cara que fomos nós que pedimos. Além disso, eu não acho que você precise saber das coisas que quer saber.

A forma lenta, calma e tranquilizante que ele falava serviu apenas para me colocar na defensiva. Senti a alegria momentânea de encontrar Dinds e receber meu pagamento evaporar como salgadinhos fritos em festa de criança.

– Ah, você não acha? – rosnei. – Você não acha que eu precise saber do motivo pelo qual nossa mãe nos empurrou para nosso pai e para tia Manu? Você não acha que a gente deva procura-la para saber o que houve nos últimos 15 anos, desde que ela nos abandonou?

– Não, não acho – Lince respondeu, começando a endurecer o tom ao ver minha pose irritadiça. – Acho que você devia esquecer esse assunto. Não vai fazer bem a ninguém ficar ouvindo motivos aleatórios para deixar dois gêmeos nos cuidados dos outros. Se ela não nos quer, é problema dela e nós não devemos ir atrás!

– Já te ocorreu por um mísero instante que talvez ela não saiba que estamos vivos? Ou que não consiga nos achar?

– E já te ocorreu por outro mísero instante que talvez ela simplesmente não nos queira? – A essa altura, nós dois já estávamos gritando. – Nosso pai tinha 21 anos quando morreu, e a gente tinha 4! Eu posso não ser bom em matemática, mas sei que, se a mãe também tivesse 17 anos quando engravidou, tinha todos os motivos do mundo para querer se livrar de dois pestes atrapalhando a vida dela!

Eu recuei. Foi como se ele tivesse me dado um tapa daqueles.

– Eu não acredito nisso.

– É, e esse é o seu problema, Mirella! – Lince jogou na minha cara. – Você vive em um mundo cor de rosa onde não há corrupção ou gravidez adolescente. Mas, adivinhe!, não é o mundo real! Não é assim que as coisas funcionam! Então desça dessa sua nuvenzinha fofa e volte para o chão, que é o seu lugar!

Eu não sou de chorar, não mesmo. Mas, naquele momento, simplesmente não deu para evitar. Lince tinha conseguido acabar com toda e qualquer esperança que eu ainda tivesse sobre minha mãe, e me irritado ainda mais. Era inacreditável.

– Pelo menos eu ainda tenho alguma esperança para me manter firme – disse com a voz tremendo. – Você? Já perdeu a sua.

E, com essa saída dramática, eu dei meia volta e corri para o mais longe que pudesse, escondendo as lágrimas enquanto tentava ignorar pontadas de dor na minha coxa.


¹ Corpete - Não, não estou falando dos corpetes ~~sexys~~ para passar a noite com o bofe. Com corpete, eu quero dizer blusa colada e tomara-que-caia, não necessariamente com decotes enormes ou pompons ou sei lá o que eles usam hoje em dia.



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