Os Gêmeos Bouvier - A Resistência escrita por That Crazy Lady


Capítulo 3
O dia em que odiei alguém em tempo recorde




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É claro que eu e Lince não teríamos mudado de colégio a troco de nada, ou simplesmente porque queríamos. Mudamos de colégio porque tínhamos um motivo, e esse motivo se chamava Resistência.

Ah, perdão. Você não sabe o que é a Resistência. Tudo bem, eu explico.

A definição oficial de míticos é: qualquer ser não humano, mágico e com inteligência pouco inferior, igual ou superior à humana. É uma definição totalmente problemática, mas depois entro nesse meio. De qualquer forma, míticos eram um tremendo problema até que, na Idade Média, surgiu a Inquisição. Lembra da Caça às Bruxas? Pois é.

A Inquisição funcionou mais do que bem. As pessoas simplesmente pararam de se preocupar com seres que não as incomodavam mais, e que pouco a pouco saíam dos centros urbanos. Assim, com o passar do tempo, míticos se tornaram apenas parte do imaginário humano; talvez um pouco mais forte no campo, onde ainda se encontravam alguns grupos aqui e ali, mas estavam quase completamente erradicados.

Então eles se revoltaram.

Um vampiro de codinome César, como os grandes imperadores da antiga Roma, ele diz, reuniu mestres míticos de todas as raças e experts em todas as áreas que pôde encontrar e fundou a Resistência. E ela era exatamente isso o que você está pensando: uma resistência contra a Inquisição.

Nome super criativo, eu sei.

Mas não pense você que, só por ter surgido do nada, ainda está no nada. A Resistência é um intrincado lógico muito mais aprimorado do que qualquer coisa que qualquer um jamais tenha visto ou imaginado, ou não teria funcionado. Porque a grande disputa nessa guerra é a informação: Quem são os agentes? Onde está o líder? Onde é a base? Se a Inquisição conseguisse responder qualquer uma dessas perguntas com sucesso, estaríamos ferrados. Então, para que funcionasse todo esse tempo, só com o bom e velho sistema de você-só-vai-saber-o-que-precisa-saber-para-fazer-seu-trabalho.

Ninguém lá dentro sabe de tudo o que acontece. Ninguém lá dentro sabe mais da metade do que acontece, aliás. Todo mundo sabe um pouco, e é por isso que César foi tão genial ao conseguir lidera-la com sucesso por todo esse tempo.

Sim, eu sei que ainda não falei de nossos motivos para ir ao Colégio Cáspio. Estou chegando lá.

Pois bem, acontece que Áurea é nada mais nada mais nada menos do que a filha de César com uma humana, que logicamente depois foi transformada em vampira. E, depois que tomei um tiro, meu querido chefinho resolveu que eu e meu irmão precisávamos de uma folguinha da estressante vida de agente de campo. Então o que ele fez? Colocou nós dois para sermos as babás de Áurea, providenciando umas bolsas escolares (não acreditou seriamente que uma superdotada conseguiria uma bolsa tão fácil assim, achou?) e molhando a mão do diretor para manter nós, irmãos gêmeos, na mesma sala (nada mais impossível do que isso, mas dinheiro faz maravilhas). Levando em conta que Áurea já estava lá para “estudar um pouco mais os costumes humanos”, nós só precisamos convencer a tia Manu a nos mudar de escola.

Eu até pensei: Uau, uma folguinha. Deve ser fácil. Mas aquela coisa é o cão chupando manga, cara. Na verdade, se me perguntassem quando passei a odiar Áurea, eu diria que foi no meio da aula de matemática.

Sim, porque até o momento havia apenas um certo desgosto, por causa do cheiro azedo e a postura “sou mais foda que você” que me irritava um bocado. Mas me empurrar só para que eu não terminasse as contas antes dela? Aí foi apelação.

E, como se já não bastasse passar do desgosto para o ódio em menos de dez minutos, ela conseguiu ficar completamente insuportável no recreio.

- Que tipo de garota usa cabelo rosa? – ela perguntou em um tom de deboche entediado. – E All Star, ainda. É roupa de emo excluído.

Meu cabelo não é rosa.

É cereja.

- Você já passou por alguma experiência de tortura física ou emocional? – perguntei com calma, tentando ignorá-la enquanto segurava a prancheta. Só mais umas perguntas, Ell. A análise de personalidade você pode fazer sozinha.

- Estou passando por uma agora. – Ela deixou-se cair sobre o banco, ficando deitada. – Essa ficha nunca acaba não? Hoje a gente tem a quadra de vôlei, eu quero jogar. Sei que você é uma emo excluída que não entende como vô-

- Você tem algum pesadelo recorrente envolvendo qualquer coisa anormal? – cortei novamente.

- Bom, uma garota de cabelos rosa insiste em ficar me assombrando.

- Vou entender como um não – murmurei, marcando a opção na ficha. – Algum parente próximo morreu?

Ela sorriu, e vi seus dentes compridos e muito brancos.

- Meus parentes são imortais. Lembra?

Marquei o “não” na ficha.

- Vai demoraaar? – ela perguntou em uma vozinha arrastada.

Análise de personalidade: Impaciente. Mimada. Tendência a ser sarcástica e cruel. Sente prazer ao agir de forma insuportável. Em suma, uma filha da *rabisco* vampira casada com meu maravilhoso chefe.

- Vai – disse seca. Ah, eu totalmente ia prendê-la ali durante quanto tempo conseguisse. – Qual o seu nível de treinamento em lutas?

- Eu sou menina, idiota! – ela exclamou de forma ofendida. – Eu não luto!

Mordi o lábio com força para não falar besteira e marquei um “nulo” na ficha. Míticos são machistas, Ell. Principalmente meios-vampiros de 210 anos. Não leve para o lado pessoal. Não leve para o...

- Você que devia se envergonhar – ela disse com as sobrancelhas arqueadas. – Por que não vai aprender cura e dança, como outras garotas normais?

... lado pessoal.

Ah. Ela tinha enfiado o dedo sujo e de unhas compridas bem no meu machucado sangrento.

Porque sabe, um dia algum idiota enfiou na cabeça do pessoal que mulheres são piores do que homens e, por isso, não merecem aprender luta. Também resolveu que elas teriam que se contentar com artes ou magia caso quisessem fazer alguma diferença no mundo. É por isso que, enquanto meu irmão anda por aí exibindo armas mortíferas, eu vou atrás com cartinhas e arco e flecha.

E, só para constar, se arco e flecha não fosse classificado como esporte e conhecimentos gerais, nem isso eu ia poder levar.

Aí chega uma menininha mimada e joga na minha cara a maior frustração da minha vida, e depois ainda diz que eu sou anormal por causa disso. Mal dava para encontrar um adjetivo forte o bastante naquele momento.

- Quer saber? – eu disse com um sorriso amarelo. Minhas mãos tremiam, e tudo o que eu conseguia pensar era como seria bom usá-las para apertar aquele pescocinho imortal. – Acho que terminamos por hoje.

- Finalmente! Essa burocracia toda de papai enche o saco. – Ela ergueu aquele corpo escultural do banco, ajeitou a franja excessivamente lisa e saiu rebolando.

Deixei meu corpo ainda tremendo cair no banco. Meu Deus. Eu enfiaria uma flecha no meio da testa daquela desgraçada sem problema nenhum. Nenhum. Mas antes a torturaria, ah, torturaria, e torturaria até ela ficar completamente louca, tão louca que ia esquecer o próprio nome! Então eu queimaria seu corpo, e dançaria em cima das cin-

- Ell? – Vítor se sentou ao meu lado. Eu poderia jurar que ele tinha brotado do chão, de tão de repente que chegou. Rapidamente larguei a prancheta no chão e a chutei para debaixo do banco. – Você está tremendo. Tá tudo bem?

- Claro! Eu só preciso dar um tiro em alguém e vou ficar ótima.

Ele balançou a cabeça. Em uma atitude um tanto quanto “minha namorada”, passou o braço ao redor dos meus ombros e me puxou para o lado.

- Andou falando com a Áurea, né?

- Como adivinhou? – perguntei, meio deitada no abraço.

- Aah, ela tem o fantástico dom de encontrar e cutucar justamente o ponto fraco da maioria das pessoas – Vítor comentou descontraidamente. – Você está reagindo até bem. Teve essa menina que costumava ter crises de choro no meio da aula, e acabou saindo do colégio por causa da depressão...

- Hã, acho que eu vou ficar com o tiro mesmo – respondi ironicamente.

- É, eu já esperava – ele disse rindo.

Distraidamente, sua mão começou a acariciar a minha. Como estávamos em um canto isolado da escola, não havia o problema de olhares indiscretos; então eu só relaxei e fechei os olhos.

Se eu não me sentia culpada por entrar em uma relação totalmente sem futuro com o Vítor? Sentia. Na verdade, eu me sentia uma aproveitadorazinha egoísta todas as vezes que pensava nisso, e tinha vontade de romper tudo. Tipo, antes que acontecesse alguma coisa muito sinistra com ele – porque a Inquisição não costumava ser muito legal, mesmo com humanos que não sabiam de absolutamente nada sobre míticos. Se você estava envolvido, meu filho, o problema é seu! Você não fez a sua parte, mas eu ainda vou ter que fazer a minha, não vou? E pare de chorar, não sou eu quem faz as regras.

Ah, e eles realmente dizem isso. Só para constar.

É claro que eu tentava proteger o Vítor como podia. Não sou difícil em público só para fazer graça, sabe? Facilita muito as coisas se observadores pensarem que nossa ligação afetiva não é tão forte. Por exemplo: se me pegarem, o procedimento usual é me torturar atrás de informações (o que justifica muito bem o motivo de se usar o velho sistema você-só-vai-saber-o-que-precisa-saber-para-fazer-seu-trabalho). Não fisicamente, porque não funciona; emocionalmente. E nisso entraria o pobre Vítor, que não tinha nada a ver com a história, para receber cortes, ossos quebrados e Deus nos acuda até que eu falasse.

E eu nem sequer podia lhes dar o prazer de ouvir as informações. Porque a Resistência vem primeiro.

Sempre.

Por isso eu me preocupava tanto. Minha sanidade jamais seria a mesma se Vítor morresse na minha frente depois de dias de tortura. Mas eu... Eu simplesmente não podia romper com ele. Havia alguma coisa – alguma coisa – naqueles olhos castanhos tristes que me deixava tão completamente egoísta. Que me fazia dizer a mim mesma: Está tudo bem, você é a melhor agente de campo que já pisou na Resistência, você consegue se esconder e esconder Vítor junto.

Talvez fosse amor. Mas duvido muito. Eles dizem que, quando você ama alguma coisa, a deixa ir. E eu não deixaria Vítor ir. Jamais.

- Ell – ele chamou.

- Hm?

- Tem um filme de terror novo passando no cinema. Quer ir ver nesse sábado?

Eu sorri. Um pouco de pipoca, carnificina e amassos no escuro realmente não faria mal. Eu andava muito estressada, ultimamente.

- É aquele em que um psicopata prende um monte de gente em uma casa, só que uma das vítimas é um assassino em série?

- É! E aí ele começa a tentar sair da casa com a esposa e a filha, usando psicologia de psicopata – Vítor continuou animado. – Mas elas não sabem que ele é um assassino, e nooossa, deve ser sinistro. Você vai ficar com muito medo e eu vou ter que te proteger?

- Claro! O que seria de mim, com todo aquele terror, sem você por perto? – respondi rindo. Ele me puxou mais para perto, e a gente acabou se beijando.

Ali. Só dois estudantes sofrendo de uma paixonite e se pegando no canto do pátio. Não uma cigana fugitiva e um humano inocente que mal sabia o tamanho da encrenca em que estava se metendo. Quer dizer, como eu podia deixa-lo ir?


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