Os Gêmeos Bouvier - A Resistência escrita por That Crazy Lady


Capítulo 2
O dia em que meu descanso acabou




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PARTE I - DESCOBERTOS

Não me perguntem como, mas eu tenho um namorado.

É sério. Nem mesmo eu sei como arrumei o Vítor. Em um dia, eu estava calmamente passeando pela praça com o cachorro da minha tia até ser atropelada por um garoto de cabelos e olhos castanhos montado em uma bicicleta. Em outro dia, a gente estava se beijando. E, em ainda outro dia, eu tinha ganhado um anel de compromisso.

Eu nem sei com quantos meses se ganha um anel de compromisso.

Mas o fato é que eu tenho um, mais o namorado que veio junto no pacote. E, honestamente, não posso reclamar de nenhum dos dois; o anel sempre combina com todas as outras trocentas joias que eu uso quando vou trabalhar, mesmo que meu irmão fique enchendo o saco para que eu não o use; e o Vítor é o namorado que toda garota pediu a Deus.

Quer dizer, ele não tem aquela coisa fresca de me ligar todos os dias à noite para eu ser a última voz que ele vai ouvir antes de dormir (até parece que alguém faz isso). Mas ele não me trai nem nada.

Então, naquele primeiro dia de aula, é claro que ele foi até a minha casa para ir me buscar.

Eu já tinha dado um sumiço nas muletas, e da bala só sobrara um curativo e o fato de eu estar mancando, mas é claaro que ele tinha que insistir em levar a minha mochila.

– Não.

– Ell, deixa de ser fresca! Você ainda tá mancando – ele insistiu com os braços cruzados sobre o peito.

– Eu sou perfeitamente capaz de andar com a minha mochila nas costas por meia dúzia de quarteirões. Não vou deixar você levar. – Segurei as alças com mais força.

– Aposto que toda garota gostaria que o namorado levasse a mochila dela no primeiro dia de aula.

– Infelizmente pra você, eu sou parte da edição limitada das garotas que batem no namorado se ele não muda de assunto.

Ele revirou os olhos.

– Ah, Ell. Qual o problema de eu levar a sua mochila? Não posso querer fazer um agrado?

Agrado. Vítor passa tempo demais com o avô, sério. Ele tem que mudar essas gírias caipiras.

– O problema é que você só quer exibir pros caras chatos da escola o fato de a novata bonitona – bati cabelo com sarcasmo – de cabelos cereja ser sua namorada. Aliás, o fato de você ter uma namorada.

Vítor imediatamente murchou a postura e ficou na defensiva.

– Não precisa jogar na cara, você sabe.

Acho que foi cruel cutucar o machucado.

Pois acontece que meu namorado é um daqueles caras que demoram mais do que o habitual para entrar na puberdade, então apenas recentemente ele tinha ficado com beleza de homem. Sabe, ombros largos, voz grossa e a desculpa para fazer barba todo dia. Isso, mais o fato de a mãe dele ser meio pirada, fez com que o pessoal sem noção da escola zombasse dele e o ignorasse por todos esses anos.

Mas agora, depois das longas férias de começo de ano, ele tinha começado a malhar para aguentar as notas complicadas do violino, colocado lentes de contato para os óculos não ficarem escorregando até a ponta do nariz enquanto ele tocava e crescido uns bons vinte centímetros. Então eu não culpava o pobrezinho de querer jogar na cara de todo mundo o quanto tinha mudado para melhor.

É claro que era meio constrangedor entrar na escola com um cara carregando a minha mochila, porque oi, vai totalmente contra meu discurso feminista. Mas o que eu podia fazer, a não ser suspirar e tirar a mochila do ombro?

– Desculpe. Foi da boca pra fora.

Vítor ergueu os olhos e, mesmo parecendo meio chateado, deu um meio sorriso.

– Tudo bem.

Ele apanhou a mochila e a pendurou no ombro esquerdo, enquanto mantinha a própria no ombro direito.

– Pronta para enfrentar quatro horas e meia de tédio esmagador?

Sorri, irônica.

– Eu nasci pronta.


oOo


Eu nunca gostei particularmente de colégios.

Quer dizer, é uma selva sem lei em que hormônios pulam loucos por aí e quicam pelas paredes, batendo e derrubando os pobres desavisados que não conseguem se precaver. Na época de Napoleão até que tudo bem, mas nos nossos tempos não há mais necessidade de ficar trancada durante o dia em uma sala com outros 30 e tantos adolescentes.

É claro que minha tia não aceitou essa desculpa, então eu tive que ir do mesmo jeito.

Mas obviamente ela tinha que terminar de me ferrar. Não bastava eu ter que ir para a escola e ficar na mesma sala que o meu irmão. Não. Ela tinha que cadastrar a gente no programa de bolsistas.

Programa.

De.

Bolsistas.

Se eu matasse aula, perdia a bolsa. Se eu colasse, perdia a bolsa. Se a minha nota descesse, perdia a bolsa. Se eu respirasse do jeito errado, perdia a bolsa. E isso era um saco.

Minha tia disse:

– Pare de reclamar, Ell. Sabe como foi difícil aceitarem a sua bolsa? Eles não costumam fazer isso para alunos superdotados, dizem que é injusto com o resto do pessoal que tenta fazer o programa.

Mas eu não tinha pedido para entrar na escola. Por mim, um dos pobres coitados de inteligência inferior podia muito bem pegar a minha bolsa. Tenho certeza de que me daria muito bem como autodidata.

De novo, é claro que minha tia não aceitou essa desculpa.

E foi por esse motivo que, quando sentei à minha carteira, senti como se todos os olhares da sala estivessem encarando o meu cabelo pintado de cereja com certo desprezo. Vítor riu baixinho.

– Acho que eles estão meio chocados com o seu estilo.

E eu nem sou chocante!

... Só um pouquinho.

Mas ei, se eu não encher meu cabelo de química, qualquer fio solto pode ser usado contra mim. E tenho que arrumar alguma coisa grande para esconder o C marcado a fogo no braço direito. Tinta cereja desbotada no cabelo todo (cereja, não rosa!), mais uma meia ¾ colorida que virou luva para o antebraço fazem o trabalho. De resto, a calça velha é porque não sobram muitas quando você as usa para correr por aí lutando pela sua vida, e o all star pré-histórico é porque ele já está tão amaciado que eu nem sinto mais.

Mas, como eu já disse, a selva escolar sente necessidade de julgar negativamente tudo o que é diferente. Principalmente se o diferente te encarar friamente de volta.

– Deixa eles se chocarem. O Lince te ligou? Não recebo notícias dele desde ontem – comentei. Tentei não parecer muito preocupada enquanto vasculhava a lista de chamadas do meu celular.

– Não, não ligou. Mas ele tá com a sua avó, não tá?

Na verdade, ele estava de vigia na base. Mas não dá para explicar isso ao Vítor, então para todos os efeitos Lince passara a noite cuidando da nossa “avozinha que sofre de Alzheimer”.

– É, mas e se ela tiver uma recaída? Eu sempre sou a retardada que só descobre quando a diretora vem dizer, toda cheia de expressões de pena, que minha avó foi para a UTI¹.

– Pare de se preocupar – Vítor disse. Então aproximou a mão e segurou meu queixo, erguendo meu rosto até que ele pudesse olhar nos meus olhos. – Tá tudo bem. Eu sei que está.

Eu sorri e desviei gentilmente a mão dele.

– Sem agarrações na sala de aula, por favor.

– Você que manda. – Vítor checou as horas no relógio de pulso. – O sinal já vai tocar, tenho que ir pra minha sala. A gente se vê no intervalo?

– A gente se vê no intervalo.

Ele apanhou a mochila, caminhou até a porta e sorriu antes de sair.

Ai meu Deus, por que o amor tem que ser tão retardado?, pensei comigo mesma, enquanto debochava dos meus próprios pensamentos frescos de “Ele é tããão lindo!”

Pouco tempo depois, um professor baixinho entrou na sala, apresentou-se com uma voz monótona e estava começando a passar alguns cálculos matemáticos no quadro quando Lince entrou.

Ele tinha o rosto arranhado, a postura meio caída e mantinha uma expressão de quem dormiria a aula toda se pudesse, mas parecia inteiro. Como nunca vem boa coisa quando meu irmão não me mantém informada, fiquei extremamente aliviada.

– E você é...? – o professor perguntou, interrompendo a aula para observar Lince de forma repreendedora.

– Pode me chamar de Lince. – Ele lançou seu sorriso sou-irresistível-e-simpático, que fez as garotas prestarem mais atenção.

– Lince, eh? Acho que não tem um Lince na lista de chamada. Qual o seu nome?

– Daniel.

– Você é novato?

– Sou, sim.

– Aquele que pegou a bolsa de atleta?

De repente as meninas prestaram ainda mais atenção.

– Isso. Eu pedi à coordenadora para avisar que iria atrasar.

– Fiquei sabendo. – O professor desviou os olhos do quadro e percorreu a sala. – Quem aqui é a irmã dele?

Levantei a mão sem muita energia. O professor me observou por alguns instantes, franzindo a testa como se estivesse esperando outra pessoa.

– E você pegou a bolsa integral, não foi?

– Foi.

– Então por que não vem aqui na frente resolver uns exercícios pra mim?

Droga!

– Ah, eu não acho que...

– É, Ell – Lince cortou segurando o riso. – Por que não vai lá na frente resolver uns exercícios?

– Lince, não. Eu não...

– Ahhh, mas vai deixar o professor na mão assim? – ele continuou. – Você só precisa de algum estímulo!

Não. Não. Não use seu carisma.

– Vamos, todo mundo. Ell! Ell! Ell! Ell!

Desgraçado!

A turma o seguiu rapidamente, como um bando de cachorrinhos. Eles não estavam nem aí de acompanhar um cara que não conheciam na hora de zoar uma garota que conheciam menos ainda. É que isso é coisa do meu irmão, sabe, dominar multidões. Eu até consegui resistir mais alguns segundos, mas por fim apenas fiz uma cara feia para Lince e levantei, e todos bateram palmas enquanto eu me encaminhava para o quadro.

– Muito bem! – o professor exclamou sorrindo enquanto me entregava um canetão de quadro branco. – Você resolve a letra A. Áurea, sobe aqui e vem responder a letra B.

A turma cochichou excitada algo que consegui entender como “duelo de titãs”. Então virei-me de costas para o quadro para ver minha adversária e identifiquei uma garota ruiva levantando-se. Tinha a pele anormalmente clara para um país de clima tropical, e vestia uma blusa de frio da GAP mesmo sendo verão. Era esbelta, e mesmo de longe eu podia sentir o espectro da noite que ela emanava.

Mais do que isso.

O cheiro dela.

Azedo, incômodo, que fazia meu nariz coçar e dava um gosto ruim na garganta. 220 anos, eu diria. Talvez um pouco menos. 210. E aquilo me lembrou do motivo para nós termos vindo para o Colégio Cáspio, para começo de conversa.


¹ Unidade de Terapia Intensiva. Mas você já sabia.


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