Os Gêmeos Bouvier - A Resistência escrita por That Crazy Lady


Capítulo 17
Vince é um mau caráter e ninguém pode negar




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Tentei assistir o seriado com o Vince, mas ele tinha um cheiro de chocolate quente que me tirava do sério. Como cigana, sou imune a feromônios de vampiros, mas isso não me impede de sentir os cheiros. Chocolate quente, grama recém-cortada, café moído, pão assando e aquele cheiro maravilhoso de terra molhada e com leves pitadas florais, de quando chove no jardim, são os cheiros que geralmente me assombram sempre que baixo a guarda. Vince geralmente alternava entre chocolate quente e café moído; César cheirava fortemente a jardim molhado e grama recém-cortada; e Áurea cheirava a pão assando. Quer dizer, quando não estava sendo tão vadia que começava a feder leite azedo.

O cheiro de chocolate quente foi subindo por minhas narinas, descendo pela traqueia e voltando a cada vez que eu respirava, até me deixar completamente inebriada. Meio grogue, deitei no ombro de Vince, fechei os olhos e... Dormi durante duas horas seguintes, só acordando quando ele me sacudiu gentilmente.

– Tá na hora de ir – chamou baixo.

– Já? – resmunguei sonolenta.

– Aham.

Franzi a testa e levantei a cabeça, bocejando longamente enquanto arrumava o cabelo. Vince levantou do sofá e sumiu pelo corredor.

– Aonde vai? – perguntei.

– Trocar de blusa. Você babou meu ombro todo.

Ops.

Ergui o corpo lentamente do sofá, estalando as juntas no processo com grande satisfação. Depois, fechei os olhos e comecei um exercício simples de respiração, que nos ensinam para poder executar magias particularmente difíceis (e controlar o gênio, mas nunca fui muito ligada a essa última utilidade). A coisa é bem simples. O ritmo da respiração controla as batidas do coração, e as batidas do coração influenciam nas emoções. Controle a respiração, e você controla suas emoções.

Por que eu precisava controlar minhas emoções? Dãh, eu estava indo ao Nyx. Os caras farejam fraqueza por lá.

Literalmente.

Vince voltou depois de pouco tempo e interrompeu totalmente minha concentração porque, ironicamente, ele colocara a camisa sobre o ombro ao invés de vesti-la.

Sério, qual a necessidade masculina de exibir os músculos? Se fosse para outra garota ainda ia, mas desde que eu tratei de uma infecção no ombro do meu irmão, bíceps não me impressionam mais.

(Aquela coisa soltou um balde inteiro de pus, cara. Me deixou traumatizada.)

– Você não vai subir na moto sem camisa – avisei imediatamente.

– Primeiro: O nome dela é Valquíria. – Vince cruzou os braços sobre o peito nu. – Segundo: Ela é minha e eu subo nela como eu quiser.

– Oh, desculpe. Quis dizer que eu não vou subir na moto se você estiver sem camisa. – Cruzei os braços também, encarando-o.

Vince apenas deu um meio sorriso.

– Se você faz tanta questão... – Ele tirou a camisa do ombro, vestiu, apanhou a jaqueta de couro em cima da televisão e foi para o lado de fora da casa. – Mas até parece que você nunca me viu sem camisa! – ele fez questão de gritar.

Ainda bem que não tinha ninguém por perto em um raio de quilômetros, porque aquilo soou completamente vulgar. Na verdade, eu tinha visto Vince sem camisa sim, mas foi só quando consegui abrir um corte gigantesco na panturrilha e ele a usou para fazer um torniquete. Absolutamente sem maldade.

Depois de uma hora tão insana quanto os quarenta minutos que usamos para chegar até a casa, paramos na frente de uma enorme igreja abandonada. Vista de fora, parecia completamente pacata e até um pouco assustadora à luz da lua nascendo no céu. Vista de dentro já era outra história...

Desci da moto e apanhei a mochila.

– Seja discreto – avisei. – Queremos sair daqui o mais rápido possível, sem arrumar confusão.

Vince revirou os olhos.

– Tá, tá. – Ele passou por mim sem cerimônia alguma e tomou a dianteira, andando até a porta da igreja. Lá, bateu cinco vezes ritmadas e esperou.

Depois de poucos segundos, uma das portas duplas se abriu e pequenos olhos pretos espiaram pela fresta por alguns segundos. Vince sorriu, mostrando as presas propositalmente, enquanto eu discretamente puxava um pouco a manga do braço esquerdo para mostrar os espirais tatuados em minha pele. Os pequenos olhos piscaram, então sumiram; e a porta pareceu terminar de se abrir completamente sem ajuda. Vince e eu entramos na nave fria da igreja, olhando em volta.

A maior parte dos enfeites de santos que tinham algum ouro ou prata já haviam sido roubados há tempos. O altar estava todo empoeirado e mais parecia um condomínio de aranhas, assim como os poucos bancos que não tinham sido devorados por cupins. Mesmo o chão parecia meio incerto, e rangia a cada passo dado por mim – ao contrário dos passos de Vince, absolutamente silenciosos, fazendo parecer que ele estava simplesmente flutuando sobre a madeira.

Cruzei os braços sobre o peito e forcei os olhos na escuridão. Minha visão era melhor do que a dos humanos normais, mas Vince ainda dava de dez a zero em mim, então apenas o segui pela igreja. Era meio arrepiante pensar que embaixo dos meus pés havia pelo menos cinquenta covas diferentes cavadas 200 anos atrás, mas não havia tempo para pensar em coisas como essa.

– Aqui – Vince chamou. Ele se abaixou e puxou uma ponta do retângulo de madeira que demarcava a cova número 13. Com facilidade, retirou o pedaço de madeira, revelando um alçapão. – Damas primeiro.

– Ha-ha. – Puxei as mangas mais para baixo e encaixei os polegares nos pequenos furos que eu tinha cortado em suas pontas. Com cuidado, desci o corpo no buraco até chegar ao ponto em que estava suspensa apenas por minhas mãos; então, prendi a respiração e me soltei.

Sério, nunca é bom sentir o corpo caindo. É ótimo em uma montanha-russa, quando você está pagando para ter a sensação de queda livre, mas no fundo não é realmente uma queda livre, porque tem cintos e todo o resto te protegendo. Cair de verdade, na escuridão completa e fria, era bem mais assustador. E aterrissar numa escuridão tão completa quanto a primeira, em algum tipo de material desconhecido, era ainda mais assustador.

Depois de alguns segundos, ouvi um segundo baque surdo ao meu lado, e logo mãos firmes vinham me ajudar a levantar.

– Eu odeio essa entrada – Vince comentou em algum ponto ao meu lado.

– Eu também, mas fazer o quê? Ninguém da Inquisição pagaria pra ver o que tem aqui em baixo sem acabar morto no processo. – Bati rapidamente na roupa, tentando tirar qualquer sujeira. Estendi a mão na escuridão, e Vince a segurou no mesmo instante, encaixando-a ao redor de seu braço curvado. Basicamente, começamos a andar como um casalzinho não de mãos dadas, mas de braço dado, o que é ainda pior.

Então, em certo ponto, Vince abriu uma porta e o som ensurdecedor atingiu meus ouvidos no mesmo instante. Soltei do braço de Vince e assumi a dianteira, olhando em volta cautelosamente.

Nyx era, basicamente, uma rave para míticos de qualquer tipo, com direito a jogo de luzes e batida tão forte que eu sentia todos os meus órgãos se remexendo dentro de mim. Como a maioria dos míticos tem problemas com luz solar de todo tipo, a rave ficava no subsolo de algum lugar que ninguém realmente sabe qual é. Afinal, só porque a entrada ficava naquela igreja, não significa que o Nyx também ficava. Entradas você coloca em qualquer lugar e destrói a qualquer hora.

Ou seja, o Nyx era o terreno perfeito para todo o tipo de aberração que por acaso resolvesse andar por aquelas bandas.

Mas eu procurava uma aberração específica, então simplesmente comecei a cotovelar quem estivesse no caminho para poder andar.

– Licença, desculpa, licença, licença, vai um pouquinho pro lado?, brigada, licença, lic- Eu pedi licença. – Um dos caras no caminho aparentemente não gostava de ser cotovelado, pois segurou meu pulso com força quando tentei abrir caminho. Fechei a mão em um punho e o encarei, repetindo friamente: – Licença?

Infelizmente, uma voz de sotaque cantado impediu que o pau quebrasse.

– Rapazes, rapazes, não briguem! – exclamou, vindo de algum ponto da multidão. – Johnny, solte a moça, sim?

O tal Johnny apertou os olhos com força.

– Meu. Nome. Não. É. Johnny.

– Oh, esse é um ótimo filme – a voz respondeu.

Então, revelou-se ser de uma figura alta e magra, vestida de forma no mínimo extravagante. Careca, camisa social azul claro forte, calças brancas justas e cheias de brilho, um sobretudo azul-marinho e botas com saltos de plataforma de pelo menos oito centímetros. A figura bizarra apenas balançou a mão, e já foi o suficiente para “Johnny” me soltar.

– Isso, muito bem! Paz na minha rave, lindinho. Por que não vai tomar um drinque? Isso, isso, tchau, vaza. – Ele sorriu e cravou seus olhos heterocromáticos em mim. O direito era azul claríssimo, quase gelo, enquanto o esquerdo era verde escuro, fazendo um contraste que não poderia ser mais arrebatador. – Mirella, minha deusa-fênix preferida! – exclamou.

– Felix, querido, quanto tempo! – Sorri para Felix e nos cumprimentamos com dois beijinhos rápidos nas bochechas.

Felix é meu informante desde que a primeira vez que vim ao Nyx. De alguma forma, ele parece idolatrar meu irmão e eu, nos tratando como “deuses” e coisas desse tipo – o que não o impede de cobrar as informações. Ao mesmo tempo em que sei ser uma gracinha, não parece que ele está totalmente brincando quando nos trata assim.

Pensando bem, isso me lembra de Isabel. Caralho.

– Eu-que-o-diga! O que a minha deusa está fazendo aqui no Nyx? – Ele lançou um olhar enigmático para Vince, e sussurrou: – E ainda junto com esse ser aqui do lado...

– O ser tem nome – Vince retrucou irritado. – Vincent Mescolini, muito prazer.

Foi o que bastou. De repente, uma onda de sussurros se espalhou pelos arredores, e Vince pareceu perceber a enorme cagada que tinha feito, pois começou a olhar em volta muito preocupado.

– Vincent Mescolini? – alguém exclamou. – Esse canalha me deve há quarenta anos!

– O safado pegou o dinheiro...

– Mescolini? Cadê?

– Nunca mais apareceu de novo...

– Me roubou! Me roubou!

Cadê os meus dez mil, sanguessuga? – Vince foi apanhado pela garganta e tirado do chão por um ogro que, sem brincadeiras, era praticamente um armário. Ele tentou se livrar da mão enorme que o prensava contra a parede, mas mesmo sua força de meio-vampiro não bastou.

– Eu deixei... Em outra calça... – Vince soltou com um quê de sarcasmo. Isso apenas enfureceu ainda mais o ogro que o segurava.

– Você acha que eu estou brincando? Eu quero o meu dinheiro!

– Eu também!

– É! – todos exclamaram.

Ok, ok, nem todos. Mas pelo menos a grande maioria.

– Felix, faça alguma coisa! – gritei, apontando freneticamente para Vince.

– Minha deusa, em certas coisas eu simplesmente não posso interferir porque tenho amor à minha vida – ele se justificou tristemente.

Saco. Eu sempre tenho que fazer tudo sozinha.

Com um leve movimento de mão, materializei uma das cartas da minha família real – mais especificamente, o Valete – e o joguei no chão, cruzando os braços e esperando.

Em poucos segundos, fios de energia azulada se ergueram da carta no chão e começaram a se entrelaçar em dois pontos paralelos. Logo, os pontos se juntaram e se alargaram, formando pernas, depois tronco, depois braços e por fim uma enorme cabeça grotesca. O Valete tinha três metros de altura e precisava se abaixar para caber inteiramente no espaço da rave, mas sua foice de dois metros e meio mais o rugido feroz compensaram esse pequeno problema de altura.

ROAAAARRRRRRRR!

E todos subitamente se calaram, chocados. O Valete estendeu a mão para Vince e o tomou de um ogro paralisado, que cedeu sem resistência alguma. Então, o italiano encrenqueiro e cara-de-pau foi baixado bem ao meu lado, sendo que a essa altura eu já tirara o casaco para mostrar as tatuagens em toda a sua glória. Porque, afinal, tem que sentir o drama da cena, senão cadê a graça?

– Estou absolvendo Vincent de qualquer dívida pendente que ele tenha com qualquer um de vocês – anunciei casualmente. – Alguém tem algo contra?

Ninguém se manifestou.

– Ótimo! Eu vou deixar o meu amigo grandão aqui até sairmos, mas não se preocupem, ele não mexe com vocês se vocês não mexerem com ele. A não ser, é claro, que eu mande. – Dei um sorrisinho alegre e me virei para Felix. – Vamos?

Felix me lançou um olhar enigmático, mas não disse nada e apenas seguiu caminho por entre as pessoas. Acho que nem preciso comentar como foi mais fácil caminhar, já que eles simplesmente saíam do caminho por conta própria ao invés de precisar serem cotovelados. Felix, Vince e eu chegamos do outro lado e subimos uma pequena escadinha em caracol que levava ao andar superior da rave.

Foi só terminarmos de subir o último degrau para eu me deixar cair sobre Vince, completamente exausta.

– Merda de Valete consumidor de energia vital, merda de Vince mau caráter, merda de rave, merda de vida. Eu odeio todos vocês – lamentei. – Menos o Felix, o Felix é lindo.

Felix me lançou um sorrisinho contente e se jogou em um dos muitos pufes coloridos espalhados pelo chão. Vince me carregou até um amarelo, arrastou um azul até o meu lado e por fim se largou nele.

– Eu não sou mau caráter – teimou baixo.

Suspirei.

– É sim – afirmei simplesmente.


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