Os Gêmeos Bouvier - A Resistência escrita por That Crazy Lady


Capítulo 16
Tinha que ser o Vince, sério.




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Aterrissei de cara no chão.

Literalmente.

– Eu daria nota seis na aterrissagem – Vince comentou a alguns metros de mim. Ergui o rosto da terra, arqueando as sobrancelhas.

– Bom te ver também, Vince.

Ele sorriu e veio até o meu lado, segurando meus ombros e me erguendo do chão com a maior facilidade e naturalidade do mundo. A parte da frente da minha túnica estava simplesmente empapada com algo que eu esperava com todas as forças que fosse lama, então ele bateu as mãos na calça com certo nojo ao de me pôr de pé. Depois, tirou um lencinho do bolso e me estendeu.

– Aqui, limpa o rosto.

Era um daqueles lenços de tecido que o pessoal de antigamente colocava no bolso do paletó. Foi engraçado ver um garoto de dezessete anos e casaco de couro tirá-lo da calça jeans, mas aí lembrei que ele tinha quase 130 anos e tirei a ideia da cabeça.

Segundo Vince, porque eu não presto atenção às aulas de história, o período de imigração dos italianos para as lavouras de café brasileiras (na época conhecidas como árvores de ouro negro) começou em 1800 e alguma coisa e durou até o final da década de 20, quando houve a quebra da bolsa e o café foi drasticamente desvalorizado. Um monte de italianos aproveitou o fim da escravidão brasileira para sair de sua Itália falida e montar vida nova no “Novo Mundo”, e Vince foi um deles.

Mas os barões do café não estavam preparados para lidar com qualquer empregado que não fosse um escravo, então as condições de trabalho eram horríveis, com direito a castigo físico e tudo mais. Vince, tendo vindo sozinho e mandando dinheiro para a família enorme mensalmente, não tinha condições de pagar tudo o que precisava, então não foi exatamente surpresa quando ele foi chicoteado até uma quase morte.

A sorte dele (ou azar, depende do ponto de vista) foi que um dos outros trabalhadores era vampiro e, vendo a oportunidade para aumentar o poder de seu clã, o mordeu.

Mas a coisa funciona diferente para meios-vampiros. O gene vampírico é recessivo, ou seja, não demonstra características suas até o momento em que é ativado com veneno. Quando isso acontece, o resultado é uma mutação bizarra em que o ser é imortal, não sofre com sol ou água benta ou coisas assim e tem suas características físicas (agilidade e força, por exemplo) em um nível maior do que o humano, mas menor do que o vampírico. Enfim, é um meio-termo bem útil.

Só que Vince não queria se afiliar a um clã e ficar fazendo disputas por território. Se era para lutar e aproveitar suas habilidades, então que fosse em algo maior. Pensando assim, ele viajou para a Inglaterra e lutou na Primeira Guerra contra a Alemanha, independendo do lado da Itália – não estava exatamente contente com seu país natal. Depois, na Segunda Guerra, juntou-se a um pelotão americano e lutou com eles, logo depois indo até os Estados Unidos. De lá, foi recrutado para a Guerra do Vietnã, e só voltou ao Brasil depois de se cansar da matança, para trabalhar para César, que ficou mais do que contente em ter um veterano triplo na Resistência.

Décadas depois, nos conhecemos. Na verdade, a cena foi meio estranha.

Eu tinha dez anos. Estava sentada na escada que levava ao terraço de um dos prédios sob o comando da Resistência, e encarava minhas tatuagens recentes como se fossem a coisa mais impressionante desse mundo, abrindo e fechando os dedos e tentando acompanhar todos os espirais. De repente, saindo do terraço, Vince veio descendo as escadas e simplesmente tropeçou em mim, o que fez nós dois rolarmos os quinze degraus até sairmos pela porta destrancada num saguão. Toda a papelava que ele segurava se espalhou pelo chão, algumas até voando pela janela.

Você não olha por onde anda, seu babaca?! – berrei irritada enquanto tentava fazer parar o sangramento no meu joelho.

– Como eu ia ver que tinha uma pirralha pregada no degrau com toda essa papelada na minha mão?! – ele rugiu de volta.

– Pirralha é a tua mãe, cala essa boca se não te dou um couro que vai fazer você perder o rumo de casa, ouviu?

Seus olhos faiscaram e, em dois segundos, eu estava sendo prensada na parede com uma mão firme na minha garganta, fechando minhas vias respiratórias.

Mas não seria assim tão fácil para ele. Com raiva, eu reuni minha energia em uma parede e a joguei contra Vince, que voou até o outro lado e só parou depois de bater na parede oposta. Tossi algumas vezes enquanto ele se recuperava da pancada, já mostrando os caninos para mim. Vendo que era um vampiro, simplesmente puxei meu arco e a única flecha que tinha permanecido na aljava depois de rolar escada abaixo e apontei para ele, com um olhar feroz no rosto.

– Não duvide da minha pontaria, vampiro – fiz questão de avisar.

– Eu não sou um vampiro – ele disse com nojo, como se eu fosse muito idiota. – Sou um meio-vampiro.

– Grande diferença.

– Uma pirralha como você não saberia diferenciar, mesmo.

– Eu não sou pirralha! Sou a melhor agente da minha idade, tá!

– E quantos anos você tem? – ele perguntou em um tom zombeteiro. – Oito?

– Tenho dez anos.

– Grande diferença – ele me imitou.

Àquela altura eu já estava tão irritada com aquele meio-vampiro convencido que teria soltado a corda do arco sem nem hesitar; mas, antes disso, meu irmão irrompeu saguão afora e observou a cena confuso.

–... O que você fez agora, Ell? – ele perguntou cansado, massageando a têmpora.

– Ele nos chamou de pirralhos e mostrou os dentes pra mim! – exclamei no mesmo instante, apontando acusatoriamente para Vince.

– Eu te chamei de pirralha, não falei nada do menino.

– Somos gêmeos, otário. Se me chamou de pirralha, chamou ele também.

Lince caminhou irritado até mim e baixou meu arco. Depois, me levantou do chão e disse a Vince:

– Desculpe pela Mirella. Ela é meio sem-noção.

Vince apenas nos observou atentamente, já de pé também. Ele passou alguns segundos em silêncio, mas por fim assentiu.

– Coragem demais, esse é o problema dela. Vou te observar atentamente, Mirella – ele disse sorrindo zombeteiro –, quem sabe você não resolve esse problema e poderemos conversar direito.

E saiu da sala.

Nos encontramos muitas vezes depois que virei agente, e logo começamos a ter conversas civilizadas. Ele achava engraçado que eu fosse tão apelona, e eu achava legal ouvir as histórias que Vince tinha para contar. Depois de um tempo, começarmos a “namorar” não foi nenhuma surpresa. Ele só teve que esperar até eu ter idade o bastante para não ser pedofilia, claro, mas foram bons tempos.

Até um ano atrás, quando Vince teve que ir resolver alguns assuntos com algumas pessoas por algum tempo e... Desapareceu. Quando cansei de esperar, conheci o Vítor e ‘tamos aí.

Então ele volta e fode a coisa toda, de novo. Saco.

– Obrigada – agradeci, devolvendo o lenço. Ele me olhou de alto a baixo, um sorrisinho se formando em seu rosto.

– Uma toga? Sério?

– É, elas não são muito fãs da moda pós-Jesus Cristo – comentei ironicamente. – Quem sabe daqui a mil anos não começam a usar vestidos da Idade Média.

Vince apenas riu e tirou uma mochila do ombro, estendendo-a para mim.

– Toma aqui a sua mochila emergência. Eu colocaria um casaco por cima dessa toga, porque você não vai subir na Valquíria assim, toda suja de lama. – Ele apontou com a cabeça para a Harley Panhead 1948 parada na rua ao nosso lado, vulgo Valquíria.

– Você é muito fresco, véi. – Rasguei a barra da toga até ela ficar dois palmos acima do meu joelho, porque caso contrário não conseguiria sentar na Harley, e vesti um casaco qualquer que encontrei na mochila. – Feliz?

Vince apenas jogou um capacete preto para mim e subiu na moto, girando a ignição. Subi na garupa e enfiei o capacete na cabeça.

E, quer saber? Tenho certeza absoluta de que ele foi a cento e cinquenta quilômetros por hora só para me forçar a me agarrar a sua cintura com força. Esse tipo de coisa é típica dele, o desgraçado.

Demoramos quarenta minutos insanos para chegarmos à casa de Vince. Ele aparentemente fazia questão de deixar bem claro como era “imortal”, porque fazia ultrapassagens impossíveis como se fossem normais; eu mesma jurei ter visto minha vida inteira passar na frente dos meus olhos umas cinco vezes. Finalmente, ele tomou um desvio de estrada de terra e seguiu por mais cinco minutos até chegarmos a uma cabana jeitosa situada entre várias árvores frondosas, com pássaros cantando e tudo mais.

Benvenuti al Mescolini Mansion – ele saudou depois de parar a Harley, sorrindo ironicamente para mim.

– Vou fingir que entendi tudo, ok? – Sem paciência para conversas, desci rapidamente da moto e abri a porta da frente sem nenhuma cerimônia. Marchei até o banheiro a passos rápidos, tranquei a porta atrás de mim e, finalmente sozinha, apoiei as mãos espalmadas na pia e me encarei no espelho.

Cara, eu estava um caco. Dos feios. Meu cabelo mais parecia uma juba cheia de frizz, havia bolsas roxas sob meus olhos e meu rosto estava mais esquelético do que o normal, com a pele em um tom pálido doentio. Somente meus olhos continuavam os mesmos, em seu imutável tom castanho esverdeado, ainda que seu brilho parecesse mais fraco.

Despi-me e entrei debaixo da água quente do chuveiro. Durante alguns segundos permaneci quieta, mas por fim engasguei com meu próprio choro acumulado e acabei sentando no chão molhado e chorando tanto que dava pena.

Eu era muito, muito chorona quando mais nova. Só melhorei depois que percebi que chorar, além de não mudar em nada a situação, faz com que você pareça mais fraca para quem está observando. Desde então, guardo minhas crises de choro para momentos como esse, em que o barulho do chuveiro oculta meus soluços.

Quando as lágrimas cessaram, suspirei fundo para colocar as ideias em ordem e terminei de tomar banho. Vesti uma calça cargo resistente, um cinto elástico preto, uma regata escura e um casaco de tecido fino com quatro botões na altura da clavícula. Prendi o cabelo, molhado mesmo, em um rabo-de-cavalo alto, e calcei meus coturnos. Então apanhei a mochila e saí do banheiro.

Vince assistia despreocupadamente algum seriado americano na TV. Ele nem se virou para me observar quando me sentei ao seu lado no sofá.

– Eu busquei uma pizza na cidade enquanto você tomava banho – ele comentou, apontando para a embalagem de papelão aberta na poltrona ao lado. – É de calabresa, você gosta.

Apanhei um pedaço no mesmo instante e fui comendo com a mão mesmo, completamente morta de fome. Quando tive que parar de comer para respirar, disse:

– Valeu. – E voltei a devorar a pizza.

– Nada. Eu sei o que é passar fome pra caramba.

Consegui comer simplesmente metade da pizza. Jesus, como assim? Lambi meus dedos sujos de queijo.

– Quanto tempo pra anoitecer? – perguntei.

– Duas horas e quatro minutos – ele respondeu despreocupadamente.

Assenti.

– Quando a noite cair, vamos ao Nyx ver que informantes conseguimos comprar.

Vince fez uma careta.

– Ao Nyx?

– Óbvio, né. Onde mais? – perguntei arqueando as sobrancelhas.

– Mas eu devo dinheiro a todo mundo lá – ele lamentou.

Revirei os olhos. Tinha que ser o Vince.


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