Os Gêmeos Bouvier - A Resistência escrita por That Crazy Lady


Capítulo 14
Cumprir meu destino? Ah, morre.




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Para variar, porque as coisas têm andado totalmente normais ultimamente, meu cérebro travou e me deixou parada como uma retardada por alguns segundos. Por fim, Isabel se afastou e, ainda segurando o meu braço, propôs:

– Venha, vamos nos sentar. Carolina, poderia trazer um pouco de água com açúcar para Mirella? Ela deve estar faminta.

A ruiva se curvou em uma pequena reverência e se afastou. Minha mãe me puxou para dentro do salão até algumas poltronas brancas, extremamente confortáveis, onde nos sentamos caladas. No mesmo instante, quatro mulheres de togas pretas surgiram quase do nada, e se postaram dos lados de nossas poltronas. Provavelmente, seguranças.

Na situação toda, havia uma parte que me deixava nervosa: o fato de que os olhos da minha mãe não se desviavam do meu rosto em nenhum momento. Por quê? Porque, bizarramente, ela tinha os meus olhos.

Ou eu tinha os dela. Tanto faz.

– Do que você se lembra? – ela perguntou gentil e pausadamente, como se eu fosse uma criança confusa.

Mantive o olhar firme. De fato, eu estava muito confusa, mas jamais iria admitir.

– De tudo.

Apertei a saia da toga com firmeza, nervosa. Eu sabia o que devia perguntar, mas acabei hesitando algumas vezes antes de finalmente soltar a bomba:

– Onde está o meu irmão?

Isabel deu um suspiro cansado e se recostou no sofá, massageando a têmpora. Oh Deus. Isso não era um bom sinal.

Que merda aconteceu com o Lince?!

– Talvez você devesse esperar Carolina com a água e o açúcar – Isabel sugeriu em um tom controlado.

Minhas mãos começaram a tremer compulsivamente.

– O que aconteceu com o Lince? – exigi saber com a voz tremendo.

– Mirella...

Me diz! – As duas pequenas palavras viraram em um grito esganiçado que eu jamais pensei que conseguisse produzir. Praticamente saiu arranhando da minha garganta.

Isabel umedeceu os lábios com a língua, lentamente, avaliando meu rosto com os olhos castanho-esverdeados. Nós duas ficamos alguns segundos caladas, medindo a situação. Então ela disse:

– A Inquisição já estava planejando o ataque há tempos. A nossa sorte foi que Fabrício se antecedeu ao plano, te desacordando antes que os outros agentes conseguissem imobilizar minhas feiticeiras. Por isso conseguimos entrar a tempo, e te resgatamos antes que a Inquisição te apanhasse. Eles nem se importaram com você, frágil e desacordada no canto da sala. – Minha mãe ao menos teve a decência de desviar o olhar nessa hora. – Mas com Coron foi diferente. Ele lutava. Agia violentamente. Não conseguimos tirá-lo do meio dos agentes antes que fosse levado.

Parei de respirar. A conclusão demorou alguns segundos para se formar claramente.

– Meu irmão está com a Inquisição? – perguntei com a voz presa na garganta.

Isabel me observou por alguns segundos.

– Sim – confirmou.

Jamais subestime o poder de uma garota desesperada.

Avancei gritando em Isabel, minhas unhas compridas imediatamente se tornando armas, e consegui fazer bons arranhões em seu rosto antes que as seguranças saíssem de seus postos ao lado das poltronas e segurassem meus braços. Ver o sangue escorrer de seu rosto, aquele rosto perfeitamente simétrico que decididamente não tinha a expressão de tristeza que deveria, me deu uma satisfação insana que logo se transformou em força para continuar. Como cada um dos meus gritos saía carregado de magia, foi necessário uma terceira feiticeira para me segurar pela cintura.

Por fim, com muito custo, as três conseguiram ignorar meus feitiços gritados e me sentaram de volta na poltrona. Lá, a raiva se transformou em tristeza e frustração, e comecei a ter uma crise de choro descontrolada.

Lince. Lince, Lince, Lince. Sozinho em uma cela escura, machucado até a alma, sofrendo de dentro para fora e de fora para dentro. Com frio, fome, desamparo. Ele sem mim, e eu sem ele. Não parecia certo. Não parecia nada certo.

O que você vai fazer agora, Mirella?, a parte sempre lúcida de meu cérebro perguntou. Eu sabia que, pela lógica, precisava escutá-la e planejar um resgate, rápido. Mas não conseguia. Meu corpo inteiro se sacudia com soluços simplesmente fortes demais para serem verdade, o desespero como um buraco negro no meio do meu peito, sugando toda a razão.

Lince, Lince, Lince.

Por quê? Por que te tiraram de mim? Por que me tiraram de você? Não é justo! Não é certo! Não é natural!

Lince. Ah, Lince.

A feiticeira que não estava me segurando tocou o ombro de Isabel, e no mesmo instante os arranhões em seu rosto sumiram. Ela limpou o sangue do rosto e continuou, sem se importar com minha torrente descontrolada de lágrimas:

– Vocês são, de fato, muito unidos.

E usava um tom não de surpresa, ou de horror, ou de simples constatação. Ela falava aquilo com satisfação.

Meu peito se encheu de uma sensação quente e borbulhante, e cuspi:

– É claro que somos! Eu nunca tive mais ninguém na minha vida em quem confiar! Minha tia tentava nos amar, mas quem ela queria enganar? Acabamos com a familinha feliz dela! Dois desajustados, fora-da-lei, que só davam prejuízo, ameaçando o bem-estar deles todos os dias. Gêmeos, o pesadelo de todos os pais. – Lutei contra um soluço para poder continuar falando, ainda assim com a voz tremendo. – E nós brigávamos! Como cão e gato, sempre que um contrariava o outro. Nessas horas, minha tia quase entrava em depressão enquanto meu tio nos mandava para o quarto com ódio puro nas palavras. E detestávamos a existência um do outro. Mas, no fim das contas, nós sabíamos. Quando a noite caísse e os pesadelos voltassem, éramos simplesmente os únicos em quem encontraríamos conforto. E então nós chorávamos, chorávamos porque nosso destino era tão patético que se resumia a ser um agente da Resistência até acabarmos morrendo aos vinte e poucos anos. E a única coisa que você diz é “vocês são, de fato, muito unidos”?!

Cuspi no chão próximo dos pés de Isabel, com nojo, as lágrimas ainda descendo por meu rosto.

Deus. Eu não imaginei que tinha tanta coisa presa na garganta até jogar tudo para fora.

Isabel suspirou e ignorou meu cuspe.

– Eu sinto muito que você tenha precisado amadurecer tanto, tão cedo. De fato, foi minha culpa. Mas – ela lançou-me um olhar muito severo nessa hora –, não do jeito que você pensa. Agora acalme-se e escute a minha versão da história. Sim?

Seria muito infantil da minha parte começar a negar e fazer birra, por isso dei a entender que meu silêncio soluçante era um gesto de revolta.

– Como você sabe, o ascendente beta é diferente dos outros – ela começou, recostando-se novamente na poltrona. – Não se escolhe esse caminho, é preciso nascer com o terceiro olho para poder ser uma vidente. E, desde cedo, eu já havia percebido como era rara; por isso, assim que tive idade, fiz um trato com o clã dos Lich para me transformarem em sua protegida. É claro, isso inclui fazer um voto de castidade. Mas, para mim, estava tudo bem. Eu preferia ser uma Ca a ter um marido.

“Só havia um problema. Meus pais, aquele maldito casal politicamente correto, jamais me deixariam virar uma Ca. Por isso tive que forjar minha morte aos catorze anos. – Isabel se interrompeu ao ver que a ruiva voltara com uma bandeja. – Oh, Carolina, querida, você trouxe meu chá! Que gentil de sua parte, muito obrigada. Mirella – chamou, apontando a bandeja –, pegue a água com o açúcar e beba tudo, sim?”

Não me movi. Minha mãe se serviu de um pouco de chá e voltou a se recostar na poltrona, mexendo o líquido quente com uma colherinha.

– Foi uma ordem – acrescentou, sem nem se dar ao trabalho de me observar. Seu tom era muito pacato, mas a gentileza que ela usava antes não estava presente.

Novamente, não me movi nem mesmo um milímetro.

Isabel apenas estalou os dedos. Em milésimos de segundo, as duas feiticeiras postadas ao meu lado se puseram em ação. Uma segurou meu corpo em um aperto de ferro, enquanto a outra apertava meu nariz e forçava a água a descer por minha garganta. Fui obrigada a engolir tudo, a não ser que quisesse sufocar.

– Aprenda – Isabel comentou, no mesmo tom perigosamente pacato de antes, enquanto o líquido terminava de descer arranhando – que, quando eu quero alguma coisa, eu consigo. De um jeito, ou de outro. Seria muito mais simples para nós duas se você simplesmente fosse pelo lado fácil. E não vomite – acrescentou –, ou vou te forçar a beber dois copos.

Ela tomou mais um golinho de seu chá enquanto as feiticeiras me soltavam e eu tossia desesperadamente, tentando ao máximo expelir toda a água que havia descido pela traqueia para poder encher meus pulmões de ar.

Talvez (só talvez, minha parte teimosa fez questão de acrescentar), Lince tivesse razão no quesito de ignorar completamente a existência de nossa mãe.

... Lince.

De repente, encontrar minha mãe não pareceu mais ser o paraíso seguro que eu tanto imaginara. Sair da casa da minha tia e dar-lhe paz em sua família perfeita, jamais ter que trabalhar para a Resistência novamente (ao menos não por obrigação financeira), poder fazer todas as coisas fúteis que eu quisesse sem ter mais nenhuma preocupação sobre os ombros.

Não, pois de repente parecia que a situação só tinha piorado.

Àquela altura do campeonato, meu coque knot já tinha se desfeito e mechas cacheadas de cabelo castanho-escuro cobriam meu rosto. Isso, mais estar coberta de lágrimas, água com açúcar, cuspe e com sangue nas unhas devia me fazer parecer – no mínimo – péssima.

Quando me dei conta disso, percebi que não ia encarar aquela mulher sem um mínimo de honra; então me recompus, enxuguei o rosto com as costas das mãos e prendi o cabelo novamente, segurando o choro. Durante todo o processo ela me observou, com uma expressão minuciosamente controlada e olhos analisadores. Sem comentar minhas ações, Isabel continuou:

– Um dia, recebi a notícia de que uma tempestade de raios começara a cair, e foi lá que forjei minha morte. Aliás, você já deveria saber disso pelo recado que te deixei.

Antes da tempestade vem a calmaria... Antes de os raios caírem, ela já havia deixado de ser Isabel e virado Ca L. Maria, meu cérebro traduziu prontamente.

Sério, às vezes ser tão inteligente me irrita. Eu não posso nem fingir que não entendi.

– Deixei meus pertences com um cadáver que, com o choque, ficara com feições irreconhecíveis – ela continuou –, para que pensassem que era eu. Então fugi, feliz, com minha nova família. Mas, claro, Simone tinha que descobrir.

“Eu achei que estava tudo seguro. Feiticeiras não aceitam nomes compostos, por isso abandonei o Maria Isabel e permaneci apenas com o Maria, já que todos que conheci insistiam em me chamar pelo segundo nome. Ca Lich Maria... Quem descobriria que era eu? Mas Simone era muito mais inconveniente do que deveria. Para seu próprio bem, na verdade. Precisei alterar a memória dela muitas vezes.

“Então, um dia, eu conheci Jacques.”

Ela não suspirou nem mudou seu tom quando citou o nome de meu pai. Parecia uma palavra idêntica a todas as outras, sem importância, indiferente.

– Como muitos outros, ele veio ao clã para saber seu destino. E eu vi. Era... – Nesse momento, ao contrário de quando falara “Jacques”, ela usou um tom saudoso. – Inacreditável. Jacques estava predestinado para trazer ao mundo a alma perfeita que salvaria todos nós.

Ah, Deus. Isso de novo não, ninguém merece. Crispei os lábios enquanto ela continuava:

– Seria, obrigatoriamente, seu filho. Então, quando olhei mais a fundo, não pude ficar mais indignada. Sabe o que aconteceria, Mirella? – Ela soltou um riso debochado, revirando os olhos e apoiando o pires no colo. – Ele se casaria com uma humana e abandonaria o mundo da magia. Teria uma família perfeita. Papai, mamãe, filhinha e filhinho. Sabe o que você seria? Uma professora de física. Sabe o que o seu irmão seria? Um advogado. Professora de física e advogado! A alma perfeita trabalhando com adolescentes preguiçosos e marginais! Era um desperdício, eu não podia deixar aquilo acontecer.

“Mas, como já disse, Mirella, sempre consigo o que quero. Por mim, vocês seriam, sim, filhos dele; mas seriam meus filhos também. E eu não os criaria para serem uma professora de física e um advogado – ela disse em tom de desprezo. – Você pode me culpar o quanto quiser por não ter tido uma família, mas eu te fiz algo melhor. Eu te fiz uma guerreira. A mesma guerreira que se recompôs depois de ter água com açúcar forçada violentamente garganta abaixo, que me atacou quando soube que não conseguimos resgatar seu irmão. Quando vi, quase dezesseis anos atrás, que isso aconteceria, cheguei à conclusão de que não devia te resgatar e te criar, como imaginara no plano inicial. Isso não faria de vocês os guerreiros que eu precisava que vocês fossem. Por isso, dei três anos a seu pai, depois que ele e Simone tiraram você e seu irmão de mim; então, como punição, o entreguei e enlouqueci Simone. Vocês conseguiram chegar até sua tia e se tornaram exatamente quem são hoje. E não poderiam estar mais prontos para o que virá pela frente.”

Não consegui resistir e baixei os olhos para meu colo, onde apertava as mãos com força para não tremerem. “Isso não faria de vocês os guerreiros que eu precisava que vocês fossem”, repeti mentalmente.

“Os guerreiros que eu precisava”

Éramos isso, afinal? Apenas peões num enorme tabuleiro, o tempo todo comandados por minha mãe para, no fim, darmos o xeque-mate?

Porque isso parecia um destino ainda mais patético do que ser um agente da Resistência até acabar morrendo aos vinte e poucos anos.

E que caralho é esse de destino? De repente, eu não tenho mais livre-arbítrio, é isso? E não era eu quem devia traçar o meu próprio caminho?

Independente de ser essa coisa confusa de alma perfeita, o que eu ainda acho ser um golpe forte de charlatã, acho que todos têm o direito de decidir sozinhos o que fazer da vida. Inclusive eu e meu irmão.

Então, de repente, vi um furo na coisa toda.

– Se meu irmão foi capturado pela Inquisição, como exatamente você espera que “cumpramos o nosso destino”? – perguntei, carregando a voz de todo o sarcasmo que consegui reunir. Apesar disso, falar de Lince fez com que o buraco em meu peito ardesse como se estivessem jogando ácido em suas bordas. – Distância não conta? Ou o poder total é por satélite, mesmo?

Isabel tomou mais um gole de seu chá, totalmente despreocupada.

– Estamos trabalhando nisso. Por enquanto, você está dispensada. – Ela estendeu a xícara vazia para a feiticeira ao seu lado, que a pegou e desapareceu porta afora. – Agora descanse, mandarei chama-la amanhã cedo para resolvermos algumas questões.

Levantei-me da poltrona cerrando os dentes para não fazer mais nada idiota, mas a feiticeira na porta não me deixou passar.

– E responda sim, senhora quando eu lhe der alguma ordem – Isabel acrescentou.

– Isso é ridículo – declarei descrente.

Mas ninguém, absolutamente ninguém me deu atenção. Fiquei quanto tempo suportei em silêncio, até me irritar e dizer de muito malgrado:

Sim, senhora.

Isabel sorriu o mesmo sorriso cínico que Lince às vezes tem, só que pelo menos um milhão de graus mais gelado. A feiticeira na porta se afastou, e eu saí pisando forte pelo corredor, os dentes trincados para não berrar, chorar ou simplesmente mandar o mundo todo ir você sabe onde.



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