Os Gêmeos Bouvier - A Resistência escrita por That Crazy Lady


Capítulo 11
O dia em que uma louca bateu papo comigo




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Felizmente para mim, já passei por muitas mais situações de choque completo do que Vítor, o que me deu uma vantagem estratégica na recuperação. Assim, levantei-me em um salto e andei a passos largos para longe da sala.

– Aonde você vai? – Vítor perguntou, levantando-se também. Na verdade, pelo tom que ele usava, o mais correto seria dizer “exigiu saber”, o que me incomodou.

– Preciso falar com a sua mãe – respondi sem cerimônia.

Alcancei as escadas e as subi de dois em dois degraus. No meio do caminho cruzei com o avô de Vítor, que me cumprimentou ligeiramente confuso – e não obteve resposta, diga-se de passagem – antes de ser ultrapassado por mim e logo depois pelo meu namorado, que passara a me seguir.

– Helena, volta aqui! Isso é ridículo e de mau gosto, minha mãe não conversa de forma sã com ninguém há anos, e você sabe disso! – Vítor exclamou para mim, parecendo chocado e irritado ao mesmo tempo.

– Conversar com Simone? – o avô de Vítor perguntou confuso. – Mas logo agora, que ela se acalmou?

– É! Diz pra ela o quão idiota isso seria, vô. – Vítor parou no meio da escada e cruzou os braços, me encarando descrente.

Lentamente, eu parei junto e os observei de volta, os olhos alternando entre os rostos dos dois.

Como sempre, meu cérebro rapidamente começou a me fornecer respostas e desculpas perfeitas para a situação, geralmente envolvendo as possibilidades de diálogo junto. É um hábito que você ganha depois de um tempo se enfiando em um monte de bares suspeitos, onde ser mulher facilita um bocado o ganho de informações. Embebede o cara, sorria e mantenha o tom interessado, e todas as portas se abrirão para você, é o que digo. Naquele momento em particular, eu sabia muito bem que o que aconteceria a seguir seria delicado e essencial, e não só para minha relação com o Vítor, mas com a dúvida da minha existência: Minha mãe. A resposta perfeita era, sim, muito requisitada.

Porém, no único segundo que gastei refletindo sobre o que fazer, me dei conta de uma coisa. Uma única e pequena coisa que me fez balançar a cabeça e continuar subindo a escada na direção do quarto de Simone.

Eu não podia parar agora.

Já tinha visitado a casa do Vítor antes, então sabia qual era o quarto proibido que ele sempre entrava sozinho e abandonava pouco depois parecendo mais chateado. Fui direto para ele, abrindo a porta e caminhando a passos duros para a grande cama de hospital no meio do cômodo, antes que mudasse de ideia ou fosse impedida.

O quarto em si me deixava meio enjoada por sua horrível semelhança com um quarto de hospital melhorado. As paredes tinham sido pintadas de branco, exceto uma, atrás da cama, que era verde clara – a cor das salas de espera, por unanimidade. As cortinas também verdes estavam fechadas, deixando apenas uma pouca luz filtrada adentrar. O criado-mudo e a cômoda no canto do quarto estavam cheios de fotos de família sobre eles, como para lembrar repetidamente que nem sempre Simone estivera encerrada naquele quarto cheirando a perfume de ambientes e remédio. A cena toda era deprimente.

Assentei-me na beirada da cama. Simone abrira os olhos, castanhos como os de Vítor, aparentemente confusa com a barulhada na escada. Depois de examinar o ambiente, ela fixou seu olhar no meu rosto.

Passamos alguns segundos nos encarando. Então, como aquelas cenas de filme de terror em que um zumbi sai do túmulo, ela usou a mão sem soro para agarrar meu braço direito com força, e tive que reprimir um grito de susto. Além do movimento repentino, o susto também vinha por uma sensação de sucção aonde nossas peles se encontravam.

Quem ela pensava que era para sair roubando a energia vital dos outros, assim? Ela se chama vital por um motivo, sabe.

Simone suspirou, fundo e pesado, como se estivesse saindo de algum tipo de transe. Provavelmente, estava usando a energia roubada para clarear a mente, e confesso não saber se ficava aborrecida ou feliz com isso. Mas, antes que eu pudesse tirar qualquer conclusão, Vítor alcançou a porta ao mesmo tempo em que Simone começava a falar.

– Sua energia...

E Vítor estacou no lugar, aparentemente em choque por causa do tom consciente que Simone usava. Mas isso não bastou para pará-la, que continuou:

– É tão pura, e límpida... Com certeza, ascendente alfa... – Ela abriu os olhos e me observou de novo. Dessa vez, não tinha o olhar vago e louco de poucos segundos antes. Era firme e, de certa forma, difícil de manter. – Você é virgem?

OW OW OW, para tudo. Como é que é?!

– M-Mãe! – Vítor exclamou. Quando o observei, ele estava vermelho como um tomate, e seria difícil dizer o que o deixara mais confuso: A mãe falando ou o que ela falara.

Pensando bem, acho que minha situação não era muito melhor, levando em conta o nível de lerdeza do meu cérebro travado. Mas deixa para lá.

– Ah, por favor, Vítor. Deixe de viver no passado. Estou pensando em você aqui – ela disse duramente. Então voltou sua atenção para mim. – Vocês se previnem? Eu não tive muito tempo para explicar sobre métodos anticoncepcionais, mas agora que estou consciente acho muito importante fornecer uma aulinha básica.

Definitivamente aquilo não estava saindo como eu esperava.

– Hã, não precisa. Já deram essa aulinha na escola – comentei, tentando fazer minha voz adquirir qualquer tom, menos o de absolutamente confuso.

Simone, farejando fraqueza, me observou. Seus olhos mais pareciam os de uma ave de rapina caçando do que uma sogra falando com a nora.

– Não me olhe espantada assim. Engravidar cedo pode muito bem ser um mal de família. – Ela se aprumou na cama e passou a me observar de forma quase hostil. – E você não vai seguir as pegadas da sua mãe com o meu filho. Entendeu?

Mordi minhas bochechas. Dor funciona como um pé no chão, forte o bastante para me fazer endurecer o rosto e aparentar estar inexpressiva. Modo Mirella: on.

– Eu sou virgem. E acho que seria meio difícil seguir as pegadas da minha mãe, sendo que mal sei o nome dela.

Simone apertou os olhos. O ninho descabelado de cabelos pretos no topo de sua cabeça parecia subitamente muito mais convidativo de se olhar.

– Você está mentindo – declarou.

– Será que estou? – retruquei calmamente. – Que outro motivo eu teria para vir até você, se não fosse para perguntar sobre ela?

Simone fechou os olhos e balançou a cabeça, sorrindo de leve, como se eu tivesse acabado de lhe contar uma piada. Vítor permanecia completamente calado na soleira da porta, pregado no chão como se tivesse criado raízes.

– Isabel ficaria possessa se soubesse – disse Simone, rindo para si mesma. – Você não deve demorar muito para sair, aliás. Tem a desculpa para estar aqui, mas se levar tempo demais, um dos espiões dela pode acabar vindo investigar... E mancomunar comigo não vai deixa-la nem um pouco feliz, sabe.

– Do que está falando?

Simone me observou divertida.

– Ora, ela não aceitou bem a minha ajuda ao seu pai. Disse que eu a traí quando fui cúmplice do sequestro de vocês. E, quando ela fica irritada... Mandou a Inquisição atrás dele e me deixou louca, quer mais exemplos? – Simone observou a faixa que eu passara para esconder o C marcado a fogo, parecendo pensativa por alguns instantes. – O que mais você precisa para acreditar que não há ninguém te observando a mando dela, Mirella?

Muita coisa! – exclamei chocada. – Se eu fosse importante assim para a minha mãe, ela não me deixaria no escuro por todos esses anos!

Simone mediu meu rosto, calada, como se ponderasse se devia me contar algum segredo. Por fim:

– Mas você é importante. É a pequena experiência dela. Isabel jamais a deixaria sem vigilância – ela disse em um tom baixo.

Franzi a testa, sem entender. Ela me observou e começou:

– Eu e sua mãe nos conhecemos desde pequenas. Nós duas vínhamos de famílias nobres, legalizadas com a Inquisição, de muitas gerações mágicas para se vangloriar... Em uma das milhões de festas dadas por meus pais, eu a encontrei.

“Ela tinha cinco anos na época, e eu, doze. Estava parada ao lado de uma árvore, e se entretinha matando pequenas formigas com a ponta dos dedos cobertos por luvas de couro. Como éramos as únicas crianças na festa, resolvi conversar com ela e, quase na mesma hora, viramos amigas, apesar da grande diferença de idade. – Simone sorriu, saudosa por um momento. – Ela tão bonita, com aqueles cachos cor de mel... Era a irmã mais nova que eu não tinha.

“Mas, quando ficamos mais velhas, ficou claro que tínhamos visões bem diferentes da vida. Isabel simplesmente não se conformava com a legalização do cigano promovida pela Inquisição. Dizia que éramos, sim, humanos. Mas também éramos míticos e tínhamos todo o direito de usar nossa magia. Abrir mão de nossos costumes, de parte de quem somos só para não sermos perseguidos era, segundo ela, extremamente injusto. Isso sem contar que apenas o cigano tem o direito de ser legalizado. Ela quase gritava ao defender direitos iguais para todos os míticos.

“Eu lhe disse, muitas vezes, que era perigoso. Que ela não devia pensar assim, ou acabaria cavando a própria cova. E, quando ela fez as Marcas da magia, aos catorze, eu soube que devia me afastar dela. Pelo meu próprio bem, e da minha família. Principalmente do novo integrante.”

Simone voltou os olhos para Vítor, que observava a conversa impassível. Eu não podia dizer qual era a emoção predominante que seus olhos delatavam, simplesmente porque não havia uma. Senti meu coração se apertar, mas Simone continuou:

– Um dia, esse Jacques veio me visitar. Ele era loiro, de olhos claros, muito bonito, com um sotaque francês carregado. Se tivesse 17 anos, era muito. Para minha surpresa, pediu-me ajuda com Isabel. Jacques me disse que ela tinha ficado grávida, e insistiu firmemente que ele não fora criado como um canalha. Jamais a deixaria sozinha criando um bebê! Mas Isabel recusava qualquer participação dele na vida da criança, e isso era inaceitável, o filho era dele também.

“Então, eu fui atrás de sua mãe. Não só para ajudar Jacques, mas por conta própria, também. Como se não bastasse ela ter apenas quinze anos, Isabel sempre usou um anel de castidade, e era inteligentíssima. Eu jamais esperaria nada assim dela.

“Cheguei, contei que sabia que ela estava grávida e ofereci minha ajuda. Disse que podia ajudar a tomar conta da criança, a contar para os pais dela, a nascer, tudo.

“E ela recusou. Simplesmente disse que tinha a situação sob controle. E só começou a me explicar tudo depois que eu exigi fortemente por mais informações; mesmo assim, primeiro fez-me prometer que eu não contaria a ninguém, nunca. Só então revelou que se tornara protegida de um clã de feiticeiras, e estas a estavam ajudando a gerar e criar a criança perfeita. O ser humano perfeito que a ajudaria a acabar com as injustiças da Inquisição.

“Eu disse que era besteira. Loucura! Uma coisa era fazer as Marcas, outra era se unir a feiticeiras e usar magia para modificar um feto. Ela poderia ser queimada, afogada, trucidada por isso. Mas Isabel não ouviu. Ela nunca ouvia.”

– Mas – interrompi –, não era uma criança. Eram duas. Eu e meu irmão somos gêmeos.

Simone sorriu divertida.

– Exatamente.

– Então não podia ser a criança perfeita. Porque éramos dois – argumentei com as sobrancelhas erguidas em uma expressão cética.

Em grande parte, o ceticismo era porque toda aquela história estava me saindo digna de uma charlatona. A busca de um vilão por um objeto de poder perfeito? Fala sério, isso é mais clichê do que amores impossíveis.

– Não podia ser? – Simone aproximou-se de mim na cama, me observando mais de perto. – Diga-me, Mirella. Quantas pessoas perfeitas você conhece?

–... Nenhuma?

Simone sorriu.

– O equilíbrio gera o perfeito. Gera todas as virtudes, segundo Aristóteles. Mas o equilíbrio é baseado em duas forças diferentes, dois opostos equilibrados, que não podem se unir em um único corpo. Seria como deixar anti-matéria entrar em contato com matéria. Destruição inimaginável. Mas – ela ergueu um dedo da mão livre –, e se fossem dois corpos? Com um oposto em cada um?

Mantive o rosto impassível. Ela aguardou a minha resposta até perceber que esta não viria.

– Assim não haveria destruição total. E, quando esses dois corpos entrassem em sintonia por um pensamento, um desejo em comum – Simone continuou em um tom leve –, então o poder maior seria desencadeado.

– Resumindo – interrompi secamente. – Você está dizendo que eu e meu irmão somos duas partes de uma alma perfeita que guarda o poder maior, e que quando dividirmos um pensamento vamos nos unir, gritar “Eu tenho a força!” e sair dando porrada em qualquer idiota que se enfiar no nosso caminho?

Simone me observou de forma cansada.

– Você tem os modos da sua mãe.

Apertei os olhos, com raiva de mim mesma.

– Não acredito que perdi meu tempo com isso. Meu primo podia inventar uma história melhor e, não xingando as portas, ele é mais burro do que uma. Arrume um hobby mais saudável que não envolva fazer piada da perda dos outros.

Levantei-me da cama e puxei meu braço de volta com força. A formicação que o tomava o deixou lentamente enquanto eu passava por um Vítor-vegetal, saía da casa e me direcionava para a biblioteca.

Honestamente, o caminho podia ser longo se ele quisesse. Eu não ligava.



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