Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 19
A Divina Tragédia III / A Divina Tragédia IV


Notas iniciais do capítulo

Capítulo escrito de madrugada *morrendisono*. Talvez nem as músicas fodas de Umineko usadas pra me inspirar tenham poupado a fic de prováveis erros que passaram despercebidos... Me matem, se isso acontecer. 8D



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Agora você compreende...

Era tão inacreditável que sequer conseguia verter lágrimas. Simplesmente inacreditável. Ela era sempre tão ativa; tão viva...

Inacreditável pensar que não veria mais nenhuma manhã. Que não poderia mais reclamar dos chutes que lhe aplicava enquanto dormia.

Que simplesmente acabara ali mesmo.

Nunca achou que o som do sangue fosse tão irritante. Antigamente, adorava-o. Mas agora, o sangue dela... Era uma afronta.

Era inacreditável.

...A minha dor?

Sehriel encarou-a no fundo dos olhos. Aqueles orbes que derramavam a vingança assassina. Não via mais nada ali dentro.

Só um vórtice escuro e faminto. Só o seu pecado.

É, ele compreendia. Tão inacreditavelmente que quis gritar.

Repentinamente, então, ele perdeu toda e qualquer vontade de avançar sobre aquele corpo odioso. Apenas encarou-a. Apenas...

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXXII: A Divina Tragédia III.

 

Nagoya – Japão.

Anos atrás...

Era irritante. O som de sua própria vida lutando para continuar existindo era simplesmente irritante. Não conseguia escutar aquela máquina por muito tempo sem ter vontade de quebrá-la; e sabia muito bem que conseguiria fazê-lo, por isso, tentava ao máximo se acalmar.

Pensava na mãe, naqueles momentos. No seu sorriso, em todos os ensinamentos que ela lhe dera. Em como afagava a falta que o pai fazia em sua vida. E em como chorava ao descobrir que o filho mais velho tinha um câncer inoperável e maligno. Ela e o pai foram bastante claros: Najato Hajaya, ele, iria morrer. Não havia mais nenhuma chance de recuperação. Era questão de sentar e esperar.

Estava no hospital, na verdade, por simples conveniência. Pois logo, iria para Tokyo, para cumprir o dever de um Guardião de Apoio japonês: ir até onde a barreira se encontra e monitorá-la de perto. Cuidar de qualquer monstro que a ultrapassasse. E guiar os Guardiões que não eram daquele país.

Pensou em tudo aquilo. E dormiu, porque aquelas memórias, aquela vida que seria abruptamente interrompida... Tudo aquilo o exauria.

Ele adormeceu e sonhou algo muito bonito. Uma chuva de penas verdes.

No seu sonho, uma voz que não era nem de homem nem de mulher chamou-o por seu nome completo e perguntou como ele desejava a pessoa ideal. A vida ideal. A vida que aquelas penas lhe dariam até o último instante.

Najato desejou. Ele se entregou, achando tudo aquilo muito interessante. Foi assim que assinou o resto da sua vida.

Quando acordou, no dia seguinte, ainda ouvia as máquinas.

Mas viu diante de si, para sua surpresa, uma outra pessoa. Uma moça de olhos cor-de-mel e cabelos verdes e compridos. Tão sedosos que pareciam irreais... Uma pessoa...

C.C.?!” – bradou, livrando-se de imediato daquele torpor sonolento.

A sobrancelha da jovem apenas ergueu-se.

“Não sou C.C. Meu nome é Irieko.”

...Irieko.

Foi o nome que deu àquela criatura em seus sonhos que tinha uma voz de um timbre tão reconfortante. O nome que lhe passou pela cabeça, sem significado muito especial.

Apenas um nome que o fazia sorrir, porque lembrava uma professora do jardim de infância, cujo sobrenome era Irie, e depois de se casar, acabou mudando o sobrenome para Kizuki. Najato gostava de ‘Irie’.

“Quem é você...?” – surpreso, achou que ainda estava dentro de um sonho.

Mas percebia que nem mesmo esfregando os olhos aquela visão passava. A moça vestida de branco e de aparência igual àquela contratante continuava ali.

“Você é aquele que criou a ‘humana’ em mim. Você é meu ‘Deus’, Najato-san.”

E ela aproximou-se cada vez mais do seu corpo, até que a mão pálida tocou nos cabelos negros como a noite.

“...Eu nasci apenas para amá-lo.”

Provavelmente, a máquina registrou o aumento de seus batimentos cardíacos.

E Najato pensou, ignorando até mesmo aquele detalhe vergonhoso, que não queria nunca mais acordar daquele sonho.

 

Um alvo. Dois alvos. Três alvos. Dois seguidos. Seis alvos. Sete. Oito. Com pouquíssimos centésimos de pausa, as flechas atingiram os objetivos com louvor.

“...Três segundos e sete centésimos. É um novo recorde.”

Najato sorriu e foi-se sentar ao lado da garota dos cabelos verdes. Ela deixou-se segurar na mão dele, gesto que não passou despercebido; ao vê-la aproveitar-se do fato deles estarem sozinhos (a senhora Sachie sabia ser tão linha-dura quando queria), deixou-se abraçá-la, trazendo sua cabeça para o ombro dele.

“Mas ainda é muito ruim. Não é nada para derrotar youkais superiores.”

Irieko revirou os olhos.

“Olhe a sua idade e seu talento. Isso é indiscutível: você é um gênio absoluto dentro dessa família.”

“...Mas não sei até quando vou sobreviver.” – suspirou.

“Isso não é seu problema. O pequeno Kaze vai substituí-lo.”

“Meu pai tá colocando toda a pressão da sucessão nos ombros dele...” – o japonês ergueu-se subitamente, nervoso. – “Meu irmão ainda é uma criança!...”

A anjo das asas esmeraldinas também se levantou. Caminhou com passos calculados e leves até ele e abraçou-o por trás, deixando a cabeça descansar na linha de suas costas. Ela fechou os olhos; podia senti-lo vivo, mesmo que todos gritassem o contrário quando o encaravam.

“Você devia estar preocupado com a sua situação. Sequer está mais sendo considerado no testamento do senhor Masaru. Não tem mais nenhum direito.”

“Não ligo pra isso... Eu tenho um câncer maligno e não vou sobreviver mais do que alguns anos. Mas Ka-chan vai sobreviver e vai me suceder... Se, por acaso, eu morrer antes da barreira ser lacrada... Como ele vai...?”

Ela abraçou-o mais forte, como se o proibisse de pensar nisso.

“Lembra da promessa que fizemos?”

O aperto no arco que segurava na mão esquerda foi se desfazendo aos poucos. O mesmo, em pouco tempo, ficou suspenso apenas pelos dedos de Najato.

“...Eu lembro.”

Ele havia prometido que nunca morreria antes de cumprir sua missão.

Impossível esquecer de tal promessa.

“Você jurou que ia cumpri-la. Assim como eu prometi que iria ajudá-lo até o último segundo.” – Irieko fechou os olhos. – “Eu estou cumprindo minha parte, Na-chan.”

O caçador também fechou os olhos.

Mas, ao contrário dela, não resistiu ao impulso de envolvê-la em um abraço, largando o arco e a aljava de flechas no chão.

Sempre a achava excepcionalmente frágil naqueles momentos, como uma boneca de porcelana, mesmo tendo ciência do quão mais forte que ele, fisicamente falando, ela era.

“Desculpe... Eu estava resmungando coisas como um idiota...”

Irieko riu. – “Te perdôo por ser um idiota...”

E ele também. – “...Juro que não sei o que faria sem você.”

 

Tokyo – Japão.

Eles sempre estiveram juntos. Sempre. Como unha e carne. Romeu e Julieta. Nas adversidades e nas alegrias. Até a própria senhora Sachie Hajaya dizia que eles eram o par perfeito. Considerava Irieko sua ‘norinha querida’ (apenas com um gosto para roupas bastante estranho, meio duvidoso – mas, afinal, ninguém era perfeito).

Mas havia uma coisa que sempre esteve ali, sempre os espreitando das sombras: o destino de duas almas entrelaçadas. ‘Até que a morte os separe’. Aquilo também se aplicava a eles. Um humano e uma criatura imortal. Um dia, invariavelmente, a morte iria fazer isso. Iria levá-lo para muito longe. Iria acabar com todos os momentos.

E Iriel, como uma criatura imortal, nunca, jamais poderia pisar onde Najato passaria o resto de sua eternidade.

Já tentara. E já ouvira relatos daqueles que tentaram.

Simplesmente foram repelidos. A imortalidade não é permitida onde vivem os mortais. É uma afronta, uma coisa fora de ordem, uma distorção desnecessária.

Uma vez separados, humanos e anjos, nunca mais poderiam se encontrar. O corpo etéreo de humano é banhado nas águas geladas do Lethe, o Rio do Esquecimento, e passa a se lembrar apenas de seu próprio nome. Nada mais do que isso é necessário no Elyssion.

E, para sempre, aquela se torna uma relação de um lado apenas.

Os humanos terminam sua existência. Os seres inorgânicos imortais apenas começam a deles.

Apenas com lembranças.

Apenas com a certeza de que seus ‘Deuses’ nunca mais existirão.

Para alguns, é uma dor forte demais para se conviver. Alguns enlouquecem. Alguns apenas superam. Outros, já desistiram a muitos séculos de criar qualquer laço afetivo com humanos, muito além do que seu personagem requer.

E não importa como lidam com tal fato, continuarão existindo do mesmo jeito.

Um ser imortal não pode se matar. Não pode morrer. Não pode cessar sua existência. Pode mudar de forma, mas jamais morrer.

Para sempre, as lembranças.

Para sempre, a dor.

Iriel sabia disso. Desde o começo, sempre soube. Nascera um ‘Construxi’, e teve uma coleção de inúmeros ‘Deuses’ por todos estes anos.

Homens, mulheres, animais, crianças... Todos estavam lá, em algum lugar de sua memória. Alguns mais, outros menos; de alguns, ela lembrava o nome e não lembrava do rosto. Outros, vice-versa. E de alguns outros, nem uma coisa nem outra, mas sabia ao menos que existiram.

Mesmo assim, sentia um frio invadir-lhe as entranhas quando pensava em perder Najato Hajaya. E via a possibilidade da morte dele muito próxima.

Ele sabia que aquele humano sofria de um câncer pulmonar incurável e maligno, que ia se espalhando e matando-o aos pouquinhos. Najato já estava debilitado, no nível final de sua doença; a morte viria em questão de meses, numa previsão muito otimista.

Mas era apenas uma palavra.

Nunca passou por sua cabeça, verdadeiramente, que ele pudesse morrer.

E Iriel percebeu, naquele instante, quão infectado estava pelas idéias mortais; esse era um erro muito comum dos humanos. E ele estava cometendo-o!

Sua perspectiva mudou, porém, ao ver as asas vermelhas de Remliel.

Seus olhos, sua foice, suas asas, sua pose, suas palavras, o ar que ela respirava... Tudo convidava a morte, o pecado. A destruição.

Não havia nada de bom ali.

Era uma carcaça que havia se perdido em algum lugar da existência. Enlouquecida pela mortalidade dos homens.

“Remliel, recolha suas asas agora.” – Irieko rosnou.

“Tarde demais, Iriel. Agora, os humanos já me viram.” – ela sorriu.

A jovem engoliu em seco.

Olhando ao seu redor, via o pânico nas faces dos civis que por ali passava. Ouvia seus sussurros assustados, e percebia as fotos. Aquilo estava passando de mal para pior.

“Na-chan, baixe sua arma.” – ela pediu. – “Não podemos...”

“Esse anjo mostrou-se na frente de todos.” – o caçador, entretanto, estava bem mais decidido. – “Alguém que desrespeita a ordem pública desse jeito merece uma correção.”

“...E quem vai me corrigir? Você, Najato Hajaya?”

O riso da loira não o fez reagir.

“Sim. Eu.

Mas o contrário aconteceu. Remliel ergueu a sobrancelha, apertando os olhos; um humano insolente era o típico exemplar que eliminaria da face da Terra, se pudesse.

(Se bem que... Ela podia).

“Se erguesse essa flecha com a intenção de me matar, já o teria feito há muito tempo, Najato Hajaya. Eu conheço esse truque.” – ela encostou a têmpora no cabo da enorme foice. – “Isso é intimidação usando o medo da morte e da dor. Totalmente inútil contra uma criatura que não pode morrer.”

Najato revirou os olhos.

E as pessoas gritaram quando pingos de sangue caíram na calçada, enquanto o corpo de Remliel caía com um baque surdo.

O sangue jorrava de sua testa, formando uma poça que manchava seus cabelos. A flecha enterrara-se certeiramente. Alguns começaram a correr, e como o caçador imaginou, o tumulto começara oficialmente.

“Levante-se, anjo!”

Tanto Najato quanto Irieko sabiam que uma criatura imortal jamais se abalaria com aquilo. Era apenas uma simulação tosca de alguém morrendo.

“...Não pense que isso não dói, humano.” – ela gemeu, erguendo-se.

O espanto de algumas pessoas foi visível.

Mas o caçador de youkais, acostumado com as bizarrices daquele mundo místico, apenas pensou em como seria trabalhoso impedi-la. Porque a morte jamais faria isso.

Remliel tirou a flecha de sua testa, com um impropério escapando dos lábios.

E, antes que ela baixasse totalmente a mão, Najato lançou uma segunda flecha em seu braço, prendendo-o junto ao ombro, num ângulo perfeito.

A loira gemeu outra vez, e um instinto assassino aflorou naturalmente em seus olhos, um misto de rubro-castanho, enquanto mais uma vez o líquido vermelho escorria pelo braço alvo.

“Na-chan, o que está fazendo...?!” – Irieko exasperou-se. – “Ela não irá morrer, pare de gastar suas flechas!”

“Não pretendo matá-la, Iri-chan...”

Puxando mais uma flecha, ele mirou diretamente na garganta dela.

“...Pretendo apenas atrasá-la.”

Os olhos da cor do mel fecharam-se, compreendendo subitamente. Não podia lamentar aquele momento; a morte estava sempre em todas as batalhas que empreenderam juntos. E eles sempre a superaram com um trabalho impecável de equipe.

Teria de ser a mesma coisa, ali. Trabalhar juntos.

Como sempre foi.

“Muito bem... Então, eu estou indo.”

Um par de asas verdes estendeu-se majestosamente das costas da jovem, com o som inconfundível de um pássaro alcançando vôo. Para Najato, era a visão mais bela de todas. Não pôde evitar um sorriso ao vê-la daquele jeito.

Para os civis que teimavam em tirar fotos e observar aquela luta que passara dos limites do CG, era uma visão que os abismava totalmente.

Como se aquelas asas fizessem a garota subitamente mais rápida, ela descreveu apenas uma linha reta e verde no ar antes de segurar Remliel pelo pescoço. A ‘Erasi’ percebeu seu movimento, via-o como se ela se movesse em câmera lenta, mas teve pouquíssimos nanosegundos para reagir.

Segundos em vão, já que agora tinha seu pescoço nas habilidosas mãos da namorada do caçador de youkais.

Nem mesmo as asas rubras puderam libertá-la. E Remliel e Iriel voaram em alta velocidade para o céu, o mais alto que conseguiram.

Remliel apertou os pulsos da outra, tencionando esmagá-los.

Irieko não pareceu importar-se com aquilo.

E, quando parecia que iriam desaparecer da Terra, alcançarem os confins do espaço, a trajetória do Houka no Tenshi subitamente mudou.

E, então, a anjo das asas vermelhas viu-se firmemente segurada, descendo numa velocidade estonteante, como um míssil, em direção do solo.

Um humano normal espatifar-se-ia com aquela pressão esmagadora.

Sobreviver seria pouco. Nem suas células iriam existir depois daquilo.

Mas ela era um anjo imortal. Uma criatura inorgânica. Aquilo iria apenas destruí-la um pouco, e ela poderia se reconcertar no momento seguinte.

“É inútil, Iriel... Não podemos morrer!” – ela resmungou, tentando livrar-se daquele aperto de ferro. A foice, na confusão, ficara lá embaixo.

Sequer podia esmagar um braço de Iriel; a mesma a mantinha com tanta força que era impossível se mexer.

“Cale-se.” – disse-lhe no ouvido. – “Já dissemos que não queremos matá-la.”

Remliel engoliu em seco. Aquilo era... Um combo.

Sentiu, então, a garganta ser atravessada por algo. A força do impacto fê-la inclinar o corpo para trás. Não sentiu mais o corpo da inimiga dos cabelos verdes contra si. A desgraçada livrara-se da dor antes disso.

Mas sentiu o chão. A dureza. O sangue afogando-a.

Um estouro, como uma bomba caindo ao chão, ergueu uma nuvem de poeira, apavorando ainda mais os cidadãos.

“...Conseguiu?” – Najato tirou mais uma flecha da aljava.

Irieko pousou graciosamente ao lado do caçador, limpando a poeira que grudou-se na roupa na hora da queda.

“Sim. Ela espatifou-se no chão.”

“Se fosse uma humana, aquela flecha teria partido seu crânio e sua espinha em dois. Mas isso é tão frustrante... Ela não poder morrer...” – ele passou a mão pelos cabelos.

“Continuaremos com o plano de atrasá-la o suficiente, então.”

Najato assentiu, desviando o olhar ao perceber uma energia elevando-se monstruosamente, vinda da cortina de poeira.

De fato, Remliel estava em frangalhos. O sangue a cobria e as roupas estavam acabadas. Frágil num corpo de criança, ele quase sentiu pena dela; parecia mesmo apenas uma infante normal.

Porém, lembrou-se da visão dela e daquela foice perigosa. Dos olhos assassinos.

E recobrou o sangue frio.

Mas Hajaya não teria precisado disso. Tão logo limpou um filete do líquido vermelho dos lábios, ela trincou os dentes, numa fúria explosiva.

COMO SE ATREVE?! EU VOU MATÁ-LO, NAJATO HAJAYA!!!

...Realmente, não teria precisado de muito mais.

 

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXXIII: A Divina Tragédia IV.

 

Abrindo os olhos numa lentidão preguiçosa, Maiko percebeu-se ainda nos braços de Himitsu. Era tão quente e tranqüilo que poderia ficar ali para sempre. Uma nova onda de torpor invadiu-a, seduzindo-a a se arrastar mais uma vez para o mundo dos bons sonhos. O corpo também implorava por um descanso; estava exausta.

Tanto acontecera num só dia. Vira destruição, sangue, reconciliação e a paz num mesmo conjunto de horas. Antes de aquilo acontecer, não acreditava que tanto podia mesmo se desenrolar em um só dia. Parecia até inacreditável.

Agora, ela nunca mais duvidaria de livros que narravam aventuras de cavaleiros que se apaixonavam, guerreavam, beiravam a morte e perdoavam a si próprios, tudo em menos de uma tarde.

Virou o rosto para ver o que estava acontecendo, que confusão de pequenas vozes era aquela que ouvia, mas ouviu o pescoço estalar. Estava mesmo exausta...

“Bom dia, Maiko-chan.” – ouviu a voz dele.

Ergueu os olhos, com um sorriso automático a brotar-lhe nos lábios. Himitsu estava ali, encarando-a com aqueles puríssimos olhos azuis. Ele também lhe sorria. Sem pensar, abraçou-o mais.

“Bom dia, Himitsu.” – assim que disse aquilo, abriu os orbes acastanhados. – “Ah, mas... Ainda está escuro.”

“Bom dia, Maiko-san.”

Mashiro Himeno e seu anjo estavam ao lado do loiro.

“O que vocês...?”

“Estamos na estação. É de madrugada ainda, por isso, pode voltar a dormir. Sei que, como humana, você precisa de descanso.”

Shiho riu. – “Mashiro-kun fala como se fosse um inorgânico!”

Agora sim é que seu sono havia passado!

“Himitsu... O que está tramando...?”

Há muito que já não sabia exatamente tudo o que se passava na cabeça do rapaz.

Só podia especular, mas os olhos preocupados dele, mesmo com toda aquela gentileza que disfarçava isso, não podiam negar nada a ela.

“Mashiro-san tem razão, Maiko-chan. Você precisa dormir um pouco mais.”

“Mas...”

“Ah, antes disso, quero que escolha uma coisa.”

Puxando do bolso da calça escolar o que parecia ser dois panfletos de viagem, Himitsu Isono mostrou-os à japonesa.

“...Nara? Kyoto?” – gota.

“Vamos fazer uma viagem de emergência. Escolha para onde. ♥”

Maiko encarou-o. Se os gêmeos Himeno estavam ali em plena madrugada, com aqueles olhares nervosos dardejando de um lado para o outro, era porque as coisas não estavam assim tão seguras.

Ela só pôde pensar no pior: e veio-lhe à mente Remliel.

...Sim, certamente eles deviam estar fugindo dela. Sehriel fez isso várias vezes. Por isso, mesmo no corpo de Himitsu, sabia do que estava falando. O perigo era mesmo real.

Mesmo assim, Maiko teve vontade de repelir aquele convite. Não queria simplesmente fugir, sem uma mala, sem absolutamente nada; mesmo que nada nem ninguém a mantivesse presa àquela cidade.

Mas e a escola? E minha higiene pessoal...?’ – ocupou a mente com questões mais pertinentes. E não achou nenhuma resposta.

Suspirou pesadamente.

Se Himitsu sabia o que estava fazendo, confiaria nele. Apesar de lhe doer pensar que iria simplesmente fugir daquele jeito...

Voltou-se, mais uma vez, para os panfletos. A tradicional Nara, com todos aqueles templos envoltos em florestas de cerejeiras róseas ou Kyoto, a cidade dos turistas e dos Outonos mais belos de todos?

(Se bem que as duas eram cidades vizinhas...).

Ela já havia ido a Kyoto, de qualquer forma. Mas talvez Himitsu nunca fora conhecê-la. E era tão bonito! Ou talvez ele já tinha ido sim, em uma de suas milhares de vidas servindo humanos.

(Não, não tinha tempo de ficar pensando até amanhã).

Se não havia escolhas...

“Vamos para Nara. ♥” – sorriu-lhe.

“Muito bem. Será Nara!~” – ele devolveu o sorriso.

“...Mas os gêmeos vão junto?”

“Não vamos.” – Mashiro meneou a cabeça. – “Aqui é o ponto final. Vamos nos separar a partir daqui e, muito provavelmente, não voltaremos a nos encontrar.”

Shiho deu um sorrisinho, concordando.

Ela tencionou descer dos braços do loiro, mas o hanyou impediu-a.

“...Não fique se forçando sem motivos, Maiko-san.” – e segurou-lhe a mão por um breve momento. – “Apenas seja forte.”

O anjo das asas negras foi se retirando aos poucos, suspirando.

“É, fiquem aí se despedindo, então. Eu vou comprar as passagens para o primeiro trem que sair.”

“Se puder, pegue aquele que vai direto para lá, certo, Shiho-san?” – Himitsu falou-lhe, um pouco mais alto, quando o outro já estava mais afastado.

“Tá bom!” – respondeu de lá.

Mashiro sorriu outra vez. Desta vez, permitiu-se abrir um sorriso um pouco maior do que aqueles que costumava dar, tão discretos.

“Eu gostaria muito de acreditar que, ainda sim, vamos nos encontrar no Elyssion.” – confessou. – “Mas sei que isso não será possível. Por isso, este é um adeus.”

 

O grito alcançou-lhe a fronteira do medo. Todo o instinto de sobrevivência profundamente enraizado na alma humana do caçador eriçou-se diante daquela voz; o tempo inteiro avisou-o de que aquilo era suicídio. Um perigo sem precedentes e do qual, muito provavelmente, ele não escaparia vivo. Com muita sorte, perderia um membro ou talvez dois.

Mesmo sendo madrugada, a quantidade de boêmios naquela área era grande. E aquela estranha batalha já passara dos limites do aceitável. Os que não corriam estavam encobertos do pó da rua destruída. Sem dúvidas, a Polícia e alguma ambulância já foram acionadas; não teriam mais tempo para prolongar aquela guerra ali.

“Irieko, vamos subir!” – Najato avisou.

“Sim!” – assentiu.

Remliel, neste momento, avançou sobre os dois. A foice azulada descreveu um arco perfeito no céu, numa cor que misturava o ciano e o dourado. Parecia até mesmo uma lua minguante semitransparente.

Porém, Irieko já subira aos céus antes disso. E da cortina de poeira plúmbea, ergueu-se aos céus o anjo das asas verdes, derramando sobre os olhos que os fitavam, abismados, aquela mesma chuva de penas verdes que o caçador tão bem conhecia.

Em algum lugar de sua mente, pensou que aqueles que tiravam fotos com o celular iriam ter provas de que foi realmente um anjo o causador daquela baderna.

E, em outras situações, teria tomado precauções para que tais provas fossem devidamente destruídas.

Mas, naquele momento, ele não tinha condições de se preocupar com isso.

Remliel abandonou aquele cenário que cheirava a pó e a destruição poucos momentos depois que eles. Seguia-os ensandecida de ódio.

Os inimigos de Najato, até então, foram sempre youkais. Eram poderosos, de níveis avançados, mas apenas seres orgânicos que podiam muito bem morrer e pararem de se mover. Assim, ele podia descansar. Mas aquele anjo de asas vermelhas era um ser imortal e vingativo: ele jamais deixaria de persegui-los.

Seu plano não tinha nada de inovador: era apenas distrair Remliel o suficiente para que Sehriel e Maiko Isono escapassem.

O resto deixaria nas mãos experientes do próprio ‘Erasi Primordial’.

“O que faremos agora, Na-chan?” – ela lhe perguntou, tirando-o brevemente de seus pensamentos.

Najato meneou a cabeça. – “Não sei. Mas, por enquanto, vamos nos preocupar apenas em levar essa batalha sanguinária para longe dos civis.”

“Entendido.” – assentiu.

Ele virou-se, posicionando uma outra flecha para acertar Remliel. Mas viu-a erguer a foice (que, até onde se lembrava, era feita de Quintessência).

O brilho azul das pedras incrustadas na mesma fê-lo estremecer.

Como se fossem fantasmas que vinham assombrá-lo na ilusão da noite. Uma arma digna de um assassino que atravessava os milênios.

“Cuidado, Iri-chan! Ela vai atacar!”

A foice rasgou o ar como se fossem experientes garras de um felino, logo ao término da frase.

Com um ágil movimento, Irieko conseguiu escapar do pior, mas ouviu a roupa rasgar em algum lugar do processo. Se houvesse acertado alguma de suas pernas, teria sido um problema. A dor a teria desequilibrado o suficiente para que Remliel se aproveitasse de tal distração e a atacasse seriamente.

A anjo inorgânica ouvia as exclamações abafadas dos humanos lá embaixo, mais desavisados do que nunca, enquanto pensava que uma chuva de penas verdes não iria confundi-los por muito tempo.

Remliel não diminuiu o ritmo em nenhum momento. Ela estava possessa de uma fúria demoníaca, algo que não era daquele mundo.

Definitivamente, não ia parar enquanto não os cortasse ao meio.

Nem mesmo uma flecha tirada da aljava e revestida de ki de Najato surtira efeito. Ela só estremeceu, como se tivesse levado um choque, e desatou a rir. Como se fosse a catarse perfeita.

“Ora, vamos! Vão ficar fugindo o tempo inteiro e me atacando com essas táticas de bebês?” – perguntou, irônica.

“Não subestime a mim e a Irieko, anjo!” – Najato devolveu.

“Cale-se, humano. Dê-me um pouco de emoção, Iriel!” – rosnou Remliel.

Irieko trincou os dentes, numa entonação muda de raiva.

Ela queria emoção?

Se continuasse daquele jeito, tão irresponsável, iria ganhar muito mais do que um pouco de emoção. E Irieko iria providenciar isso pessoalmente.

...Mas não podia ser agora. Não enquanto sobrevoavam Tokyo.

“Iri-chan, olhe.” – Najato apontou o horizonte, na selva de pedra.

Tudo que ela via era a noite coloria pelas luzes da civilização, uma pontinha de luz que nem era suficiente para preencher de azul a área ao seu redor indicando o sol que teimava em querer despontar, enfim.

Mas não precisou de muito mais do que aquele pensamento para entender os detalhes. Entender, de fato, o que ele queria dizer com...

“A estação.” – meneou a cabeça, amaldiçoando-se por cometer um erro tão tolo.

“Dê meia volta. Não podemos ir para lá.” – Najato sussurrou.

“Remliel está...”

A mesma abriu um imenso sorriso ao vê-los parar.

“Ora. Não me diga que...” – e baixou o rosto, cobrindo-o com a mão e contendo a vontade de gargalhar. O corpo tremia do riso contido. – “Sehriel é tão previsível, como sempre... Pretende abandonar a cidade num trem, é isso...?”

O caçador encarou Irieko, que fez o mesmo. E assentiu para ela. Os olhos abriram-se, numa surpresa muda.

Mas ela precisou compreender que era necessário.

Irieko tirou o tapa-olho que sempre estava usando. O rosto ficou livre de qualquer traço gótico. Ambos os olhos âmbares cintilaram num descontentamento evidente.

Assim, ela abriu o máximo que pôde suas asas e deu meia volta, como o ordenado. A loira segurou a ‘Construxi’ pelo braço quando se aproximaram perigosamente, apertando até ouvir o som de algo quebrar.

Porém, subitamente foi assaltada por uma dor esmagadora. Parecia gemer como o gorjeio de um passarinho quando é ferido. A situação era a mesma. Já não era apenas o rubro do sangue que maculava suas asas. O vermelho da dor veio-lhe aos olhos, turvando a visão normal das coisas.

Najato Hajaya pulou sobre ela, a flecha cravada firmemente na asa direita. Remliel perdeu o equilíbrio no mesmo segundo, a dor rasgando-a por dentro; e caiu, como uma ave tombada por algum tiro certeiro.

Quando Irieko tentou pegá-lo, entretanto, ela o agarrou pelo rosto, cravando as unhas em suas bochechas até arrancar sangue.

“...Já que veio para meus braços, pequenino, nada mais justo que cairmos juntos.”

Ele debateu-se, mas sem sucesso. Cada vez mais seu ar perdia-se em algum lugar daquela queda vertiginosa; prendeu a respiração, tentando manter o máximo de oxigênio que conseguia devidamente nos pulmões.

O aperto de ferro de Remliel não relaxou em nenhum momento. E cada vez mais ele via o chão. Cada vez mais a iminência da dor. A morte.

Irieko tentava alcançá-los, a mão estendida. Mas já era tarde.

Najato ergueu a mão que conseguiu mover um pouco por entre os braços pálidos da anjo das asas rubras. Preparou-se, fechou os olhos e esperou.

O baque de um corpo caindo no chão em alta velocidade, do céu, explodiu nas ruas de Tokyo, chamando a atenção de qualquer um que morasse por ali ou estivesse passando ao acaso naquele instante.

Uma nova nuvem de poeira venenosa ergueu-se, dissipando-se, porém, muito mais rápido do que a outra que já haviam produzido anteriormente.

“NA-CHAN...!”

Penetrando na densa barreira feita de poeira, Irieko procurou nervosamente qualquer traço daqueles dois. Ouviu um som metálico e arranhado, e deduziu que fosse a foice caindo instantes depois de sua mestra.

Quando finalmente aquela espessa nuvem começava a dispersar-se no ar, a figura de Remliel apresentou-se.

Nenhum arranhão. Apenas o mesmo sangue, a asa ferida que se recuperaria em segundos. Absolutamente nenhum dano adicional.

“...Ao que parece, o garoto virou patê.” – limpou a poeira da roupa.

Iriel engoliu em seco. Apostara todas as fichas naquela probabilidade de...

Não. Najato estava vivo. E provou isso quando seu corpo jogou-se sobre o de Remliel e rendeu-a no chão.

“IRIEKO, AGORA!” – chamou-a, num tom que beirava a seriedade ensandecida.

Sem perder um segundo sequer, as asas estenderam-se, deixando que as penas tão afiadas quanto adagas cravassem-se nos pulsos da anjo inorgânica. Remliel viu-se numa teia de dor aguda, como se estivesse numa cruz no próprio chão.

“Impossível...!” – ela sussurrou. – “Como um humano sobreviveu à tamanho impacto de uma queda daquela magnitude?! É simplesmente impossível!

Porém, logo depois de dito isso, percebeu o tapa-olho no rosto do caçador.

“Não...” – e rosnou, numa fúria crescente. – “Não...”

Irieko suspirou, aliviada.

“Este tapa-olho está com a Iri-chan desde que ela nasceu. Está completamente encharcado com as bênçãos dela. Com um pouco da força de um anjo inorgânico.” – Najato explicou, mantendo um sorriso cansado no rosto.

Ao contrário de Remliel, ele tinha parte da roupa em frangalhos, o corpo bastante ferido e arfava com dificuldade. O princípio da exaustão era visível.

“Então, isso não era meramente um enfeite...” – a loira riu de tamanha ironia, presa ao chão pelas penas verdes.

“Nem pensar. Era minha chance de sobrevivência para casos extremos, como esse. A benção dela podia me proteger de coisas assim, que em casos normais teriam me matado sem dúvidas.”

“...Mas você usou todo o poder que ela guardou todos estes anos agora, não é?”

Najato caiu de joelhos no chão, rindo. Gemeu brevemente de dor.

“De fato, quase todo ele foi usado... Sobrou muito pouco. E, mesmo assim, tive uma ou duas costelas quebradas, acho.”

“Suas flechas e seu arco se partiram.”

“Tenho outras habilidades além dessas.”

Desta vez, quem riu foi Remliel. Encarou o caçador, que levantava-se com dificuldades e ia ao encontro de Irieko, e meneou a cabeça.

“Eu os subestimei...” – deliciada com aquele fato.

“Se esse é o seu nível, se você já caiu aqui mesmo, Zansatsu no Tenshi, dificilmente você vai poder derrotar Sehriel, se ele decidir usar toda sua força.” – Najato alertou-a.

“Não. Desta vez, eu vou usar todo meu poder contra vocês dois.”

E Irieko sorriu.

“Eu disse, anjo: nunca subestime o trabalho de equipe de Najato Hajaya e Irieko.” – ele também o fez.

“Não cometo o mesmo erro duas vezes, humano.” – e o olhar sádico retornou.


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