Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 18
A Divina Tragédia I / A Divina Tragédia II




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Agora você compreende...

Era tão inacreditável que sequer conseguia verter lágrimas. Simplesmente inacreditável. Ela era sempre tão ativa; tão viva...

Inacreditável pensar que não veria mais nenhuma manhã. Que não poderia mais reclamar dos chutes que lhe aplicava enquanto dormia.

Que simplesmente acabara ali mesmo.

Nunca achou que o som do sangue fosse tão irritante. Antigamente, adorava-o. Mas agora, o sangue dela... Era uma afronta.

Era inacreditável.

...A minha dor?

Sehriel encarou-a no fundo dos olhos. Aqueles orbes que derramavam a vingança assassina. Não via mais nada ali dentro.

Só um vórtice escuro e faminto. Só o seu pecado.

É, ele compreendia. Tão inacreditavelmente que quis gritar.

Repentinamente, então, ele perdeu toda e qualquer vontade de avançar sobre aquele corpo odioso. Apenas encarou-a. Apenas...

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXX: A Divina Tragédia I.

 

Shiho revirou os olhos.

“Mashiro-kun, sinceramente! Com tantos momentos mais propícios, você foi escolher logo esse pra ser um pirralho birrento de quatorze anos?”

Mais à frente dos outros dois, o hanyou sequer moveu os ombros.

“Mashiro-kun! Quer fazer o favor de me responder?!”

Maiko, que evitava calculadamente uma aproximação maior do moreno que ainda parecia espumar de raiva, tocou no ombro do outro.

“Deixe-o, Shiho...”

“Como assim, deixe-o?” – o gêmeo encarou-a. – “Tem noção que, depois, quem vai ter que aturar essa impaciência sou eu?”

“Vai ser pior se pressionar agora...”

Novo suspiro. – “Não tenho mais idade pra presenciar briga de criança!...”

A japonesa sorriu. – “Por um momento, às vezes eu esqueço que você é mais velho que andar pra frente.”

“Não só eu, mas... Na verdade, sou um anjo bem jovem, comparado aos outros...”

“Ah, é?...”

“É. Anjos inferiores, até sete pares de asas, não passam de excremento divino. Sequer somos considerados nas hierarquias. Sabe, tipo, marginalizados? Então...”

Maiko ergueu a sobrancelha.

(Devia ser tão triste estar acima de três pares. Ao menos, os inferiores podiam brincar na terra. Os outros ficavam confinados naquele espaço tedioso).

“Irieko falou algo sobre isso. Disse que só existem anjos de no máximo três pares de asas por aqui, pois acima disso já não é mais possível ouvir a voz dos seres terrenos.”

Shiho assentiu, distraído. – “Ela não mentiu.”

“Não entendo como pode. Vocês são tão fortes!”

“Bem, somos mais fortes que qualquer humano, é verdade. Mas experimente nos comparar com um anjo de oito pares de asas, por exemplo.” – ainda mais pensativo. – “Acho que é como comparar a força de um tigre e a de um rato.”

A jovem também se distraiu um pouco, tentando imaginar a cena. Já era difícil por si só imaginar alguém com oito pares nas costas (como tudo aquilo cabia?).

Por sorte, despertou dos pensamentos antes de tropeçar vergonhosamente no meio da calçada. Suspirou pesadamente. Ainda ouvia os ruidosos comentários de desavisados que comentavam sobre a chacina no bairro onde ela trabalhava. A maldita Remliel não havia poupado público; até mesmo policiais tinham sido mortos.

Os outdoors noticiavam levantamentos da situação o tempo todo, o número de mortos e feridos apenas aumentando a cada anúncio.

Aliás, eles próprios estavam numa situação chata, já que a roupa suja e alguns outros detalhes evidenciavam que eles estiveram lá. Mas como ninguém parou um par de gêmeos e uma estudante, continuaram normalmente.

“...Então, todas as coisas que a Bíblia diz, por exemplo, foram feitas por anjos inferiores a quatro pares?”

Mais uma vez, Shiho assentiu. – “Foram sim. Ou grande parte delas, já que... Os Caídos tinham um nível absurdo. Gabriel também.”

(Maiko pensou que começar a estudar mais a Bíblia, se sobrevivesse algumas semanas a mais. Ser Budista não ajudava muito a lembrar destas histórias; Irieko contara o básico delas, mas só. Aliás, só sabia da existência de Nephelim graças a ela também).

“Mas é claro que tem muita licença poética nisso tudo.”

“É mentira...?”

“Não exatamente mentira. Apenas muito exagero.” – ele passou a mão pelos cabelos negros. – “Por exemplo, dizer que Deus quem ordenou que Sodoma e Gomorra queimassem. Ou mesmo que Ele próprio queimou-as... Deus não coloca um dedo na sujeira dos seres terrenos.”

(Fazia sentido. Para quê anjos, senão?).

“E não foi Ele?” – para Maiko, aquele era um assunto bastante intrigante. Já ouvira falar bastante daquele episódio.

Aliás, parecia que Himitsu tinha algo a ver com ele (de acordo com a anjo das asas verdes, que não se alongou nessa explicação).

“Que nada! Aquilo foi puro trabalho dos ‘Erasi Primordiais’.”

“Sério mesmo?! Só eles?

Ela lembrava-se de um quadro que vira uma vez, que ilustrava as duas cidades ardendo num verdadeiro mar de fogo. Parecia até algo meio apocalíptico.

“Aliás, foram apenas três.”

“Mentira! Quais os nomes?!” – na verdade, pensou muito pouco quando perguntou aquilo. Só depois que percebeu que podia estar sendo metida demais. – “A-ah, desculpe... Se você não quiser falar, eu entendo...”

“Não, por mim tudo bem, mas...” – Shiho encarou-a ainda mais firmemente. – “Tem certeza de que quer ouvir?”

Engoliu em seco. – “Não pode ser tão ruim, né?”

(E, quem sabe, descobriria um pouco mais sobre aquilo que Irieko se recusou a falar quando ela insistiu com a mesma).

“Foram, basicamente, três ‘Erasi Primordiais’: Hamael, Sehriel e Ecanus [1].”

E Shiho emendou, depois de um risinho indecifrável. – “Ironicamente, dois destes anjos atualmente renegaram seus papéis de assassinos implacáveis para assumirem fachadas de dóceis ‘Construxis’.”

Ok, nunca ouvira falar dos outros dois anjos (assim que conseguisse, iria pesquisar a respeito imediatamente).

Maiko engoliu em seco, pensando em como sabia pouco sobre Sehriel.

Estava tão preocupada com Himitsu que...

“Do jeito que você fala, Shiho, até parece que isso é uma coisa muito ruim.” – ela comentou, mais séria agora.

“É porque é algo ruim.”

“...Como poderia?”

“Maiko-chan, nunca ouviu falar em algo chamado Harmonia Natural das Coisas?”

Gota. – “Posso ser uma pirralha comparada a você, mas não sou tão burra quanto uma. Claro que sei o que é isso...”

“No momento que Hamael e Sehriel trocaram de lado, por assim dizer, eles quebraram essa Harmonia. Acontece que...”

“Que...?”

“...A essência deles não acompanhou essa mudança.”

Silêncio. – “Quer dizer que...”

“No fundo, eles continuam tão ‘Erasi Primordiais’ quanto no dia em que foram concebidos pelo Universo. O que eles estão fazendo é refrear seus instintos mais básicos. Mas, você sabe... Quanto mais ar se põe num balão, mais tenso o mesmo fica...”

...Até que ele, uma hora, explode.

Claro. Maiko Isono compreendera totalmente a analogia.

A frustração de ter milhares de ‘Deuses’ mortos, a frustração por ser perseguido eternamente por um anjo sedento de vingança... Quantas outras dores ele tinha, que iam se acumulando silenciosamente?

...E mesmo assim, Sehriel ainda conseguia fingir ser outra pessoa.

Uma pessoa que ajudava humanos egoístas que, provavelmente, pouco se importaram com o verdadeiro.

Por que, então, ele não ficava bravo e se rebelava?

Não fazia sentido ser assim tão bonzinho quando sequer havia motivos para tal. Suportar tanta pressão, mesmo que seu balão sequer conseguisse mais.

Não iria mentir: ela amava Himitsu Isono.

Mas, repentinamente, alguma coisa em si aqueceu-se ao pensar em Sehriel. No fundo, ele também era apenas...

Uma pobre criatura.

E ela sentiu-se podre por estar rebaixando-o assim, sentindo pena dele.

Inevitável, sabia, mas ainda sim podre.

“Ora, vejam só...” – Mashiro, que havia permanecido quieto todo aquele tempo (possivelmente ouvindo-os), finalmente falou algo.

Ele apontava para uma tela imensa em um dos prédios comerciais.

Mais notícias sobre a tragédia de Tokyo.

“...Sehriel e Remliel já não estão mais lá.” – comentou, distraído. – “Provavelmente, então, Sehriel já conseguiu despistar Remliel. Precisamos nos apressar.”

“Que? Apressar...?” – mais uma gota.

(De fato, eles saíram com tanta pressa do depósito, que ela nem sequer lembrara de perguntar onde diabos estavam indo!).

“Vamos nos esconder num lugar especial, Maiko-chan. ♥”

“...Shiho, definitivamente esse seu sorriso me deixa só mais nervosa.”

“Não ligue para ele, Maiko-san. Pode caminhar ao meu lado, se quiser. Prometo que serei mais comportado.”

Ela ergueu a sobrancelha.

“...Cê não tava bravo comigo, Mashiro?”

“Bravo,?” – realmente surpreso. – “Ah, Maiko-san! Há muito já nem estou mais pensando naquilo! Aliás, peço perdão pela cena. Vou tratar de seu rosto, prometo.”

“Ah, mas...”

Alguém poderia, por obséquio, parar o mundo para que ela descesse?

Shiho, ao menos, também parecia confuso. Afinal, Mashiro Himeno passara a viagem inteira quieto, andando à frente deles e absorto em seus próprios pensamentos, até com direito a uma aura realmente maligna rondando-o.

“...Estava apenas distraído demais. Sequer os ouvi, para falar a verdade.” – e corou de leve, realmente incomodado pelo fato.

(Gota imensa nos outros dois componentes da cena).

“...Os genes do pai dele?” – Maiko.

“...Não. Esses foram os irritantes genes da mãe.” – Shiho.

Meneando a cabeça, ela deteve-se em outro assunto que quase ia esquecer (mais uma vez).

“Afinal, para onde estamos indo...?” – só o que queria era ver Himitsu de novo. Esperava que ele encontrasse logo os gêmeos.

Mais silêncio.

Alguns passos hesitantes a mais, e ela não precisou repetir a pergunta. Mashiro adiantou-se, enfim.

“Na verdade, já chegamos.”

Apontando para a construção à sua frente, a japonesa ficou boquiaberta.

Esperava um covil do mal, com trovões e tudo o mais, mas só o que viu foi um hotel qualquer. Bem normal, até.

“...Vocês estão aqui?” – impressionada.

Enquanto iam entrando e pegando a chave do quarto (aparentemente, o recepcionista já os conhecia até demais, chamando-os de Himeno-kun até), ela preferia observar a arquitetura clássica ao redor. Apresentou-se como uma amiga quando questionada do porquê estava ali.

Achou que a burocracia ia ser mais pesada, mas graças à Shiho, que afinal era um anjo (Himitsu fez o mesmo com Takuchi Isono, por exemplo), a mesma resumiu-se a apenas o básico.

“Minha nossa... Vocês moram mesmo aqui...?” – parecia tão mais bonito aquilo tudo do que por fora.

“Morávamos. Transferi minha mãe para outro hotel, mais seguro e também mais afastado daqui.” – Mashiro disse.

(Ah, menos mal... Estava mesmo bastante nervosa com o fato de ter de encontrar a mãe dos gêmeos. Imaginava-a, na verdade, como uma monstrenga tirana; como os filhos).

“Vamos usar este apenas como esconderijo temporário.” – Shiho sorriu.

“...Cêis têm dinheiro pra isso?”

“Dinheiro não é exatamente um problema.” – e o anjo sorriu ainda mais.

(É... Eram anjos, afinal...).

Pararam diante de uma porta qualquer. Maiko leu o número 403 ali. Já pensava, na verdade, num bom banho. Estava mesmo precisando de um!

(Remliel que fosse para o Inferno, não ia ficar suja por causa dela).

“Hum... Que cheiro bom...” – Shiho comentou.

“Cheiro de soba.” – há quantos anos não comia um...?

“Me deu até fome.”

Mashiro revirou os olhos. – “Shiho-kun, Maiko-san, controlem seus estômagos, por favor. Estamos no meio de uma guerra, mantenham o foco.”

“Não dá pra manter o foco com fome...” – ela concordou com o anjo.

“Ainda mais com esse cheiro de soba me torturando...”

“Mashiro, abre logo essa porta.” – ela reclamou. Mais um pouco, e iria mesmo arrombar a porta do maldito que estava comendo isso e roubar tudo.

O hanyou fez o que lhe ordenavam, e surpreendeu-se ao perceber que o cheiro, na verdade, vinha dali.

“Quando é que você...?” – ele questionou, surpreso.

Com aquela luz tênue, Maiko conseguia ver muito pouco. Alguém já estava ali antes deles chegarem.

“Não faz muito.” – a voz explicou. – “Quando vi que vocês já tinham ido, confundir os sentidos de Remliel foi bastante fácil. Consegui escapar antes que a mídia ou mais reforços militares chegassem.”

O moreno ligou a luz, deixando o quarto pequeno ser iluminado outra vez, não só pelas luzes da cidade.

Himitsu estava ali, sentado na única cadeira por ali.

“Vocês demoraram.” – ele sorriu. – “Se não se importarem, dei o endereço de vocês para pedir soba pelo telefone. Ainda está quente, querem?”

“...É claro que queremos (E COMO!). Além disso, demoramos tanto assim porque, ao contrário de você, viemos a pé.” – Shiho resmungou.

“Ah, é mesmo. Esque... A-AH!~”

“HIMITSU~! É VOCÊ~~! ♥”

Antes que ele pudesse terminar a frase, Maiko já havia pulado sobre ele, derrubando-o com o móvel e tudo.

“...Crianças.” – Mashiro suspirou ainda mais pesadamente.

“Olha quem fala.” – Shiho riu.

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXXI: A Divina Tragédia II.

 

“Deixe-me perguntar: Shiho-kun, o que você está sentindo agora...?”

Shiho (que roubara o que sobrou do prato de Maiko já que a mesma não parecia mais tão interessada em comer) sugou com um barulho um pouco mais pronunciado mais um pouco do caldo da sopa.

“Bem, Mashiro-kun... Na verdade, estou com uma sensação muito desagradável de querer arrancar meus olhos.”

Ele assentiu. – “Então, somos dois.”

“...Ei, Himitsu?” – o gêmeo chamou-o. – “Eu estou aqui, comendo o soba da Maiko-chan. Aliás, meu dileto irmão bateu nela mais cedo. Não vai fazer nada a respeito? Nos dar um chute, gritar impropérios, sei lá?”

Absolutamente nenhuma reação por parte dele.

“Desisto...” – e voltou a comer.

“Que cena deprimente...” – Mashiro concordou, ocupando-se em encarar a TV.

A cena (que o hanyou classificou como ‘seria bem pior se não estivéssemos aqui, Shiho-kun...’, e o silêncio que se seguiu explicou tudo) já estava mais comportada agora que um dos envolvidos estava dormindo. Mas, infelizmente, não menos idiota.

Maiko estava dormindo, a cabeça apoiada no ombro do loiro. Como os gêmeos ocuparam-se da cama enquanto comiam, depois que todos devidamente pareciam um pouco mais limpos depois de um banho eficaz, ela sentou-se no colo dele e acabou por ficar ali mesmo. Mas a garota não parecia nem um pouco incomodada; aliás, parecia tão à vontade que até mesmo perdeu a fome que alegava ter.

Só de lembrar daqueles agradinhos de recém-casados ou das frases altamente melosas, Mashiro parecia querer repentinamente se matar mais cedo.

Pelo menos, agora estava suportável, já que ela dormia a sono solto. Himitsu apenas acariciava seus cabelos. Deprimente, sim, mas não passava dali. Se bem que, se ele abrisse a boca para sussurrar qualquer outra frase que tivesse as palavras ‘amor’, ‘vida’ ou derivados, ele ia cometer um homicídio.

“...E Hotaru-san?” – Shiho perguntou, de repente.

“Ah, ela está bem.” – o gêmeo respondeu. – “Certifiquei-me que a barreira que consegui colocar lá está fazendo o devido efeito.”

“Se bem que, mesmo sendo filho do rei, suas habilidades em criar barreiras não são tão louváveis, né?”

“Beiram o ridículo. Mas protegerão minha mãe por um bom tempo.”

“...Quem é que estava dando um sermão na Isono por não ter um pingo de amor-próprio e tal?” – Shiho ergueu, ironicamente, a sobrancelha.

“Encaremos os fatos: ela tem muito mais chances de sobreviver do que eu.”

 

O fluxo de pessoas nas ruas geladas da madrugada estava muito mais intenso agora. Geralmente, não era daquele jeito. Os carros também haviam aumentado o tráfego; como se toda a cidade pressentisse a tragédia.

A barreira estava ficando cada vez mais fragilizada. Agora, com aquela confusão que dois anjos inorgânicos fizeram, com direito a desmembramentos e tudo o mais (aquele tipo de imagem vazando pela Internet alimentou assuntos sensacionalistas em certos fóruns por horas, de acordo com Irieko, que se mantinha atualizada), apenas pioraram o que já estava naturalmente ruim.

Najato passou a mão pelos cabelos, ignorando a dor de cabeça que começava a latejar no fundo das têmporas.

Graças àquele fluxo anormal de pessoas, os youkais tinham muito mais vítimas de quem sugar energia vital para a barreira e para fortalecerem a si próprios. Era irritante ter que enfrentar criaturinhas que deviam ser fracas e estavam ficando cada vez mais problemáticas graças a isso!

Os Guardiões também não moveram um dedo diante daquela situação... Entendia que estavam ocupados com outras coisas, mas deviam, ao menos, terem se preocupado com a quantidade anormal de monstros.

(A tal Micaela Angeli não era perita em rastrear youkis? Só com a ajuda do corpo, Najato já detectara quantidades absurdas!).

“...E então, Iri-chan?”

“Nada.” – sacudiu a cabeça. – “Por aqui, não há nenhum youkai.”

“...Estranho, tenho a impressão de sentir algo anormal.”

A jovem de cabelos verdes estava anormalmente silenciosa. Parecia estar sentindo algo que o caçador não podia. Podia muito se assemelhar a uma gazela selvagem escutando os passos de alguma leoa faminta.

De fato, segundos depois, ela segurou-o pelo ombro.

“Na-chan.”

Ele suspirou, resignado. – “Não me diga que essa energia estranha é o que eu estou pensando que é...”

Irieko não respondeu. Remliel o fez para ela, aparecendo diante deles.

Em meio às pessoas que passavam, Najato prendeu a respiração. A garotinha impúbere dos cabelos loiros e de pele tão clara quanto um albino. Aquele olhar homicida era inconfundível.

“Remliel...” – e foi como ver o próprio Diabo.

“Ora, se não é Iriel e seu humano.” – sorriu, com aparente prazer.

O moreno percebeu que as pessoas, invariavelmente, desviavam os olhos para observar a cena: uma moça vestida anormalmente, de cabelos verdes e tapa-olho, um garoto com um arco-e-flecha e uma terceira menina, tão anormalmente vestida quanto os outros dois, e com uma imensa foice azulada.

Não tinha, de fato, como não chamar a atenção. E aquilo era ruim; se ela pretendesse atacá-los em plena rua, vítimas seriam inevitáveis...

“O que você quer?”

“Que saia da minha frente. Tenho um trabalho a fazer.” – respondeu.

Irieko ergueu a sobrancelha.

“...Não é relacionado à Sehriel, é?”

“O que eu e Sehriel fazemos ou deixamos de fazer não lhe diz respeito, Houka no Tenshi. Saia da frente.”

Nada bom’, pensava Najato. E, mesmo assim, mesmo sabendo que tinha poucas chances, ainda mais fragilizado pela doença, avançou.

“Dependendo do que quer, receio que terá de passar por mim antes.”

A loira revirou os olhos.

“Não tenho intenção de considerá-lo um inimigo, humano. Sou um ser justo, apesar de não parecer. Meu ódio é apenas dirigido a Sehriel. Outros humanos que não os ‘Deuses’ dele não precisam sofrer minha ira.”

Irieko colocou-se protetoramente em frente ao seu ‘Deus’.

“...Acontece que Na-chan é um caçador de youkais.”

“E se você pretende ir atrás de Sehriel e iniciar uma nova briga da mesma dimensão daquela anterior, até que ele perca o controle sobre si mesmo, receio que vou ter de impedi-la, como protetor dos homens.”

Acariciando o cabo da foice, Remliel sorriu ainda mais. – “Ah. Um idealista, é?”

“E como o ‘Construxi’ de Najato Hajaya, eu, Iriel, serei obrigada a igualmente declarar guerra contra você, Remliel, se pretender dar mais um passo além daqui.”

“...Ou seja: vocês dois vão se voltar contra mim.”

O moreno meneou a cabeça.

“Mas não aqui. Vamos evitar vítimas humanas.” – e virando-se para Irieko, sussurrou-lhe: – “Iri-chan, ligue para o Hi-chan. Avise-o da situação. E não deixe que ele venha para cá. Impeça ao máximo que ele cave a própria cova. Vou distrair Remliel enquanto você o faz.”

“...Certo.” – e ela já estava discando quando ele terminou a frase.

 

O anjo deitou-se, ignorando a sentença.

“Bom, tudo bem que você fez um acordo comigo... Mas só por causa dele você não precisa agir como naquele ‘Abandone toda a esperança aquele que aqui entrar’... Ei, isso faz de mim um Virgílio, né? Olha só! Estou guiando meu próprio Dante em direção ao Inferno! Aliás, qual era o nome dessa obra mesmo?”

“A Divina Comédia.”

Himitsu sorrira.

“...Obrigado, Himitsu-san. Que bom ter alguém inteligente por aqui.” – e encarou o irmão gêmeo de novo.

Resmungando algum xingamento em voz baixa, Shiho resolveu mudar para um tópico um pouco menos incômodo para ele.

“Maiko-chan ainda está dormindo, né?”

“...Como um anjo.” – os olhos azuis enterneceram, tocando o rosto dela outra vez.

Mashiro suspirou.

“Ei, isso foi uma ironia?” – Shiho, por outro lado, já estava conseguindo lidar, aparentemente, com a náusea pelas ceninhas ridículas.

O loiro, que não percebeu suas próprias palavras até então, riu. – “Ah, não! Não foi uma ironia... Desculpe.”

“Que nada. Foi engraçado!”

O hanyou encarou o teto. – “Também peço desculpas... Acho que me exaltei um pouco mais do que devia quando bati nela.”

Himitsu descansou o rosto no topo de sua cabeça.

“De fato, o senhor exagerou.” – assentiu. – “...Mas, não sei se foi graças a isso, Maiko-chan parecia diferente hoje.”

“Diferente, como?”

“Como posso explicar...?” – pensativo, ele apenas voltou a falar quando achou as palavras mais ou menos certas. – “Ela estava mais madura. Arriscaria até mais feliz consigo própria. Eu nunca consegui isso por mim mesmo; fiquei muito contente.”

“...Mesmo assim, desculpe por bater na sua ‘Deusa’.” – realmente envergonhado.

“Não vou bater no senhor por isso, Mashiro-san.” – sorriu, tranqüilizando-o.

“Se bem que o Mashiro-kun tá achando que merece um soco ou dois, né?” – Shiho riu da cara do irmão.

“Minha mãe sempre me ensinou que eu devia ser gentil com as mulheres...”

“Acredite, Mashiro-kun, você é gentil até com quem não deve.”

O loiro assentiu. – “Concordo com Shiho-san.”

“...Ela está melhor?”

Logo, o moreno arrependeu-se de ter perguntado aquilo. Porque, tão logo percebeu que ela estava em seu colo, Himitsu sorriu como um idiota e ficou brincando com os fios negros dos cabelos dela. Maiko não se movia, jogada em algum sonho agradável.

Ele invejou-a, de fato, por ela poder dormir tão tranqüilamente, mesmo em uma situação daquelas.

“Está sim. Maiko-chan é uma menina muito forte.”

Realmente, o outro anjo das asas negras estava se adaptando com muito mais facilidade àquelas cenas deprimentes:

“Wow... Olha só isso, o olhar babão de um namorado.” – cruzou os braços.

“...O mais deprimente nisso é que ele sequer sente vergonha.”

“Viu só, Mashiro-kun? Ainda bem que você vai morrer antes de passar por uma experiência ridícula dessas!”

“Nunca achei que fosse dizer isso, mas... Ainda bem mesmo.”

O loiro apenas sorriu. Parecia mais um adulto relevando as implicâncias de duas crianças (se bem que era mesmo algo mais ou menos assim).

“Que horas são?...”

“...Deixe-me ver.” – o hanyou mudou de canal. – “24 de Abril. Quatro e vinte e oito da manhã, precisamente.”

“Que madrugada tediosa!” – Suriel reclamou. – “E eu achando que conversas entre três homens esclarecidos eram mais divertidas!”

“Aliás, Mashiro-san, não vai dormir?” – Himitsu questionou.

Himeno sabia que criaturas como eles não precisavam de sono, comida ou mesmo oxigênio. Mas, mesmo assim, mesmo sendo uma criatura orgânica com necessidades orgânicas absolutamente compreensíveis, não pôde deixar de sentir-se uma certa aberração naquele momento.

“Acredita se eu disser que não estou com sono?” – deu de ombros.

“O senhor precisa cuidar mais de sua saúde.” – o loiro sussurrou. – “Acredito que devia dormir só um pouco, senão irá desabar de exaustão. Manter duas barreiras ao mesmo tempo é demais...”

Surpreso, Mashiro deixou a máscara habitual de seriedade desaparecer, e ficou muito mais parecido com Shiho naquele momento.

“...Esqueci de que vocês são sensíveis a isso.” – era como um pedido de desculpas.

“Na verdade, eu concordo com o Sehriel, Mashiro-kun.” – o anjo assentiu.

“Posso manter-me por muito mais tempo assim. Obrigado pela preocupação de ambos, mas estou nas devidas condições. Ah, a propósito...”

E apontou para Himitsu.

“...Seu celular não está vibrando?”

“Oh, é verdade.”

Pegando o mesmo do bolso, Isono atendeu-o, discretamente, enquanto os gêmeos, para dar-lhe o mínimo de privacidade, já que o quarto era pequeno, distraíram-se assistindo um humorístico qualquer que passava na TV naquele momento.

(Até alguns momentos atrás, Shiho estava divertindo-se vendo as avaliações e notícias sobre aquele mesmo acidente daquela tarde).

Quando Himitsu desligou-o, já estava se levantando da cadeira, com Maiko em seus braços. Ela apenas remexeu-se, mas não chegou a despertar; ele tinha movimentos graciosos e calculados o suficiente para impedir que tal coisa acontecesse. Mas o rosto traía aquela calma no corpo.

Himitsu Isono parecia... Nervoso.

Tanto Mashiro quanto Shiho não precisaram de mais do que alguns segundos para computarem a situação e compreendê-la.

“...Remliel?”

“Remliel ia nos atacar no nosso ponto cego.”

O hanyou suspirou. – “Eu disse que minhas habilidades com barreiras beiram o ridículo. Não consigo manter esta, já tendo a que protege minha mãe.”

“Não posso ficar aqui...”

Se ele tivesse alguma mala ou coisa para levar, possivelmente já estaria com a mesma na mão. Como estava sem nada, simplesmente colocou a mão na maçaneta e já estava-a girando, pronto a sair do hotel.

“Para onde vamos?” – questionou o anjo das asas negras.

“...Irieko-san nos disse para usarmos o tempo que eles nos darão para fugir. Talvez, até mesmo abandonar Tokyo.”

“Até quando vai durar esse esconde-esconde com Remliel?” – Mashiro pôs as mãos nos bolsos, seguindo-o pelo corredor.

“Não sei... Mas não posso deixar que ela nos alcance agora.” – Himitsu decidiu-se.

E, de repente, ele parou de correr.

“...Por que estamos nos preocupando em fazer isso?” – amaldiçoando-se pelos segundos perdidos, ele procurou uma janela. – “Vamos voar, ficará mais fácil.”

“Não podemos voar muito. Lembre-se de que aqui é Tokyo e a polícia está louca atrás de um bando de malucos alados, de acordo com as notícias.”

“Eu sei. Vamos apenas fugir brevemente.”

“Aliás...” – Shiho já estava pegando a mão do gêmeo, pronto a pegá-lo também no colo quando alçasse vôo. – “Você disse ‘ia nos atacar’. Quem a parou?”

“Najato-san.” – e a voz do rapaz falhou.

“...Ele está com Remliel agora?”

“Ele e Irieko-san.” – corrigiu.

Mashiro Himeno dignou-se a dar um sorrisinho, como se subitamente aquilo tivesse se transformado num show de humor. – “Aquele caçador está morto!”

 

Remliel, sem conseguir se conter, começou a rir.

Desta vez, mais pessoas encararam a cena anormal. Algumas arriscaram até parar, pensando que se tratava de alguma filmagem em plena madrugada.

“Evitar vítimas humanas, você diz...?” – ela perguntou, limpando as lágrimas.

Puxando a primeira flecha, Najato encarava-a firmemente.

Sentia os pulmões pesarem como pedras, mas forçou-se a continuar firme. Não podia deixar que ela avançasse; pelo bem daquela cidade. Se por acaso Sehriel se rendesse enfim aos seus verdadeiros instintos...

Não podia permitir sob nenhuma circunstância, como caçador e como humano, que tal tragédia se repetisse.

“Na-chan, Hi-chan disse já estar indo.” – Irieko avisou-o.

“Ótimo. Assim, atrasaremos ao menos um pouco o encontro deles. O suficiente para que ele se prepare ou tenha mais um plano.” – sorriu.

A loira sacudiu a cabeça, como se sentisse pena dos dois.

“Vamos esclarecer uma coisa: vocês não poderão me deter. Eu irei matar esse humano tão rápido que Sehriel sequer terá tempo de sair dessa cidade.”

“...É o que veremos.” – Irieko estreitou os olhos.

Remliel sorriu. Finalmente, alguma diversão! – “Ei, vocês disseram que não queriam nenhuma vítima humana, não é?”

“Vamos resolver isso em outro lugar.” – Najato concordou.

“Tenho uma idéia melhor.”

Engolindo em seco, o caçador preparou-se para o pior. E, de fato, ele veio: Remliel, sem nenhum aviso, abriu as vistosas asas vermelhas, assustando os pedestres que estavam ali naquele momento.

“Como dizem por aí, o Céu é o limite.”

 

[1] Ecanus (ou Elkanah) é um dos cinco anjos que, por ordens de Deus, transcreveu aos homens 94 dos 204 livros do apocalíptico Esdras (Esdras IV, 14:42).

 

 

Prévia: A Divina Tragédia III.

(...) A foice rasgou o ar como se fossem experientes garras de um felino. Com um ágil movimento, Irieko conseguiu escapar do pior. Ouvia as exclamações abafadas dos humanos lá embaixo, enquanto pensava que uma chuva de penas verdes não iria confundi-los por muito tempo.

Remliel não diminuiu o ritmo em nenhum momento. Ela estava possessa de uma fúria demoníaca, algo que não era daquele mundo.

Definitivamente, não ia parar enquanto não os cortasse ao meio.

Nem mesmo uma flecha revestida de ki de Najato surtira efeito. Ela só estremeceu, como se tivesse levado um choque, e desatou a rir.

“Ora, vamos! Dê-me um pouco de emoção, Iriel!” – rosnou.

...Ela queria emoção?

Se continuasse daquele jeito, tão irresponsável, iria ganhar muito mais do que um pouco de emoção. E Irieko iria providenciar isso pessoalmente.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo, FUCKING EPIC BATTLE Remliel x Najato&Irieko.
ENFIM, eu queria chegar nessa parte desde o início de Espe. 8D *feliz da vida*



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