Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 14
Tom XXV: Nêmesis


Notas iniciais do capítulo

Este é um tom único, ao contrário dos outros, por conta da demora da autora em atualizar. ^^"



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Voe, voe, passarinho...

Em meio ao caos de uma Tokyo devastada...

Com meu próprio sangue escorrendo de mim...

Sentindo os braços dele me envolvendo tão carinhosamente...

...Você sabe que não pode fugir.

Mais ou menos na tarde do dia 24 de abril...

...Eu morri.

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXV: Nêmesis.

 

Ano de 1604. Século XVII.

Exeter, Devon – Inglaterra.

Um cheiro forte de excrementos humanos e de ratos e de suor, misturados com um leve odor de mofo, enchia seu estômago de ânsias de vômito agudas. Se não fossem por seus olhos milhares de vezes melhor que os de um humano, certamente, ela não veria nada senão a mais densa escuridão.

Era cruel, e só estando naquele lugar ele enfim entendia o porquê de tantos enlouquecerem antes mesmo de serem levados à fogueira: era aquilo. Ouvir o som dos passos dos ratos, ouvir a água pingando incessantemente nos cantos da masmorra, ouvir até mesmo o metal de suas correntes, que tão firmemente prendiam os pulsos e tornozelos, chocando-se, o eco estridente que isso produzia...

Somados aos seus próprios pecados, pairando em suas mentes como fantasmas, somada a consciência de sua pena, de sua punição... Aqueles sons, sem nenhuma imagem, enlouqueceriam qualquer um.

Mas ele (ou ela?) era diferente. Não iria perder a sanidade com torturas ou mesmo com aquele amontoado de coisas desagradáveis aos olhos e ao nariz. E, lá ao longe, ele ouvia o doloroso gemido de alguma mulher que compartilhava a mesma sina.

“...Fico impressionado, Sehriel.” – uma voz soou, melodiosa, porém gélida como o clima lá fora. – “Como um anjo pode ser condenado por bruxaria?”

Forçando um pouco os olhos, o anjo avistou uma silhueta encostada na parede úmida da prisão. Com majestosas asas vermelhas, aquele outro anjo tinha uma face de traços delicados e tez branca.

Era um homem. Os cabelos, loiros e até os ombros, pareciam sedosos ao toque, e os olhos eram uma mistura do verde da primavera e o azul do céu límpido. De fato, não era possível dizer a cor exata.

“A caça às bruxas voltou com toda a força, Remliel...” – sussurrou.

“Você mostrou suas asas para eles, Sehriel?”

“Meu ‘deus’... Ele me denunciou, tão logo pôde.” – um novo suspiro escapou de seus lábios ressecados, mas aquilo não respondia, de fato, sua pergunta. – “Estou esperando a minha execução.”

“Na fogueira?!” – ele percebeu isso, mas assim que ouviu aquilo, riu por um bom tempo. – “Que fim indigno para um corpo de um Anjo! Mesmo se esse anjo for o detestável Sehriel, Le Ange de Justice. [1]” – e, tão logo parou de rir, cuspiu aquela acusação.

“...Não entendo de onde vem esse ódio tão intenso, Remliel.”

O loiro das asas vermelhas descruzou os braços, e começou a encurtar a distância entre aquela prisioneira e ele próprio.

Olhando de suas alturas para aquela triste figura, ele permitiu-se dar um sorriso satisfeito. Sentia até mesmo pena olhando para ela: a face estava desfigurada e suja. A cor de sua pele devia ser branca, mas coberta por aquela camada tão grotesca de sujeira, nem se podia diferenciar pele daquela nojeira. O fedor era insuportável, tanto da prisioneira quanto da sua própria ‘cela’.

Amarrada pelos pulsos e tornozelos, aquele anjo tão glorioso estava ali, entregue. O cheiro de sangue exalava de cada poro de seu corpo, e vendo melhor, o braço esquerdo de Sehriel estava quebrado. O osso, isso podia ver também, estava totalmente esmigalhado. Mover-se, nem que fosse só um pouco, devia doer horrores.

E Remliel adorou saber disso. Seu sorriso até mesmo alargou-se.

Com verdadeiro prazer, seu pé, certeiro, quase que cravou-se no braço quebrado, empurrando-o até encostar na parede úmida e fria de pedra. O anjo das asas róseas conteve um doloroso grito, e seus olhos castanhos faiscaram.

“Ano de nosso Senhor de 1098. Israel. Um homem chamado Arda. Uma humana inorgânica chamada Morphia. Um anjo de asas róseas.” – cada palavra foi dita com um ódio quase palpável. – “Isso te lembra alguma coisa?”

Sehriel engoliu em seco.

“Perdão.” – mas não disse mais do que isso.

“Acha que vou perdoá-lo com um simples ‘perdão’...? Você destruiu a minha felicidade, Sehriel. Você merece ser pisoteado pelo meu ódio.”

“Eu já paguei... O suficiente...!” – um gemido de dor não foi contido por ele quando Remliel pisou com mais força em seu membro quebrado. – “O preço já foi garantido... Eu sofri os mesmos danos que você... O preço foi pago...!”

O loiro sorriu mais. – “É, mas acontece que eu ainda estou com rancor de você. E há certos casos em que nem mesmo o preço se equivalendo é o suficiente para aplacar este rancor. O nosso é um exemplo típico.”

Baixando derrotadamente a cabeça, o anjo das asas rosas expirou.

“Ainda hoje, eu ouço as vozes... Eu ouço todos os humanos que eu matei... A voz deles é triste, é um gemido doloroso direto nos meus ouvidos... Também ouço o seu Arda, às vezes.” – os olhos castanhos daquela ‘bruxa’ pousaram nos de cor exótica do outro anjo. – “Eu aprendi minha lição, Remliel... Nunca mais voltarei a ser ‘Erasi’. Tirar vidas pelo simples fato de tirar... É insano. Tenho certeza de que ouve a voz dos que você matou também, como eu ouço...”

“De fato.” – sorriu. – “Mas o que nos difere... É que eu não ligo.”

Sehriel pensou em falar-lhe que aquilo era temporário, que chegaria um tempo em que essas vozes seriam um eco irritante em sua cabeça, que elas fariam com que o anjo de asas vermelhas percebesse a verdade... Mas ficou calado.

Deixou que aquele pé esmagasse ainda mais seus ossos, o som de seu ombro deslocando, cedendo àquele aperto mortal. As correntes balançavam violentamente, e os poucos gemidos que Sehriel conseguia emitir perdiam-se nas paredes úmidas de pedra.

No fundo, ele sempre pensou que merecia, de alguma forma, aquele ódio. Na verdade, ele até mesmo desejava que os outros anjos de quem tirou ‘deuses’ também reagissem como Remliel: que o odiassem por toda a eternidade.

“Ei, Sehriel... Conte-me... Por que foi acusado?” – sussurrou o loiro em seu ouvido, afastando do mesmo os cabelos escuros e ensebados.

“...Fui acusado de dormir com o Demônio e praticar magia negra.”

“Um anjo do próprio Primum Mobile dormindo com o nosso camarada caído, Lúcifer?! [2]” – Remliel começou, novamente, a rir. – “Que papel ridículo o que você prestou-se a fazer, Sehriel! Um anjo não devia deixar-se tratar dessa maneira por meros humanos!” – continuava rindo.

Sehriel ficou estranhamente calado depois disso.

“E ainda com o Lúcifer! Esses humanos me divertem, sério! Adoro a criatividade deles... E são tão arrogantes, não é? Acham que o mundo gira ao redor deles, que os demônios estão doidos pra possuí-los... Não acha isso digno de pena?”

Ao ver que o anjo da Justiça não reagia, imerso em pensamentos, mesmo quando seu pé apertava ainda mais, o ombro dele (ou seria dela?) era ainda mais deslocado... Remliel não agüentou.

Agarrou aqueles cabelos sujos e acastanhados da mulher à sua frente. O rosto sujo virou-se para o seu, os olhos marrons abriram-se, surpresos.

“Diga-me, Sehriel... Você também fez isso com eles? Sabia que quem não chora durante as torturas é considerada uma bruxa?”

“A dor é tão real para um ser inorgânico quanto para um orgânico.” – sussurrou.

“...E quais instrumentos de tortura usaram em você?” – a voz dele sussurrando em seu ouvido ficou ainda mais ácida.

Pela primeira vez, o grande anjo que um dia foi um ‘Erasi’ temido estava tendo uma reação que, para os humanos, aproximava-se de “estar tremendo”. Se era de medo, impotência ou qualquer coisa assim, Remliel nunca soube.

“Eles iniciaram com o arrancar de unhas... Depois, o Strappado [3]... Depois, a Virgem [4]... Queriam arrancar meus olhos com uma navalha em brasa, mas acabaram não fazendo isso... Usaram a Escada [5], ao invés daquilo, e depois ainda chicotes... Foi...” – calou-se. Alguma coisa entalou em sua garganta, impedindo-o de continuar.

De fato, Sehriel fedia quase que a decomposição. Seus ossos estavam frágeis, seu corpo estava em frangalhos, mas a sua determinação era a única coisa que continuava intacta. E era exatamente ela que Remliel mais odiava.

“E por que não pediu a Prova da Água de uma vez...? [6]” – insistiu, deleitando-se com as imagens mentais. – “Mesmo uma ‘bruxa’ tem direito a isso.”

“Meu ‘deus’... Meu ‘deus’ disse que eu era uma bruxa, um demônio... Porque eu tinha essas asas...” – a voz de Sehriel, no corpo desejado daquela mulher pequenina e frágil, tremeu. – “Então, eu vou continuar sendo uma bruxa... Se eu não provar-me exatamente isso, quem sofrerá é ele... Tirarão o que ele recebeu por me delatar... Não posso prejudicá-lo. É o meu ‘deus’, acima de tudo. O que ele diz é a minha verdade absoluta.”

O pé do anjo de gloriosas asas vermelhas deixou em paz aquele ombro já deslocado o suficiente pelas torturas medievais.

Mas, no ódio que lhe corrompia as entranhas, Remliel agarrou o queixo daquela figura acabada aos seus pés e puxou-a, obrigando o outro a encará-lo.

“Eu preferia você como ‘Erasi’... Era menos irritante, sabia?”

Sem maiores escolhas, Sehriel apenas encarou-o. Entretanto, ao contrário do que podia aparecer, mesmo estando humilhado, acorrentado e preso em todos os sentidos, ainda tinha aquela altivez, aquele orgulho que era a única coisa que lhe restava em mãos. E tudo aquilo que enfurecia o anjo loiro das asas escarlates.

“...Agora você virou um idiota, um simples ‘Construxi’ imbecil, como qualquer outro. Leal como um cãozinho.” – apertou-lhe mais o queixo, com a clara intenção de machucar. – “Irritante.”

O anjo dos cabelos castanhos assentiu, subitamente, como se compreendesse aquela fúria. Respirou fundo, e com a voz mais delicada que conseguiu, sussurrou:

“Se você virou esse tipo de ‘Construxi’... Nesse caso...”

Remliel parou.

“...Por que isso... Não aconteceu antes...?” – deu um sorriso pequeno, quase imperceptível. – “É isso que pensa, não?”

Remliel engoliu em seco. Calou-se.

E então, chutou o estômago daquele humano inorgânico. Uma, duas, várias vezes, e quando sentia que Sehriel iria desmaiar, esperava-o se recompor, e reiniciava.

Somente quando Sehriel vomitou não mais do que bile, foi que Remliel parou de chutá-lo. Seu rosto contorcia-se em fúria.

 

Tokyo – Japão.

Assustadas, algumas pessoas saíam dali, iam para um lugar seguro contarem aos conhecidos as novidades ou simplesmente deixavam a área, já prevendo a intervenção da polícia ou alguma autoridade do gênero.

Alguns outros formavam uma roda em volta daquelas criaturas, distanciadas. Comentavam, assustadas, de como a cidade não era mais a mesma, ou porquê duas crianças estavam ali, brigando. Ou, quem sabe, que filme era aquele, que parecia tão real (apesar de poucos sustentarem esta teoria, depois da primeira vidraça quebrada).

Quando Remliel sacou mais uma vez sua foice e jogou-a na direção de Himitsu, as pessoas se afastaram, porque ele havia ido bem na direção do povo que os rodeava.

Mas só então ele se lembrou de que Maiko também estava ali, escondida providencialmente no meio deles, e desviou-se mais uma vez. A foice acertou a parede, arrancando uma boa parte dali, junto com o vidro das vitrines das lojas. O olhar dela era de ódio puro, sem nada menos.

“Por que está fugindo, Sehriel?!” – ela bradou, girando no ar sua arma. – “Não sabia que o tempo o deixara tão covarde assim!”

“Não devíamos estar fazendo isso aqui no meio de todo mundo, Remliel! Essas pessoas estão assustadas!” – Himitsu devolvia, desviando-se como podia, sem atacar uma única vez.

Assim como todos os outros, Maiko ouvia aquela conversa.

Mas, ao contrário de todos, ela entendia.

Himitsu havia lhe dito ‘fique aqui e só saia deste lugar se todos saírem também’. Pediu para fingir que aquilo era um grande campo, cheio de árvores, e que ela devia ficar atrás de alguma. Mas se o campo tornasse-se uma campina aberta, então ela devia seguir para onde haviam “árvores”. A figura de linguagem era simples, porém mais fácil falar do que fazer.

Ela era apenas uma humana. Podia socar humanos, como fazia na escola, podia oprimi-los em troca do dever de casa ou para aplacar seu ódio, mas contra um Anjo, não tinha a menor chance.

E muitas vezes ela pôde comprovar isso.

Eles tinham um aperto de aço, uma força inumana. Eram ágeis e de capacidades muito além das dela. Das de qualquer humano, talvez.

Por mais que quisesse ajudar Himitsu, contra Remliel, aquele anjo de força ensandecida, não tinha a menor chance.

“Saiam da frente!”

Maiko estremeceu. A polícia.

“Saiam! Onde é a briga?!” – um policial, apressado, abria caminho na multidão.

“É ali, seu guarda!” – uma moça de aparência universitária apontou a pequenina de asas vermelhas à mostra e o loiro que fugia de uma foice afiadíssima.

“Eles estão brigando faz um tempão!” – um rapaz completou.

A japonesa quis segui-los, dizer que não deviam se meter, ou iriam se machucar; mas as pessoas empurravam de um lado e de outro, esmagavam-na e não deixavam que ela se movesse rápido o suficiente para segurar o braço dos guardas. E logo, mais dois estavam seguindo-o.

Eles pararam no centro do círculo, onde a briga acontecia.

A cena parecia antológica, num primeiro momento. Um rapaz loiro, de uniforme colegial, alto e de aparência atlética, estava desviando dos ataques brutais da foice azulada e estranha de uma menina pálida de roupas negras. Ela era tão franzina e delicada (quando não se olhava para sua face contorcida do gozo dos assassinos) que era quase injusto um homem daqueles estar numa briga com ela.

Uma criança e um rapaz. Uma criança de asas vermelhas, enormes e perfeitas, destruindo as construções ao seu redor, tentando massacrar aquele loiro. A cena mais estranha da vida de muitos.

“Ei, vocês!” – mas não suficientemente estranha para impedir um policial de tocar no ombro da menina. – “Devem nos acompanhar até a delegacia!”

Remliel virou-se, só então percebendo que havia mais humanos ao seu redor.

Ela dignou um olhar tão gélido, porém vazio, ao policial, que Himitsu estremeceu tanto ou mais do que eles ao perceber o que ela queria dizer.

“Humanos idiotas. Não me atrapalhem.” – resmungou, virando o corpo e ficando de frente para os três oficiais da lei.

“Remliel, não faça isso...!” – Sehriel precipitou-se sobre ela.

E Maiko pensou o mesmo, fechando os olhos, escondida de seu lugar, porque sabia o que ela iria fazer.

Himitsu chegou a alcançá-la, porém, tarde demais.

 

Ano de 1919.

Leavenworth, Kansas – Estados Unidos.

O sol começava a sumir lentamente por entre os prédios envelhecidos, abandonados à própria sorte enquanto seus proprietários ou moradores pereciam, num destino semelhante ao dela.

O vírus Influenza-A [7] alastrava-se com toda sua força pelos EUA. E, como iniciou no próprio Kansas, pensava ele, nada mais justo do que varrer todo o Kansas.

Ele estava no hospital, até alguns minutos. Estava deitado numa cama, naquele corredor superlotado, cheio de doentes gemendo e implorando para morrer (e alguns, de fato, morriam logo, do jeito que queriam). Ele também havia sido contaminado; estava morrendo lentamente de gripe espanhola.

Não que estivesse reclamando. Na verdade, só de poder ter uma cama, mesmo que seu quarto abrigasse tanta gente que as enfermeiras nem podiam se deslocar por entre as camas, já estava contente. Para um michê de ruas, acostumado à podridão e aos mal-tratos, aquilo era o céu.

Estava sendo tratado como podia, tinha alguma comida, conhecia doentes ainda mais graves que ele próprio, mas que tinham fé de poder melhorar. Era bom.

...Mas Isaac Allister sabia que não sobreviveria.

Por vários motivos.

Estava cozinhando de febre, a sua tosse era cada vez mais profunda, mais dilacerante, sua garganta estava tão fechada que ele mal conseguia respirar, e até mesmo seus olhos mostravam apenas borrões indistintos, pressionados por aquela enxaqueca de outro mundo.

Era questão de tempo até morrer. E aquele rapaz que o levava no colo era a prova viva disso, de que não sobreviveria àquela epidemia.

“Isaac...?” – chamou-lhe aquela voz.

O michê ergueu seus olhos esverdeados, procurando o rosto dele.

Estava lá, tão perfeito quanto lembrava. Seu anjo, seu Andrew.

Os mesmos cabelos ruivos e compridos, os mesmos olhos acastanhados. A pele branca, como a dos anjos barrocos da capela que visitava aos domingos, para pedir perdão a Deus por sua vida de pecados.

Isaac aconchegou-se mais no peito de Andrew.

Estava tremendo de frio, a cabeça enevoada, e ele sequer sentia pânico.

“O que foi, Andrew?” – perguntou, de olhos fechados.

“...Eu acho que despistamos a enfermeira.” – anunciou, já baixando a altitude.

Isaac, que gostava quando Andrew levava-o para passear nos céus, aquelas suas asas róseas brilhando majestosamente no sol, não desejou descer nem de seus sonhos nem daquele vôo, naquele instante.

O michê de cabelos negros lembrava-se de quando descobriu a verdade sobre seu Andrew. Sempre o achou estranho, exatamente como havia desejado, e quando soube o que ele era e o que fazia ali, ao contrário do que esperou, não sentiu medo.

De repente, sentiu-se em paz. Quase como se esperasse aquilo.

Naquele dia, ele foi à igreja e agradeceu o Senhor muitas e muitas vezes por ter-lhe mandado um mensageiro do céu para cuidar dele em seus últimos momentos.

Uma criança que fora encontrada numa lata de lixo de uma casa de prostituição, que fora preparado por um castratti [8] e teria de servir eternamente como um michê enquanto não pagasse suas dívidas... Com quinze anos de vida tão miseráveis, ele agradeceu imensamente a chance de poder ter alguém que nasceu apenas para ele, que faria apenas ele e mais ninguém feliz.

“Que bom.” – Isaac assentiu. – “Ela me deu medo, admito.”

“Não se preocupe, Isaac.” – seu Andrew sorriu mais, encostando seu queixo nos cabelos macios do menino. – “Eu vou protegê-lo.”

“...Vai me proteger.” – ‘e me matar, um dia’, completou em seu pensamento.

“Vamos voltar? Você precisa de remédios, Isaac. Está tossindo muito.”

Mesmo dizendo aquilo, o ruivo já dava meia-volta em pleno céu, sacudindo as asas, que faziam um som parecido com os das pombas da igreja quando alçavam vôo.

O rapaz parou, repentinamente, apertando o menino doente em seus braços.

Mesmo sem abrir os olhos, o michê de cabelos negros soube o que aconteceu, mais ou menos. Aquilo se repetia várias vezes. – “Quem está lá, Andrew?”

“...A enfermeira.”

A tal enfermeira a quem tanto se referiam era uma senhorita de aparentes 1m70, cabelos curtos, cacheados e castanhos. Tinha um penteado comportado, estava sem a máscara no rosto, usando o uniforme de atendentes do hospital, e os olhos eram azuis, tão profundos e bonitos que podiam ser vistos de longe.

Ela voava; majestosas asas vermelhas, como o sangue.

“Vai fugir?” – perguntou. Ele estava sendo corroído pela febre espanhola; morrer hoje ou amanhã não lhe fazia diferença.

“Podemos...?” – o tom de voz de Andrew era insondável.

“Vou pra onde você for.”

Sehriel sorriu. Aquele seu ‘deus’ era dócil, dependente e frágil... O tipo de humano por quem ele mais sentia empatia. E de quem sentia mais dó.

Porque Remliel, que vinha logo atrás dele, com aquele sorriso de assassino, também achava aquele tipo de presa o mais divertido.

 

Tokyo – Japão.

Mashiro olhou para o céu escurecendo, e respirou fundo. Algo no ar agitava-se como descargas elétricas, espalhando-se por suas têmporas e tirando sua paz.

“Está ouvindo isso, Shiho-kun?” – perguntou ao gêmeo ao seu lado.

Shiho, que estava mais ocupado analisado detalhes nunca antes notados por sua pessoa naquela cruz de prata que trazia no pescoço, só percebeu do que ele falava quando sentiu um arrepio em sua nuca.

“Hum... Ouvi, sim.” – sorriu. – “Remliel é muito impaciente.”

“Por que está falando dela? E quanto a você, Tenshi no Inochi wo Mushisareta Tsumibito [9]?”

“...Isso parece um nome de templo, pare de usar esse apelido!” – Shiho resmungou, parecendo deveras ofendido.

“Às vezes, penso que você me usou de analista.” – Mashiro deu de ombros. – “Contou-me tantas coisas. Inclusive o porquê deste apelido.”

Suriel, olhando para o céu escarlate, respirou fundo.

“É... Eu compreendo Remliel. Ele é impaciente, mas, pelo menos, não é impulsivo, como eu fui.” – sorriu, tristemente. – “Até hoje eu sofro as punições que o luto por Sayo-dono me impôs.”

O hanyou deu de ombros mais uma vez.

“Você era um ‘Construxi’ jovem... A morte da sacerdotisa tocou-lhe fundo... É meio natural, acredito.”

“Nunca toquei nela, sexualmente falando. E, entretanto, ela foi a que mais amei, enquanto ‘Construxi’.” – Suriel confessou, o olhar e a voz distantes. – “Vai entender...”

“Como era mesmo o nome do anjo que você matou?”

“Oniemme e Orifiel. Gêmeos, ‘Erasis’, com aquela alcunha infame de Omoi no Tenshi [10].” – sorriu.

“Você matou os dois?” – perguntou o moreno, erguendo uma sobrancelha.

“Os dois.” – concordou.

“Shiho-kun, você só me contou de Orifiel.” – cruzou os braços, repentinamente incomodado por seu anjo ter-lhe omitido aquele detalhe.

O garoto das asas negras deu um sorriso maroto.

“É que o outro ficou olhando, e eles dividem tudo, inclusive a chama inorgânica da vida. Não gosto disso, por isso, matei os dois.”

Mashiro deu um sorriso tão maroto quanto, depois de ouvir aquilo e matutar. – “...E como se mata Anjos?”

Suriel riu.

 

Paris – França.

O telefone tocava “há anos”, por assim dizer. E ninguém atendia. Talvez, porque ninguém estava em casa naquele momento.

Por isso, sobrara para ela. Resignada, ela deixou a sala de treinamento (logo agora, que conseguira as malditas 70 flexões com os pesos nas costas!) e foi até a sala. O telefone era tão maldito que não parava de tocar até agora, como se a pessoa do outro lado da linha fosse realmente irritante.

“Bonsoir, Duvette. [11]”

Charrière!” – a voz do outro lado era de um menino. Apressado e angustiado.

“Najato?!” – e ela surpreendeu-se ao reconhecê-lo tão rapidamente. Assim que pronunciou aquele nome, já desatara a falar japonês. – “O que houve? Os Hajaya não ligam pra cá desde... Desde que eu nasci!”

Do outro lado da linha, na capital japonesa, o rapaz deu um longo suspiro.

...A barreira, Charrière.

“Mon Dieu! [12] O que tem ela?!” – a garota passou a mão pelos cabelos ruivos e encaracolados. – “Onde está aquele seu Anjo, que te ajuda?!”

Irieko tá aqui, mas a ajuda dela não é o suficiente. Os youkais estão vencendo a resistência, a barreira tá por um fio.” – ele sussurrou.

Pela movimentação e vozes, ele devia estar em algum lugar com muitas pessoas. Um shopping, uma estação, talvez um bairro japonês movimentado.

Os olhos verdes de Charrière Duvette brilharam.

“Qu'est-ce qui se passe?! [13] A barreira está abrindo, os Guardiões estão sobrecarregados e você ainda não chamou os reforços?!”

Exatamente o que estou fazendo, Charrière. Como o Soku-ya dos Amatsuki e residente no país da barreira, é meu dever mantê-la policiada e avisar quando estamos com problemas.” – Najato explicou algo que a menina já sabia, mas que não cansava de ouvir. Sempre fazia bem ao seu ego. – “E você, como uma guardiã de apoio dos Gautier, considere-se a primeira a saber que... Estamos com problemas. Graves problemas.

A garota retesou-se. E imediatamente se lembrou de que não havia ninguém em casa. Seus pais adorariam saber daquilo.

“Quer que eu ligue para os outros?”

Chame quantos puder. Vamos precisar de toda a ajuda possível.

Para alguém coberta de suor e cansaço depois de uma bateria extenuante de exercícios físicos (que era a sina de todo o Guardião de Apoio, seja lá qual família esteja servindo), a ruiva sentiu-se imediatamente revigorada, animada, até.

“Najato, mon amour... [14] Charrière Duvette estará no próximo vôo para Tokyo, tenha certeza.”

 

[1] “O Anjo da Justiça”, em francês.

[2] Lúcifer é um anjo da classe dos Querubins, o mais belo, inteligente e poderoso de todos os anjos. O primeiro deles, feito do fogo no Primeiro Dia da Criação e possuidor de doze pares de asas. Foi exilado do Reino de Deus por tentar usurpar o trono Dele.

[3] Uma tortura medieval. Prendiam as mãos do acusado para trás e, por uma corda amarrada nos pulsos, içavam-no até uma trave no teto (podiam pôr pesos nas pernas também). Então, soltavam subitamente a corda, deixando-o cair, mas sem atingir o chão, pois a corda era travada bruscamente em meio à queda, provocando deslocamento dos ossos.

[4] Um sarcófago muito estreito e cheio de pontas onde o acusado era preso. Podia-se deixar uma vítima dias ali, até que ela morresse de hemorragia.

[5] Trata-se de uma escada comum, posta reta e horizontalmente, ficando o acusado sobre ela, deitado de costas, com os pés presos a um degrau e com os braços levantados para trás da cabeça. Então, um peso era amarrado em seus pulsos, ficando dependurado ao fim do último degrau. O peso era tamanho a ponto de deslocar (ou até mesmo quebrar) ossos.

[6] Era um exame para identificar feiticeiras, mas muitas mulheres o pediam logo no início. A acusada era amarrada e lançada em um rio profundo. Se flutuasse, era culpada e iria para a fogueira. Se afundasse, era inocente. Praticamente todas morriam afogadas pelo tempo que permaneciam debaixo da água.

[7] É um gênero dos Ortomixovírus. O subtipo H1N1 é o que causou a gripe espanhola, e o H2N2 foi o causador da gripe asiática em 1957.

[8] Cantores do sexo masculino que são castrados para terem uma voz mais fina.

[9] Frase japonesa que significa “O Pecador que Desconsiderou a Vida de um Anjo”, traduzindo literalmente.

[10] “O Anjo das Emoções”, em japonês. Pode também ser traduzido como “Os Anjos”, já que Shiho se refere a gêmeos.

[11] “Boa tarde, Duvette”, em francês.

[12] “Meu Deus”, em francês.

[13] “O que está acontecendo?!”, em francês.

[14] “Meu amor”, enfim, nessa língua aí. XD


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