Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 15
Tom XXVI: A Sombra que Acompanha




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Voe, voe, passarinho...

Às vezes, ele tinha a impressão de que aqueles pilares que sustentavam a abóbada da construção celestial iriam ceder a qualquer momento. Todo aquele lugar, por mais austero que fosse, sempre lhe inspirava a sensação de algo efêmero. Como um daqueles estranhos mementos [1].

Há pouco, enquanto caminhava, o branco puríssimo das paredes anunciava-lhe um encontro temeroso. E, de fato, quando entrou no salão de porta adornada por dourado, no trono ebúrneo estava sentado o grande anjo.

Grande em todos os sentidos, pensava Remliel. Tinha a forma de um homem alto, com mais de dois metros, e em aparência, assemelhava-se a alguém de quase 40 anos terrestres. Trajava vestes branquíssimas, nenhuma cor a mais, e suas asas eram uma mistura da prata preciosa da luz da lua e do ouro absoluto dos detalhes do Primum Mobile. Trinta e seis pares de asas, e graças a isso, recebia a alcunha de Rei dos Anjos.

Logo ao lado dele, Hanael, o regente dos Principiados. [2] Ao contrário do que os humanos pregavam, anjos como Gabriel ou Hanael não tinham a forma falsa de um homem humano. [3] Hanael era uma mulher de aparentes 25 ou 26 anos terrestres, de olhos âmbares e gentis. Os cabelos eram negros, até os joelhos, e tinha pequenas tranças entremeadas de pérolas caindo-lhe pelos ombros alvos. Trajava uma roupa leve, ao contrário de Metatron, mas igualmente branca, puxando para o ciano pálido. Vinte e três pares de asas de um azul índigo mostravam-se em todo seu esplendor.

Os anjos não têm sexo, de fato, então tanto fazia chamar de príncipe ou princesa. Enfim, Hanael também tinha regência sobre os chamados Cupidos (que Remliel considerava um bando de anjos desocupados tão odiosos quanto os ‘Construxi’).

Remliel, que ainda estava na sua forma de “Morphia”, a humana inorgânica que havia se apaixonado pelo humano orgânico Arda, ajoelhou-se tão logo se aproximou do trono onde o Rei dos anjos sentava e que, ao seu lado, o Rei de sua classe angélica esperava.

“Caríssimo Remliel, o Anjo da Aniquilação.” – Metatron fez-lhe um sinal para que levantasse a cabeça. – “Fui avisado por seu superior Hanael, o Anjo da Transformação, de que deseja uma arma.”

Antigamente, pensava amargamente o anjo das asas vermelhas, não existia toda essa burocracia para mudar de lado. Era só mudar.

Sehriel tinha sorte, o cretino.

“Sim, rei Metatron, o Anjo da Supremacia. Eu comuniquei minha decisão ao digníssimo Hanael de que desejo tornar-me um ‘Erasi’, a classe dos anjos inferiores que se manifestam aos humanos que traz a morte impassível aos seres orgânicos. E, para isso, eu desejaria uma arma de Quintessência.”

“A arma de Quintessência é um item que diferencia os ‘Erasi’ e os ‘Construxi’, Meu Senhor.” – Hanael apressou-se em traduzir o anseio do anjo escarlate.

“É mesmo...” – Metatron deixou escapar um sorriso. – “Ainda não me acostumo com anjos inferiores de um par de asas apenas controlando Quintessência...”

Remliel engoliu em seco.

Metatron era a existência-mor. Tinha trinta e seis pares de asas, um número impensável para qualquer outro. Com um estalar de dedos, poderia fazer Sehriel virar poeira cósmica. E Remliel também. Nenhum ser acima ou abaixo do planeta, apenas Ele, era capaz de ir contra aquele anjo.

“A Quintessência há muito deixou de ser um item exclusivo dos Supremos Arcanjos, Meu Senhor.” – disse, tão logo recuperou a calma.

“De fato, Meu Senhor.” – a cautelosa Hanael interveio. – “A Quintessência, hoje, é utilizada por vários anjos menores, como Vossa Senhoria permitiu. Nem o senhor nem Ele precisam se preocupar, entretanto, pois moderar as utilidades deste elemento são um trabalho dos devidos regentes das Classes Angélicas.”

O ser limitou-se a sorrir. E o anjo dos cabelos negros respirou fundo.

“Afinal, foi uma decisão conjunta de todos os Arcanjos Menores e de Vossa Senhoria.”

Enquanto eles falavam coisas sem sentido, Remliel apenas ponderava. Metatron não perguntara nada sobre seus motivos, porque isso inferia diretamente no seu direito ao silêncio, na própria harmonia estabelecida da convivência. Mas, mesmo se perguntasse, não hesitaria em dizer: Vingança. Pura e simples.

“Hum...” – Metatron disse, apenas. – “E quanto ao senhor, Remliel, o Anjo da Aniquilação...”

Erguendo a cabeça, Remliel encarou o superior no fundo dos olhos.

“...Já que não há nada que impeça oficialmente, creio, deve ter sua arma de Quintessência para ceifar vidas humanas. Apesar de eu achar que este era um trabalho dos que trabalham para Hades e o nosso companheiro caído, Lúcifer, o Anjo do Fogo.”

“Muitíssimo obrigado, Meu Senhor.” – reverenciou-o prontamente a anjo das asas vermelhas como o sangue.

“Alguma preferência no tipo de arma?” – Hanael perguntou-lhe. – “Muitos ‘Erasi’ manifestaram predileção por um determinado tipo de...”

“Uma foice.” – respondeu a humana inorgânica, prontamente. – “Como Sehriel.”

“...Sehriel, o Anjo da Justiça? O subordinado de Mikael, dos Arcanjos? [4]”

“Este mesmo.”

“Você está dizendo-me que quer...”

“É. Quero uma foice igual à dele.”

A vingança. Ela exala uma fragrância exótica e envolvente. Ela deposita carinhos deliciosos na consciência. E faz quem cair em suas mãos morrer sorrindo, com um beijo vazio de boa-noite.

...Você sabe que não pode fugir.

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXVI: A Sombra que Acompanha.

 

“Por Kami-sama! Irieko, tem idéia de quanto essa ligação vai custar...?!” – Najato reclamava, com o celular nas mãos, indicando que estava ainda usando-o.

“Se começar a rifar seus órgãos agora, talvez consiga pagá-la, Na-chan.” – a anjo dos cabelos e asas verdes limitou-se a dar uma risadinha.

“Muito obrigado pelo apoio moral.” – rosnou.

“Sempre às... Ordens...” – sem conseguir mais se conter, a garota começou, descaradamente, a rir da cara do caçador.

Najato Hajaya fuzilou seu anjo Irieko com os olhos, mas não fez mais do que isso, porque estava mais ocupado em escutar os sons ao seu redor, crente de que algo estava acontecendo, mas não sabendo explicar o quê, exatamente.

Sentando-se num banco da estação de metrô, o caçador youkai respirou fundo, buscando a coragem (e paciência), e pondo o celular perto do ouvido de novo.

“Ok, onde estávamos?”

Najato, mon cherie! [5] Até que enfim! ♥” – a voz de Charrière fez-se ouvir.

“E então, Charrière? O que conseguiu até agora?” – ele precisava ser rápido, por muitos motivos (principalmente pelo gasto de seu celular), então não poderia deixar que a francesa se empolgasse e desatasse a falar, como era de seu feitio.

Falei com alguns deles, mon amour [6], como me pediu~! ♥

“Especifique ‘alguns deles’.” – gota.

Bom... Falei com o nosso Samrat [7], salve, salve, porque ele deve ser sempre o primeiro a saber. Falei também com o senhor Bryson, o Natan, o Yao, o Muratori e o O’Connell... Ah, aliás, este último mandou lembranças para a sua mãe e disse que você é um irresponsável. Mas é o meu irresponsavelzinho! ♥

“Por que você só falou com os homens?!” – o japonês massageou a têmpora, prevendo novas enxaquecas para a coleção. – “Aliás, por que o O’Connell mandou lembranças pra minha mãe?! E quer parar com esses corações no fim de cada frase?!?!”

Duvette ficou em silêncio, o que tornou o zumbido da ligação evidente. – “É que eu não queria falar com elas...

“Elas...? Elas quem? As gêmeas?”

Feline e Felicia Blackburn. Os Guardiões de Apoio da geração anterior casaram-se (ironicamente, os Guardiões também), e então, o Apoio de Virgem e Peixes eram as gêmeas (e, oh ironia, os mesmos Guardiões eram irmãos de sangue)...

Você sabe como elas são, amour de ma vie [8]...

Uma trágica lembrança passou pela mente de Najato: mais precisamente, o último dia em que tentou falar com elas. ‘Quem é que está falando, Felice ou Felicia?! Desligamos na sua cara se erra-ar!~’. Nem é preciso dizer que elas desligaram antes mesmo de saber do que se tratavam (e quem teve de falar com ele foi o senhor Blackburn). É, ele sabia bem como elas eram...

“Pensando bem... Foi melhor ter ligado só para os homens mesmo...” – mais gotas.

Não é? E você é o mais fofo deles!~ ♥” – ela riu.

“...Olha, permita-me lembrá-la que eu tenho uma namorada, Charrière.” – nova gota. – “E você tem uma missão, então, dá pra parar de me cantar descaradamente?!”

Ah, mas você precisa de algo melhor que aquela moça assustadora... Já viu Rozen Maiden [9], falando nisso?! Revi esses dias, e...

Enquanto o moreno pensava quando aquela conversa adquirira o rumo que estava tendo, calculava mentalmente quanto iria gastar com aquilo tudo.

Já disse que a Irieko não foi inspirada na Bara ou na Kira [10]...” – gota.

Provavelmente, ele iria continuar gastando seu precioso dinheiro com aquela conversa sem sentido, pensou a criatura celeste. E, também, haviam outras coisas incomodando-a. Por isso, sentiu-se totalmente a vontade para agarrar aquele celular e falar ela mesma, depois que conseguiu parar de rir.

“Escute aqui, Duvette... Para começar, é C.C., entendeu?! C.C., de Code Geass! Nem Barasuishou nem Kirakishou! Rozen Maiden é para imbecis! E, além disso... Você não tem mais o que fazer do que dar em cima de caras comprometidos? Como, por exemplo, avisar as outras guardiãs de apoio?! Seria bom avisá-las, porque as coisas estão mesmo fora de controle, e o frouxo do Najato fez isso parecer brincadeira. Mas não é!” – rosnou o anjo. – “E agora, mais uma coisa: se eu te ver conversando assim com ele de novo, não me importa o motivo, juro que vôo até aí e arranco a sua cabeça pra comê-la com o meu arroz no café-da-manhã. E aqui já está anoitecendo. Passar bem!”

Com uma gota ainda maior, Najato viu-a desligar o celular e jogá-lo para ele de novo, que o pegou com um movimento rápido, visivelmente irritada.

“...Odeio essa menina! Droga!”

Najato riu. – “Está com ciuminho, Iri-chan~? ♥”

“Não começa.” – rosnou de novo.

Provavelmente, se não fosse o som de uma nova mensagem chegando, o caçador teria se aproximado de sua presa e enlaçado-a, apenas para vê-la corar num misto de raiva e vergonha pelos pedestres que olhariam-nos com reprovação.

“Ora... Tes obsidienne yeux, j'en reve jour et nuit (L)... [11] De que espécie de mídia doentia ela tirou essa frase...?” – e ele viu-se massageando a têmpora de novo.

Até ouvir o urro de Irieko e ter seu celular brutalmente tirado de suas mãos.

 

Nem mesmo o grito das pessoas, correndo apressadas, esbarrando umas nas outras, foi o suficiente para fazê-la despertar daquele transe de terror. Por um instante, ela sentiu-se como se estivesse naquele seu antigo apartamento, com um Takuchi Isono transmutado naquela menina pálida, como se eles fossem o mesmo tipo de ameaça homicida.

Quando a primeira cabeça descolou-se do corpo, a gritaria começara. O policial caiu numa poça de sangue quente, e os outros logo se juntaram aos colegas. O pânico em massa instalou-se, transformando aquele bairro no caos puro. Onde antes havia uma roda de curiosos, agora nada mais restava senão papéis, celulares caídos, moedas ou qualquer objeto perdido da multidão.

Himitsu não teve tempo de parar a fúria assassina de Remliel. Mas teve tempo, ao menos, de voar até Maiko, que não havia saído do lugar, e protegê-la com o próprio corpo, impedindo-a de ver algo senão o peito dele e o emblema do colégio onde eles estudavam, aderido à camisa dele.

“Não olhe, Maiko-chan...” – o loiro sussurrou.

“Tá...” – como se ela pudesse ver muita coisa com ele assim. Mas não era hora de replicar seus pedidos.

Analisando o estrago em sua foice, a anjo inorgânica suspirou.

“Humanos idiotas... Eu teria lhes poupado se tivessem saído da frente.”

“Eles estavam apenas mantendo a ordem. Eram seres inocentes.” – sussurrou. – “A dissonância éramos nós, Remliel...”

“Ora, deixe de bancar o bonzinho, Sehriel! Ou melhor...”

Sorrindo, aquela garota fez as asas rubicundas desaparecerem numa chuva de penas que brilhavam fracamente, como se uma revoada de pássaros houvesse voado e deixado cair em meio à sua fuga aquela quantidade absurda. Agora, mais do que nunca, ela parecia uma humana. Com uma foice e um sorriso assassino, mas ainda sim, uma humana. A tal garça entre as garças.

Talvez fosse da natureza dos anjos sentirem as coisas com tanta intensidade. E quando mostravam isso em suas faces, era assustador.

Maiko via apenas um pouco da cena, pelo espaço que Himitsu deixava em seus braços, mas tudo o que via, na verdade, já era o suficiente para assustá-la, muito mais do que cabeças de policiais caídas no chão: aquele anjo de olhos estranhamente acastanhados, numa mistura estranha de vermelho morto, estava sorrindo. Um sorriso delicado e quebradiço e, ainda sim, um tanto quanto malicioso.

“...Por que está fazendo isso, Sehriel? Afinal, você é um menino mau.”

A japonesa percebeu quando o anjo das asas róseas entreabriu os lábios, surpreso. Ela viu seus olhos adquirirem um estranho brilho, aquele que toma conta quando parecemos reconhecer alguém.

“Sam...” – sussurrou, incrédulo.

Talvez, Maiko estivesse mais surpresa que ele. Na verdade, ela sempre esquecia-se (ou fazia isso de propósito), mas naqueles momentos, ela lembrava-se de que Sehriel, o anjo que agora era seu e chamava-se ‘Himitsu’, já tivera inúmeras outras vidas, outros milhares de nomes, e infelizmente lembrava de todos, por mais que ela tentasse fazê-lo esquecer dessas coisas (mesmo sempre achando que seus esforços eram em vão. Ela era como um bebê imaturo e ele, um adulto formado, maculado pelas lembranças)...

Aquela menina era uma de suas outras ‘deusas’...?

“Samantha...!” – o rapaz sussurrou de novo, desta vez com mais ênfase.

“Ora, minha imitação de Samantha Sharon foi tão boa assim?” – sorriu a anjo de foice azulada e cravejada de aquamarines. – “Lembra-se dela, né? Interessante, aquela lésbica... Eu fui com a cara dela, até. Uma lástima ter que matá-la.”

Himitsu virou o rosto, e Maiko foi incapaz de ver suas feições. Só pode concluir, pelo estranho aperto que se intensificou em seu corpo, que ele sofria.

“Antes da senhorita Sharon foi quem?... Ah, sim. O garotinho, aquele irlandês. O garotinho que perdeu seu gatinho de estimação. Acho que era esse, né? Ah, como é bom relembrar o passado, não é?” – a loira ria, parecendo divertir-se sinceramente em enumerar os falecidos de Sehriel. – “Lembra, Sehriel, de como a Samantha Sharon ficou incrédula? Como uma criança de quatro anos iria ceifá-la? Lembra de como ela ficou surpresa quando... Eu consegui o feito?”

O loiro continuava insuportavelmente calado.

“Fiquei surpreso quando você demonstrou uma reação tão contida ao me ver pela primeira vez, sabe? Na verdade, só agora é que você pareceu realmente reconhecer a Samantha Sharon...” – Remliel riu. – “O que é irônico, porque eu sei que você a conhecia totalmente, quando estava na forma daquela tal de ‘Lizzy’. Será que, no seu próximo ‘deus’, quando eu usar a forma de Maiko Isono, você irá demonstrar mais emoção?”

Maiko sentiu a respiração falhar ao ouvir Remliel dizendo aquilo. “Próximo ‘deus’” e “usar a forma de Maiko Isono” lhe pareceu profundamente perturbador.

“Você... Você está...”

Quando Himitsu virou-se para olhá-la, surpreso por ouvi-la falar depois de tanto tempo em silêncio total, ela percebeu. Aqueles olhos azuis não estavam mais como era de costume. Estavam escurecidos, estranhamente salpicados de sombras em índigo e ciano profundo. As sombras da tristeza, que corroíam sempre quando aquele tipo de assunto vinha à tona.

Certamente, aquele anjo Remliel sabia disso. Sabia disso tudo e estava usando todos os métodos que podia para desestabilizá-lo.

“Você está usando os corpos dos outros ‘deuses’ do Himitsu... Não, do Sehriel...? Esta menina... Foi a antiga ‘deusa’ dele?!” – perceber aquilo, algo que estava tão claro, mesmo que tão escondido debaixo do sigilo eterno que o anjo róseo mantinha sobre a sua vida de verdade, foi demais para ela. – “Você está assassinando continuamente essas pessoas e abusando de suas imagens... Apenas para perturbá-lo ainda mais...?!”

“Essa foice também. Ela não precisou ser usada para matar Arda...” – e aquela sentença foi dita com amargura. – “...Mas ela é igualzinha à de Sehriel, quando o mesmo era um ‘Erasi’. Só que a minha é azul, a cor dos Principiados. [12]”

“Está tudo bem, Maiko-chan.” – ele sorriu, como se nem ouvisse Remliel.

E aquele sorriso mortificou a japonesa.

“Não! Não está bem, não! Nada está bem, Himitsu!” – desta vez, ela própria esqueceu-se de Remliel. Aquilo sim a irritava, bem mais que a inocência dele, bem mais que qualquer outra coisa. – “Por que diabos você nunca reage?! É mais como se... Como se você quisesse isso! Como se achasse que merece essas punições!”

“Porque ele merece isso tudo.” – e, mesmo assim, aquele anjo intrometia-se.

“Remliel está certo...” – forçando-se a sorrir mais, ele afagou os cabelos negros da ‘deusa’ atual. – “Eu fiz coisas horríveis, e mereço todo o seu ódio. É claro que você não tem nada a ver com isso, por isso (também) estou te protegendo. Mas eu não me protejo.”

Maiko quis sacudi-lo, talvez socar aquela cabeça de bagre que só pensava bobagens e fazê-lo entender que era só um grande amontoado de besteiras.

Que não importava nem um pouco quem ele havia sido, o maior monstro da humanidade, o mais temido anjo do universo, não importava... Era o que ele tornou-se, apenas o Sehriel transformado em ‘Himitsu Isono’. E nada mais.

Isso era o suficiente. E, sem dúvidas, foi o suficiente para muitos outros humanos que puderam estar com ele.

Ela o abraçou, quis fazê-lo entender aquilo, talvez, com a ajuda daquele abraço, mas uma voz impediu-a (ainda bem) de sacudi-lo mesmo, para tirá-lo daquela apatia passiva e auto-imposta.

“Sehriel, o Anjo da Justiça, um dos únicos ‘Erasis Primordiais’. Ele nasceu com o impulso violento e homicida dos anjos que caçam seres vivos sem cuidar de suas almas. O grau de irritabilidade e de estímulos o tornou um dos mais sanguinários, o mais implacável. O temido Sehriel das asas róseas.” – aquela voz falava, enfatizando cada sílaba, num tom professoral. – “Entretanto, um dia, a irritação passou. E ele sentiu a irracionalidade, a estupidez e a ilógica do que fez. E então, movido exclusivamente de culpa, de expiação de pecados, ele tornou-se um simples ‘Construxi’, apagando seu passado de ‘Erasi’ dos mais raros. Estamos frente a um verdadeiro e milenar Complexo de Culpa, Maiko Isono-san. Tente ser um pouco menos rígida, o Sehriel é teimoso demais.”

Uma pena escura caiu na mão de Remliel, que fechou os dedos sobre aquele pedaço de luminescência tênue.

Tanto ela quanto Maiko e Himitsu ergueram a cabeça, identificando uma figura parada em cima de um dos postes de luz da rua.

“Suriel...” – a loira sussurrou, num misto de surpresa e raiva, apertando mais aquela pena negra em sua mão. – “O que está fazendo aqui?”

O referido garoto estava de braços cruzados, com um imenso, levemente sádico (e prazeroso, como não podia deixar de ser) e quase infantil sorriso no rosto, com o mesmo estilo de roupas negras que trajava normalmente.

Shiho limitou-se a sorrir ao ouvi-la.

“Fiquei com inveja. Não é justo que só você possa se divertir com o Sehriel e a ‘deusa’ dele, quando eu estou perseguindo-os há tanto tempo também!”

Como se pressentisse o veneno e o perigo das palavras, Remliel deixou que suas asas estendessem-se outra vez, cobrindo o chão de uma chuva graciosa de penas vermelhas, escondendo o negro das penas de Shiho Himeno.

“Não estou para brincadeiras, seu projeto de assassino. Saia daqui antes que eu transforme você em algo pior do que viraram esses humanos aos meus pés.” – e fez questão de apontar-lhe as cabeças dos policiais.

Com um salto calculado, Suriel foi parar logo ao lado de Himitsu, que viu-se, repentinamente, cercado por dos anjos de alto nível.

A situação não podia estar pior: Remliel queria a cabeça dele e de Maiko, Suriel, aparentemente, também queria isso, e ele, Sehriel, estava totalmente cercado, rendido, e com a ‘deusa’, mesmo em seus braços, desprotegida.

“Suriel... Por que...?” – ele sussurrou.

“As regras do jogo mudaram, Sehriel. Eu vou jogar como um ‘Erasi’, agora que Mashiro-kun também está jogando como um.” – ele sorriu.

“Co...”

“Isso mesmo, Himitsu-san.”

E, então, garras afiadíssimas pararam há centímetros da aorta da japonesa, parecendo nascerem de algo ou alguém atrás deles, sorrateiramente colocado ali. Maiko congelou instantaneamente, sentindo o roçar delicado daquela arma mortífera em contato com a pele. Os dedos cravaram-se, sem que ela percebesse, na camisa escolar de Himitsu, enquanto o mesmo cerrou os punhos.

“...Mashiro Himeno?” – incrédulo, ele divisou o gêmeo youkai que ajudara-o em muitas ocasiões anteriormente.

O meio-youkai, cujas garras ameaçavam a vida da ‘deusa’ de sua presa, também deu aquele seu tradicional meio-sorriso polido. – “Sinto muito, mas agora é a nossa vez de ter os encantos de Maiko-san para nós.”

 

 

 

[1] Memento mori é uma expressão latina que significa “Lembre-se de que é mortal”. Era muito usado na época barroca.

[2] Primeira classe da Terceira classe da Hierarquia Angélica. São os anjos enviados a missões alvissareiras, responsáveis por países e reinos.

[3] Hanael é mais um toque pessoal, mas há lendas (e eu preciso pôr a fonte dessas lendas aqui, lembrem-me disso ¬¬) que dizem claramente que Gabriel não é um homem (em sua forma terrena), e sim, uma mulher.

[4] Segunda classe da Terceira classe da Hierarquia Angélica. Eles são considerados os anjos protetores, os iluminadores dos pensamentos e dos homens.

[5] “Meu querido”, em francês.

[6] “Meu amor”, em francês.

[7] Samrat significa ‘Imperador’ em sânscrito. Mas Samrat também é um nome masculino indiano. Então, percebam o óbvio trocadilho com o indiano líder da trupe. XD

[8] “Amor da minha vida”, em francês.

[9] É uma série (mangá/anime) criada pelo grupo PEACH-PIT em 2002, que alcançou a nona posição, na época, dos 100 animes mais populares.

[10] Diminutivo de Barasuishou e Kirakishou, respectivamente, que são duas personagens do dito anime.

[11] “Sonho dia e noite com os seus olhos de obsidiana (L)”, em francês.


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