Esperanto:solfege escrita por Petit Ange


Capítulo 13
Tom XXIII: Remliel I / Tom XXIV: Remliel II


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo contem cenas lemon/hentai. Leia pondo sua sanidade em risco. =D



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Voe, voe, passarinho...

Em meio ao caos de uma Tokyo devastada...

Com meu próprio sangue escorrendo de mim...

Sentindo os braços dele me envolvendo tão carinhosamente...

...Você sabe que não pode fugir.

Mais ou menos na tarde do dia 24 de abril...

...Eu morri.

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXIII: Remliel I.

 

Fique aqui comigo esta noite’.

Se fosse possível, tudo na anatomia do loiro parou quando ele ouviu aquilo. Uma frase simples, sussurrada, mas ainda sim...

“É claro que eu vou ficar aqui, Maiko-chan.” – ele sorriu-lhe, ainda com sua testa encostada na dela. – “Afinal, prometi isso, não é...?”

“Eu vou morrer.” – ela falou.

E, novamente, ele ficou estático. Sentiu-se até mesmo se afastar, inconscientemente, do contato com ela, como se aquilo lhe ferisse tão profundamente quanto um ataque físico.

“Não sei quando, mas só de você estar aqui do meu lado, é prova mais do que suficiente disso. Em breve, eu vou morrer, Himitsu.” – e, ao contrário do que imaginou, ela estava sorrindo quando disse isso.

O loiro quis dizer que não, que ela ainda ia viver muito (ou iludi-la, ao menos), que aquilo não era coisa para se pensar, e sim, para se esperar.

“Eu não quero morrer assim...”

Estava chorando de novo, maldição. Culparia eternamente seus hormônios. Eles estavam mesmo a matando, nesses dias.

“Eu não quero morrer achando que...” – não conseguiu terminar a frase. Um nó terrível formava-se em sua garganta. – “Você é a minha alegria, Himitsu. O meu segredo. Só meu.”

“...Você merece coisa melhor, Maiko-chan.” – ele sorriu.

“Nada pode ser melhor que você.” – ela também sorriu, por entre as lágrimas.

“...Maiko-chan não sabe o que está dizendo.” – ele continuou com seu sorriso congelado. Ele era gentil, mas aquele tom de voz era claramente um aviso.

“Não quero morrer sem... Sem ao menos...”

Himitsu calou-a da melhor forma que conhecia. Os gélidos lábios da garota encontraram-se com os dele, e quando ela percebeu, ele segurava gentilmente seu rosto com as duas mãos, e com o polegar, afastava as lágrimas do rosto pálido.

Em seguida, lentamente, seus lábios foram deslizando pela pele do rosto dela, enchendo-a de suaves beijinhos, sentindo o gosto salgado de suas lágrimas, até chegar em seu ouvido.

“Lembra quando eu disse que jamais poderíamos nos unir? Eu não estava mentindo.” – sussurrou-lhe, tão logo a boca chegou até ali. – “Se nos tocarmos, será apenas dor. Se nos unirmos, tudo que vamos encontrar é a solidão.”

E ele sorriu, antes de beijar-lhe também o lóbulo da orelha, provocando um prazeroso arrepio na garota.

“...Não adianta voar. Não conseguiremos fugir para outro lugar.” [1]

Maiko respirou fundo, sentindo o corpo retesar-se. Agarrou-se à camisa do rapaz, e não conseguiu mais piscar, respirar ou qualquer outra coisa. Tinha em si um misto de surpresa e descrença.

Ela não se importava com isso. Não mesmo.

Só queria Himitsu. Se, para isso, tivesse de aceitar Sehriel, sua própria morte, toda uma gama de fantasmas e até mesmo aquele aviso que ele lhe dera... Se, aceitando tudo isso, conseguisse ter Himitsu... Estava bom. Se fosse assim, ela não precisava de mais nada. Já estava até mesmo com o pé na cova (enfim, conseguia fazer brincadeirinhas com o seu futuro sombrio. Irônico, muito irônico).

“Não tem problema... Eu não me importo de nos machucarmos.” – ela sussurrou de volta, tão logo essa idéia deu-lhe motivação. – “Eu permito que você me machuque desse jeito, Himitsu.”

(Que diabo de frase masoquista era aquela?).

Maiko ia se explicar, envergonhada, dizer que era só um modo de expressão, que ela não era chegada nesse tipo de perversão, mas o loiro foi mais rápido.

“Maiko-chan é tão estranha.” – ele sorriu, erguendo o rosto para encará-la. – “Até agora a pouco estava se achando invariavelmente suja a ponto de sequer me tocar. E, agora, nem lembra mais disso.”

“Mas eu estou suja...” – resmungou.

“Não está, não.”

Maiko ia contestar, dizer que estava sim e ponto, mas tudo que conseguiu foi retesar-se, surpresa, ao senti-lo beijando seu pescoço. Sentiu novamente cócegas quando os cabelos dele roçaram na pele sensível, e sem conseguir contê-lo, deixou escapar um suspiro de deleite.

As mãos fecharam-se involuntariamente, apertando o tecido da camisa dele. Seu corpo arrepiou-se, em algo totalmente novo para si própria, quando ela ouviu o som do zíper de sua camisa de educação física sendo aberto.

“Eu posso...?” – ela ouviu-o perguntar, outra vez, em seu ouvido.

Ela sacudiu a cabeça, numa afirmativa, com um sorriso divertido no rosto por aquela pergunta. – “Não precisa ficar pedindo permissão pra isso...”

Maiko viu a parte de cima de seu uniforme sumir diante de seus olhos, caindo no chão, longe de seu alcance.

O mesmo aconteceu com a camiseta, também de Educação Física, que ela usava por baixo, pouquíssimos segundos depois. E, quando a garota desviou os olhos para Himitsu, ela viu em seu olhar tudo aquilo que esperava: puro e singelo amor. E aquilo, por alguma razão, a fez corar e encolher-se, escondendo o tórax com os braços (considerando que a iniciativa foi totalmente dela, aquilo era até uma falta de respeito, pensou na hora).

Himitsu inclinou-se sobre ela e mordeu de leve o lóbulo de sua orelha, sussurrando em seguida. – “Por que está se escondendo, Maiko-chan? Você é linda.”

“Não... E-eu... Eu estou cheia de hematomas... E o meu rosto também, agora que você disse...” – antes que falasse mais, ele a beijou delicadamente, quase sequer tocando seus lábios nos dela.

“Não seja tolinha, Maiko-chan.” – e então, tocou-lhe nas mãos com as suas, e devagar, foi tirando aquela ‘interferência’. – “Isso nunca irá macular a sua beleza.”

Segurando pelos pulsos os braços dela, Himitsu permitiu-se explorar mais do que o pescoço alvo, descendo os lábios por seu colo. Cada hematoma que encontrava era delicadamente beijado.

Maiko sentia um misto de surpresa e deleite. Era tão diferente de suas experiências anteriores traumatizantes que, para ela, era quase que uma coisa totalmente nova, como se ela ainda fosse uma pura donzela. O cabelo loiro dele deslizava junto com seus beijos apaixonados, e ela sentia cócegas toda vez que isso acontecia. Quando ele chegou ao vale entre seus seios, ela deixou escapar outro suspiro, um pouco mais pronunciado que o primeiro.

Parando-se repentinamente, para a surpresa da garota, ele começou a desabotoar sua própria camisa. E, assim que terminou de desabotoar tudo, a camisa entreabriu-se, e Maiko prendeu a respiração. Himitsu era mais belo do que podia lembrar-se. Parecia que suas memórias dele não fizeram jus àquela imagem, que era a própria perfeição.

“Maiko-chan?” – chamou-a, tão logo voltou a se inclinar, a centímetros de seu rosto afogueado.

“S... Sim...?” – respondeu, hipnotizada por aqueles olhos azuis profundos.

“Pode me tocar... Não precisa ter vergonha.” – ele sorriu, beijando-a lentamente no rosto, próximo à sua boca. – “Afinal, eu sou todo seu.”

Sentindo o peito comprimir-se numa doce agonia, a japonesa assentiu, surpresa, e suas mãos trêmulas saíram de sua passividade inicial, livrando Himitsu daquela peça de roupa incomoda. Quando deslizou suas mãos pelas costas nuas dele, ela sentiu o corpo esquentar, numa urgência nunca antes sentida.

Desta vez, os suspiros tornaram-se um tímido e rouco gemido, tão logo ele reiniciou aquele caminho de beijos até o vale entre seus seios, mais uma vez. As mãos dele, então, buscaram o fecho de seu sutiã, calmamente.

Quando a língua dele começou a torturá-la, passeando sem pressa por aqueles lugares sensíveis, ela não conteve um gemido. Foi surpreendente, admitia; não era um de dor, como estava acostumada. Era de... Prazer. Ele não a estava machucando, sequer estava usando seus dentes. Himitsu estava tratando-a como... Como se fosse uma deusa. A sua deusa.

Ao senti-lo brincar com um de seus seios, Maiko fechou os olhos com força, tentando, em vão, reprimir os tímidos gemidos. E, sem mover-se um centímetro dali, ela o sentiu livrando-se da sua calça de Educação Física. Logo, a mesma também era só mais uma peça de roupa ali no chão.

Quando a mão dele tocou na sua última peça de roupa, a garota estremeceu.

“Permite-me...?” – perguntou-lhe outra vez, encostando sua testa na dela.

“...Vai ficar me perguntando isso sempre?” – ela sorriu.

Ele riu também. – “Tudo bem, prometo que é a última vez...”

Maiko sentiu aquela peça íntima sendo lentamente tirada. E, assim que estava nua, Himitsu tocou em seu rosto, afastando do mesmo uma mecha de seu cabelo negro.

Sentiu-o se aproximar de seu rosto, e então, ele sussurrou contra sua pele. – “Eu a amo.”

Ela ia responder, tão surpresa que até abriu os olhos, mas então, seus lábios foram capturados por ele num passional beijo. Um gemido foi-lhe providencialmente contido quando o sentiu acariciá-la. O tremor involuntário que se seguiu àquela torrente de sensações estonteantes fez a garota segurar-se procurar qualquer apoio para não desfalecer. Arranhara de leve as costas dele, quando finalmente teve consciência de seus próprios atos.

Maiko desejava poder respirar. Aquele beijo que Himitsu parecia não findar nunca abafava qualquer som que ela deixasse escapar (e podia ter se aproveitado disso, mas até esqueceu-se de fazê-lo), e ao mesmo tempo, deixava-a cada vez mais sem ar, cada vez mais entontecida. As mãos dele, ambas fazendo-a conhecer o paraíso jamais imaginado, uma mesma que traçava seu rosto com o polegar, a mesma que acariciava seu pescoço... E ela não conseguia respirar, o maldito prazer até então desconhecido vinha-lhe em ondas, minavam toda sua capacidade de mover-se.

Seu corpo, como numa explosão de adrenalina, repentinamente tornou-se tão pesado que as mãos pálidas deslizaram sozinhas, sem controle, pelas costas dele, inertes, e caíram no colchão novamente. Ela tremia como se tivesse visto uma assombração; e, mesmo assim, os olhos estavam febris e atentos.

A japonesa percebeu Himitsu inclinando-se sobre ela novamente, e pensou que ele fosse tentar matá-la por sufocamento generalizado (de fato, agora ela sentia que isso existia, mesmo que não fizesse sentido...) de novo.

“Com os seus cabelos espalhados assim pelo travesseiro... Você parece até uma deusa, Maiko-chan.” – ele sorriu-lhe, beijando delicadamente a testa.

A garota corou, sorrindo, como se pudesse ficar mais do que já estava. – “Você que está vendo coisas, Himitsu...”

Ela ouviu o resto das roupas dele sendo tiradas, igualmente sem pressa, e então, as mãos dele afastaram suas pernas, suavemente, enquanto seus lábios percorriam o rosto dela, como que gravando cada detalhe, os cabelos dourados roçando em seu pescoço e rosto.

“Oh, Deus...” – gemeu.

“Aconteceu alguma coisa, Maiko-chan?” – o rosto dele, subitamente, tornou-se preocupado, como se ele temesse que lhe tivesse injuriado.

“Deus, você vai me matar...” – ela completou, a voz ainda rouca. Tinha se esquecido, por um minuto, que aquele ápice não era tudo.

Himitsu sorriu, afagando seus cabelos. – “Se você quiser, eu paro.”

“Só se eu fosse muito louca!... Nem pense nisso!” – com esforço, segurou o rosto dele com as duas mãos, a face desaprovadora.

Segurando seu queixo e roçando os lábios nos dela, ele fez do pedido de sua ‘deusa’ uma ordem. E Maiko percebeu, tão maravilhada quanto aliviada, que não doera. Enquanto esteve naquela casa, em poder do tio, tudo era tão insuportavelmente animalesco e aterrorizante que o corpo já doía antes mesmo dele tocá-la.

Mas, ali, não doía... Pelo contrário, apenas fazia-a experimentar um estranho palpitar, um contentamento ansioso.

Quando envolveu-lhe o corpo, deixando as mãos trêmulas nas costas bem feitas, foi com a visão embaçada pelas lágrimas que ela o encarou. – “Estamos... Juntos...?”

Inclinado sobre ela, uma mão apoiando o peso do corpo e a outra no queixo dela, o anjo das asas róseas sussurrou. – “Está doendo, Maiko-chan? Quer que eu... Pare?”

“Não, não, pode deixar... Não é de dor... Eu só...” – ela foi secar aquelas lágrimas vergonhosas, prometendo a si mesma que iria repreender-se muito assim que acordasse daquele sonho.

Mas ele foi mais rápido, e impediu as mãos dela de chegarem até seu rosto, pegando-as com a sua mão livre e colocando-as novamente por sobre seus ombros. E então, com aquele seu sorriso perfeito, ele se aproximou.

“Permita-me, minha ‘deusa’...” – o primeiro beijo em sua face fez aquela lágrima incomoda que ia deslizar pelo canto de seus olhos sumir. E vieram outros depois daquele, por toda a extensão daquele rosto maculado de pranto.

Aquilo só podia ser um sonho. Só em sonhos ela estaria unida a ele daquela forma. Só em sonhos aquele misto de prazer com uma pontinha de dor se anunciaria a cada movimento, a cada ondulação dos corpos. Aqueles gemidos que ela não conseguia reter, os beijos delicados dele em seu pescoço e colo... Não podia ser real.

E tampouco ela acreditava naquelas palavras de Himitsu. Não encontrou nenhuma solidão ali. Não encontrou a dor. Pelo contrário. Maiko soube ali que aquele anjo era sua vida. Seu início e seu fim, seu alfa e seu ômega.

E quando se encararam, os olhos castanhos e os azuis a sondarem-se, ela teve ainda mais certeza disso. E entregou-se, afinal, a qualquer coisa, ao céu ou ao inferno, enquanto lia aquelas declarações silenciosas tão doces que ele fazia quando a olhava, quando encostava sua testa na dela, quando simplesmente a beijava como se o mundo estivesse se acabando.

Embebida na própria descoberta do êxtase, a japonesa só percebeu que aquele pedaço de paraíso havia ido embora quando sentiu o corpo do loiro cair sobre o seu. Haviam lágrimas em seus olhos outra vez, mas ela jamais soube dizer o motivo das mesmas. Simplesmente sorriu e apertou-o contra si.

“Muito obrigada...” – sussurrou perto do ouvido dele, como o mesmo fez com ela inúmeras vezes.

“Não foi um dever, Maiko-chan.” – ele sorriu, e ela sentiu-lhe beijar suavemente outra vez seu pescoço, arrepiando-se. – “Não precisa agradecer.”

Ela deixou-se ficar abraçando-o, por um longo tempo. Suspirou, naquela doce letargia. A cabeça pesava, mas ela insistia em querer ficar acordada, porque julgava tudo aquilo um sonho, e se dormisse, não o teria mais.

“Ei! Agora eu lembrei...” – ergueu a cabeça, para olhá-lo nos olhos. – “Não usamos nada... Se eu engravidar, o que acontece?”

Antes mesmo de ele responder, ela imaginava que, se engravidasse mesmo daquela loucura (supondo que não estivesse sonhando, claro), no mínimo, a criança seria bizarra. Muito estranha. O pai era... Como explicar? “Um anjo inorgânico”, basicamente.

Himitsu a encarou, estreitando-a mais em seus braços, e então riu.

“Qual é a graça...?!” – Maiko perguntou, claramente enfezada.

“Não se preocupe, Maiko-chan... Você não irá dar à luz nada.” – ele continuou rindo, enquanto uma das mãos dirigiu-se ao rosto dela e o acariciou. – “Nem o humano Himitsu e nem o anjo Sehriel estão permitidos procriar.”

“Ah, é?” – e a surpresa pareceu ainda maior do que se ele tivesse falado ‘só vai nascer um moleque com asas’. – “Por quê?”

“Porque eu sou um... Bom, um anjo, no fim das contas, e você é uma humana. Isso não te lembra nada?”

Silêncio. – “...Não.”

“Os Nephilim [2], Maiko-chan.” – ele sorriu.

“Nephilim... Aqueles caras que nem o gigante Golias, da Bíblia? [3]” – e então, ela tomou um susto. – “Isso existe?!”

“Existiriam em maior número ainda, se não fossem as regras celestes que proíbem expressamente a concepção de Nephilim. Por isso, em todos os casos, tanto o humano Himitsu quanto o anjo Sehriel são... Hum, deixe-me ver uma palavra... Estéreis, acho.” – completou, com aquele sorriso tranqüilo de sempre.

“Que bizarro!” – ela riu. Se fosse a Maiko de algum tempo atrás, pensava, teria imediatamente se afastado daquele maluco de novo. – “Vocês são muito estranhos!”

“Sabe o que é mais estranho ainda? Você estar acordada às duas da manhã.”

“Já é tudo isso...?” – suspirou.

Inclinando-se sobre ela mais uma vez, o loiro capturou seus lábios num doce selinho. – “O que significa ‘boa noite, Maiko-chan’.”

“...Não pode me obrigar a dormir!” – rebateu.

“Posso sim.” – ele sorriu.

Maiko ergueu uma sobrancelha, descrente, depois de um breve silêncio. – “Não pode, não!”

Ele riu. – “De fato, eu não posso. Por isso, estou pedindo para que vá dormir. Lembre-se de que tem aula e trabalha até tarde, não pode ficar acordada até tarde.”

“Tudo bem... Mas você vai ficar aqui, né? Até o fim, né?” – encolheu-se mais em seu abraço.

“Até o fim.” – respondeu, beijando o topo de sua cabeça.

“Promete...?”

“...Você é minha vida, Maiko-chan.”

Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Diabos, ele sempre lhe disse isso, e só agora ela percebeu o real sentido da frase.

Abraçando-o tão fortemente que até teve medo de quebrar alguma coisa nele, ela fechou os olhos com força. Mas demorou muito tempo até conseguir dormir.

 

Ano de 1098. Século XII.

Arredores do Reino de Israel.

A manhã era nublada, de um cinza escuro e denso, como se fosse um mau presságio, e as montanhas desapareciam como que tragadas por aquela névoa densa que se formava. A temporada do gelo e da tortura começava. Até mesmo os galhos retorcidos das poucas árvores entremeavam-se com aquelas brumas, deixando apenas um campo de visão desolado à sua frente.

Naquela tão triste paisagem, duas pessoas corriam, apressadas. O som da terra seca estalando sobre seus pés como se fossem galhos, a quietude pacífica que se estendia infinitamente, junto com aquela névoa. Naquele silêncio tão sagrado, o arfar da corrida daquelas silhuetas era uma nota grosseira, fora do lugar.

Repentinamente, os sons pararam. A moça havia cansado e, apoiada em seus próprios joelhos, arfava, tentando recobrar as forças e o ar.

“Continue correndo, Morphia! Não podemos parar...”

“Não posso, Arda... Não tenho mais forças nas pernas...”

O rapaz pôs as mãos calejadas nos ombros pequeninos da moça, que tremiam sem controle. Ele também arfava, mas sabia que não podia parar de correr. Não quando uma ameaça tão grande se aproximava.

Cuidado, Deus está te vigiando...’ [4]

Quando ouviu aquela voz por entre as brumas, mais parecendo uma assombração, um espírito maligno, Arda imediatamente sentiu no corpo outra descarga de adrenalina. E, então, a verdade: não podia dar-se o luxo de parar.

...Não despenque num vale de sombras...

“Vamos lá, não podemos parar, Morphia...!” – puxava-a pelo braço delicado.

“Mas, eu...”

“Amarta, amarta! [5] Você disse que iria comigo para qualquer lugar!”

...Pois, ainda que fuja, Ele sempre o encontrará...

Com um grito de susto, a arfante garota vê à sua frente um rapaz descendo dos céus. As asas de um rosa pálido, uma cor quase que sagrada, se estendiam majestosamente, desviando toda e qualquer atenção. Era, talvez, a visão mais indescritível da vida daqueles dois.

O rapaz puxou mais o tecido que cobria o rosto da moça exausta, escondendo mais o mesmo, num ato protetor. Pôs-se na frente dela, a pose de um animal acuado.

...Ele sabe, portanto, confesse a Ele seus pecados...

Cantarolando aquela canção tão perigosa, aquele anjo parecia até gracioso. Isso, até olhar para seu rosto: os olhos frios, sem emoção, estáticos. Os orbes de um assassino, um ceifador de vidas, de alguém que dá a uma vida humana o mesmo valor que daria para uma gota de água evaporando do chão.

“Arda...” – ela agarrou o tecido de sua roupa, amedrontada.

“Al tedag [6], Morphia, vai ficar tudo bem...” – ele sussurrou de volta.

O jovem de cabelos negros e asas rosas aproximava-se mais deles, com um sorriso animado no rosto moreno.

“Boker tov [7], meus caros. Por que esse empenho em fugir de mim...?” – ele sorriu mais, o riso de um maníaco.

“Por favor... Por favor, deixe-a escapar, pelo menos...”

...Confesse, mesmo que não conheça o rosto Dele...

A música voltou a ecoar de seus lábios. E com aquele mesmo sorriso, ele foi se aproximando mais. Cantando mais. Assustando mais aquelas duas caças indefesas.

...E se você já contou tudo, o que irá fazer?

Com um movimento rápido, o rapaz Arda deixou de ver aquele caçador de majestosas asas. Só soube que iria morrer. Mas, então, um som anunciou que ainda não havia morrido: o som eram os corpos da moça Morphia e do anjo chocando-se, ambos lutando pelo domínio da situação.

A moça tinha os cabelos aveludados, lisos e escuros (isso o anjo das asas rosas percebeu quando aquilo que cobria seu rosto e sua cabeça caiu, no movimento rápido dela), mas aquilo que mais lhe chamou a atenção foram as asas dela: um par apenas, como ele, e vermelhos, escarlate como o sangue humano.

“Remliel, pobre Remliel...” – ele sacudiu a cabeça, em desaprovação. – “Por que protege esse humano insignificante? Sinto que não é só porque é o seu dever.”

Ao longe, ele teve a impressão de ouvir o rapaz gritar para que ela não mostrasse suas asas, para que continuassem correndo, mas não se importou com isso.

“Eu e Arda vamos ser felizes juntos, Sehriel...” – a garota respondeu, impedindo que o mesmo avançasse sobre o humano que protegia. – “Não vou deixá-lo estragar nosso futuro com essa sua missão suja.”

“Missão suja, a minha...? Sou eu quem iludo humanos à beira da morte com beijos venenosos e palavras bonitas? Sou eu quem atrapalho a ordem natural das coisas?” – perguntou, numa clara ironia.

Para o ‘Erasi’ Sehriel, aquela era a parte mais deprimente de sua missão. Tão deprimente que chegava a ser tedioso. Era apenas uma questão de saber agir. Com menos ação do que previu, imobilizou Remliel naquele chão seco e morto, e logo, dirigiu-se ao humano que ela protegia.

Foi ainda mais fácil rendê-lo, mesmo ele tendo uma afiada adaga por baixo das vestes (arma que foi jogada longe dele, por precaução). Tão fácil que o anjo pensou que aquele tipo de caça não valia nada. Não tinha graça, não tinha a emoção da vítima fugindo, do medo. Esse tipo de vítima ele levava porque simplesmente fazia parte de seu trabalho.

“Deixe-o em paz, Sehriel...! Eu imploro, deixe-o ir...!”

“Se eu não levá-lo, você não fará isso, Remliel. Você... Apaixonou-se por esse humano.” – falou aquilo com nojo, como se fosse algo abominável. – “Você sabe que nem Ele nem Metatron querem mais Nephilim por este mundo.”

“Morphia...!” – o humano ainda tentava, em vão, alcançá-la, esquecido até do anjo por cima de seu corpo, prestes a matá-lo.

“Nada pessoal, Remliel. Vou matá-lo para você não precisar fazer isso.”

“Arda...!” – ela também estendeu a mão, debateu-se, lutou até a exaustão para poder salvá-lo, como era a sua missão. Eles estavam fugindo, maldição, fugindo das guerras, da infelicidade, de todo o resto... Iam ser felizes, só isso...

Mas a mão dele continuou tentando alcançá-la, mesmo com toda a dor, todo o medo. E, então, o rosto moreno do rapaz apenas esboçou um último esgar de surpresa, e logo, a mão tombou no chão áspero.

“...Já pode levá-lo ao Elysion, Remliel.”

Sehriel saiu de cima daquele homem, e sacudiu as mãos, como quem tira de sua pele uma sujeira indesejável.

As amarras que prendiam a anjo das asas escarlates também se desfizeram tão rápido o corpo do humano parou de se mexer. Mas, mesmo viva, Remliel não conseguia mover-se daquele chão, em espanto e dor.

“Você sabia? Começaram umas guerras... Eles estão chamando de Cruzadas. Parece que essa guerra será das boas.” – comentava o anjo das asas róseas, ignorando totalmente a dor da outra, o cadáver ao seu lado, como se falasse de algo simples e corriqueiro. – “Nós, os ‘Erasi’, vamos ter muita diversão ceifando vidas nessas Cruzadas. Desde a perseguição romana àquele suposto filho de Deus, nós simplesmente não tínhamos uma diversão decente. Espero que nos encontremos em alguma dessas guerras, Remliel.”

Tão rápido quando chegou, o anjo sumiu. Deixou-a sozinha, com o corpo de Arda, para dar-lhe o descanso eterno que um Construxi deve ao seu ‘deus’.

Sehriel simplesmente ceifou a vida dele, sem explicar-se, e foi embora.

...Como faziam todos os ‘Erasi’.

 

 

Esperanto:Solfege
Petit Ange

 

Tom XXIV: Remliel II.

 

O cálido sol da manhã entrava pela janela e impedia-a de manter-se dormindo. O que era realmente uma pena, pois aproveitar aquele sonho era o que mais desejava.

Apesar da preguiça que insistia em mantê-la ali, abriu lentamente os olhos e cravou-os, quase que automaticamente, na cadeira ao lado de sua cama. O uniforme escolar, limpo e em perfeito estado. Suas memórias acusavam-no rasgado, devido a circunstâncias que não necessitavam ser lembradas. E, mesmo assim, contestando todas as memórias, ali estava ele.

Estendeu a mão, curiosa, surpresa, e tocou-o. O tecido macio, a mesma sensação de sempre. Até parecia o mesmo...

Mas ela não o havia costurado. Não mesmo.

Só então percebeu sua própria situação, ao invés de preocupar-se com o uniforme: estava numa cama estranha, que definitivamente não era sua. E, quando ergueu os olhos acastanhados, observando o próprio ambiente iluminado, também viu que aquele sequer era seu quarto.

Surpresa com o ocorrido, a cabeça, aos poucos, foi lembrando-se do que aconteceu no dia anterior.

Mas tudo que passava pela sua cabeça, seja quando estava no banho, seja quando arrumava a mochila, era só ‘mas isso aqui é real?’.

Desde ontem, quando encontrou o caçador de youkais, a vida simplesmente pareceu-lhe uma espécie de sonho, algo tão bom que ela não podia considerar real. Mas, cada vez que olhava ao seu redor e via aquele quarto estranho, as suas roupas arrumadas, tudo tão perfeito... A realidade também era uma alternativa.

Ao sair do quarto, devagar, os olhos perscrutavam o ambiente à sua frente. Ela o conhecia bastante: o corredor do apartamento de Najato Hajaya. Segurou a pasta com mais força, perguntando-se quando diabos iria acordar.

E então, sentiu o cheiro de comida. Não era, entretanto, qualquer uma: tinha cheiro de sopa de misou. E, ao se aproximar, também tinha aquele característico cheiro de onigiri. Desde pequena, esse sempre foi o seu café-da-manhã preferido.

E, bem... Digamos que Najato não soubesse disso. Tampouco Irieko.

Quando entrou na cozinha, por fim, surpreendeu-se pela cena: o caçador estava com o uniforme escolar, assim como todos ali, e tinha a cabeça escondida em seus braços. Só faltava ressonar para mostrar que dormia. Com a anjo dos cabelos verdes, a mesma coisa: ela estava com o rosto apoiado em sua mão, os olhos fechados. Suspirou, cansada, mas foi a primeira que a viu quando entrou.

Na verdade, por mais que ela tivesse-os visto, Maiko fixou-se mesmo na figura parada em frente ao fogão, que cozinhava os salmões. Himitsu estava usando aquele avental ridículo de cozinha da casa do caçador, e ao contrário dos outros dois, não parecia nem um pouco cansado. Pelo contrário, mal terminava, já colocava os pratos na mesa e voltava-se a alguma outra de suas milhares de tarefas.

Quando ele virou-se para ela, ao ouvir Irieko falar, sorriu radiante. E, por algum motivo, Maiko sentiu que aquilo não era um sonho. Alguma coisa em si recusava-se a acreditar que aquele sorriso era uma ilusão.

E soube, afinal, que todo seu martírio, de fato, acabara ontem.

“Maikooo~? Bom dia?” – a anjo insistia, pela milésima vez.

“Ah...” – ela despertou, enfim. – “Bom dia, bom dia...”

Passando a mão pelos cabelos, a morena saiu dali e foi sentar-se com os outros. Mas arqueou rapidamente a sobrancelha quando viu o outro caído sobre a mesa.

“...O que ele está fazendo?”

“Os senhores Najato-san e Irieko-san chegaram há pouco tempo, Maiko-chan.”

Ao ouvir o loiro responder, ela retesou-se. – “Onde diabos vocês estavam?”

“Caçando youkais.” – a anjo respondeu, sorridente. – “Os Guardiões de Touro e Gêmeos só acabaram com os youkais mais fortes (o que é uma irresponsabilidade sem tamanho, se quer bem saber). Um monte de youkais menores ficaram pra trás. Na-chan e eu tivemos de cuidar de todos eles...”

“Ah... E vocês chegaram...”

“Faz quanto tempo, Himitsu?”

“Eu estava costurando a saia da Maiko-chan naquela hora, então... Uns quarenta minutos...?” – ele comentou de seu lugar.

Maiko ergueu uma sobrancelha. – “Costurando minha saia? Foi você que consertou meu uniforme rasgado...?!”

Isso era mau. Por mais que ele já soubesse, considerando que a noite passada também fosse verdade (oh, Deus!), ainda era extremamente vergonhoso que ele estivesse vendo e até ajeitando uma peça de roupa rasgada em situações tão... Embaraçosas.

“Eu imaginei que você tivesse tomado bronca por ter aparecido de uniforme de Educação Física, ontem. Então, tomei a liberdade de costurar sua roupa.” – sorriu.

Ao vê-lo sorrir tão perfeitamente, ela não pôde evitar fazer o mesmo. Chegou até mesmo a sentir as faces esquentarem.

“...Obrigada.” – disse por fim.

“Olha que bonitinho, Iri-chan! Os dois pombinhos no primeiro dia do resto de suas vidas!...”

Virando-se, surpresa, Maiko viu Najato erguer a cabeça, com o queixo apoiado em seus braços, e com um sorriso zombeteiro e malicioso nos lábios.

“Do... Do que está falando...?!” – ela corou instantaneamente.

“Não desconverse, menina. Tenho experiência nisso desde os meus 13 anos. Você não me engana.” – sorriu mais.

Corando violentamente, ela ficou sem palavras. – “Tre... Treze...?”

“Na-chan, não seja mentiroso. Você já tinha 14 anos.” – Irieko o corrigiu, como se fosse um assunto corriqueiro e normal.

Ainda sem palavras diante da cena, ela piscou. Tentou abrir a boca e falar alguma coisa, mas as palavras fugiram.

“Que bom que os senhores estão cheios de energia logo de manhã.” – Himitsu intrometeu-se, trazendo, enfim, a última comida.

“Eu não to cheio de energia...” – o caçador resmungou.

“É você que é anormal, Himitsu. Que horas acordou?” – Irieko perguntou, já se servindo sem nem agradecer a comida.

Ele pareceu pensativo, enquanto sentava-se à mesa. – “Cedo... É, cedo.”

“...Vocês dormem, é?” – Maiko perguntou, com uma gota no canto da cabeça.

“Dormimos?” – ele sorriu.

“Nós dormimos?” – a outra anjo também o acompanhou.

“Nem liga, Ma-chan. É outro desses mistérios da Natureza.” – Najato explicou, a voz ainda sonolenta. – “Pergunta, por exemplo, se a Iri-chan tem cabelos verdes naturais.”

Silêncio. Muito silêncio.

“Na-chan, não quero ir pro banheiro agora mostrar isso pra ela...” – disse.

“Himitsu, você tem vivido todos os seus dias desde que saiu de lá assim?!” – e, agora, ela até sentiu pena do pobre.

“Às vezes, eles são mais comportados.” – o loiro simplesmente sorriu.

Tirando Irieko e seus primorosos modos à mesa, os outros devidamente agradeceram a comida e, depois daquilo, em total silêncio.

Mais comportados’, definitivamente, era algo que ela não desejava sequer descobrir o significado.

 

A luz do sol não era algo que pudesse entrar com tanta facilidade. As cortinas pesadas impediam a maioria dos raios, e apenas alguns mais insistentes passavam por aquela barreira protetora, aquele invólucro negro que cobria o quarto de um ar abafado e até pesado.

Uma criança estava sentada na cama, calma e até distante, enquanto acariciava os longos fios escuros do cabelo da mulher deitada em seu colo. Ela parecia dormir profundamente, mas o sono era entrecortado por um esgar que se assemelhava a dor. Aparentemente, ela tinha pesadelos indizíveis.

Uma segunda criança estava sentada do outro lado da cama, e então, a mesma suspirou. Ela era, em aparência, igual à outra, que tinha em seu colo a cabeça da mulher adormecida e em seus dedos os fios de seus cabelos. A criança esgueirou-se até a outra e encostou suas costas nas dela, bem como sua cabeça.

“...Eu fico surpreso, Mashiro-kun. Você está sem dormir há mais de 24h.”

“Não posso dormir, você sabe disso, Shiho-kun.”

“Só porque essa mulher tem pesadelos?” – arqueou uma sobrancelha. – “Você deve ser o único que faz isso.”

“Mamãe suportou coisas horríveis, que eu nem ouso imaginar, nas mãos daquele patife e seus súditos. Os pesadelos são apenas uma parte natural do pós-cativeiro. E ela ainda suportou dar à luz as infames crianças daquele rei...” – a face do gêmeo contorceu-se em algo que parecia asco. – “Hotaru é corajosa. E muito, muito bondosa. É o máximo que posso fazer, consolá-la...”

“Você também é bondoso, Mashiro-kun.” – Shiho sorriu.

“Eu sou só um hanyou nojento, uma aberração desnecessária. Uma entidade que não devia existir. Mamãe sempre se lembrará do seu sofrimento enquanto eu viver.”

“...Eu sim que sou uma entidade que não devia existir, Mashiro-kun. Lembre-se de que o verdadeiro Shiho Himeno, seu irmão gêmeo siamês, morreu naquela cirurgia para separá-los.” – o sorriso alargou-se.

“Sim, eu sei. E sei que você só implantou memórias na minha mãe para que ela pensasse que você sobreviveu àquele dia. Você, como Shiho Himeno, é só... Um fruto do meu pedido idiota.”

“Todos os anjos são frutos dos pedidos idiotas dos seus ‘deuses’.”

Mashiro suspirou profundamente. Aquele suspiro parecia que ia quebrá-lo em dois, aquela frágil criança. – “A barreira que separa o Mundo Youkai do Mundo dos Homens vai ceder logo...”

“Seu dia está chegando.” – Shiho sorriu. – “Geralmente, os humanos escrevem aquilo que eles chamam de Testamento. Você escreveu um, Mashiro-kun?”

“Não.” – sacudiu suavemente a cabeça, deixando suas costas apoiarem-se ainda mais nas do gêmeo. – “Não quero deixar nada neste mundo que lembre eu. Quero que minha mãe... Seja livre.”

Shiho entreabriu os lábios, olhando o teto. – “Por que todo esse altruísmo?”

“...Talvez seja uma compensação idiota. Estou compensando minha mãe toda a dor que ela teve por ter me criado no Mundo Youkai, por ter me amado tão sinceramente apesar das minhas origens. Eu a amo por isso. E por isso, quero que ela viva feliz como Hotaru Himeno, quando eu morrer... Não que ela viva como um fantasma que perdeu a vida e os filhos. Eu só quero que ela seja... Feliz. Mesmo que tenha de esquecer-se de tudo. Talvez esse seja o meu único traço humano.”

O outro anjo sorriu ainda mais, repentinamente embebido em suas próprias recordações de vidas anteriores.

“...De todos os meus ‘deuses’, quando eu era um Construxi... Você é o mais gentil, Mashiro-kun. E essa sua bondade será sua ruína. Não existe espaço para a gentileza, nem para as boas coisas neste mundo. Nunca existiu, nem nunca existirá.”

“Eu sei.” – ele sussurrou. – “Por isso, você está aqui. Para me lembrar, Shiho-kun, de que eu sou um vilão.”

 

Os dias que se seguiram foram, para ela, uma espécie de realidade chocando-se constantemente com sonhos. Ainda não acreditava direito em tudo aquilo, porque tudo simplesmente começara a dar certo.

As experiências passadas de sua vida indicavam que, quando as coisas entravam numa maré boa, logo davam uma guinada e ficavam outra vez ruins. Mas, incrivelmente, aquilo não estava mais acontecendo. Maiko simplesmente estava livre, sem mais deveres para com o parente abusivo, sem mais uma casa cheirando a álcool, e finalmente, amando.

Sinceramente, as coisas estavam indo tão bem que ela ainda temia, em alguma parte de si, estar sonhando dormindo até tarde em sua cama, naquela casa nojenta (nunca, falando nela, nem tinha mais ouvido falar em Takuchi Isono. Seja lá o que fez Irieko, deu muito, muito certo).

Tirando as eventuais conversas de Najato sobre “a onda de ataques youkai estar aumentando ainda mais”, ela nem tinha mais visto os gêmeos Himeno.

Ou seja, sua vida estava... Perfeita, na falta de palavra melhor.

O melhor de tudo, entretanto, continuava sendo na escola ou na rua: a japonesa começara a ter o hábito de achar-se em um prazer sádico cada vez que via as outras garotas olhando seu ‘novo namorado’ (tudo bem que ele meio que o era desde os primeiros dias, mas enfim...). Quando percebia isso, fazia questão de puxá-lo e deixar claro que era dela.

Himitsu, ela tinha quase certeza, percebia esse prazer infantil, mas até contribuía para ele, talvez, no fundo, também se divertindo com aquela brincadeirinha.

Naquele dia, depois das aulas até mais tarde por conta da revisão para as provas de início de ano, eles saíram direto para o mercado mais próximo, comprarem coisas para o lanche da madrugada (porque, afinal, ela trabalhava até tarde, então, nunca jantavam).

Quando Najato e Irieko voltassem de sua ronda, certamente eles também iriam querer um lanche, então era quase que uma janta coletiva (e esse era, pelo que ela sabia, trabalho de Himitsu, que dedicava todo seu lado Amélia nessas coisas).

“Tem certeza de que pegamos tudo?”

“Absoluta.” – sorriu.

Maiko não ia falar nada, afinal, Himitsu sabia cozinhar muito melhor que ela (coisa que ainda deixava-a intrigada, pensando se ela desejou, inconscientemente, isso também, ou se é coisa da sua perfeição de ser inorgânico).

Imaginou que eram necessárias mais coisas para fazer Saata andagi de novo (porque o gosto era divino, tinha de admitir. E, além disso, Najato insistiu muito nesse menu), mas se o loiro dizia que era só isso, acreditava.

“Será que a senhora Amazaki perdoa o seu atraso?...” – ele se perguntou, com aquele sorriso tranqüilo característico.

“Acho que perdoa. Eu espero que perdoe...” – suspirou. Ultimamente, ela havia faltado muitos dias. Sem dúvidas, isso era, como pode comprovar, um agravante em seu salário, e isso não era bom.

Himitsu segurou a sua mão mais firmemente, e ergueu-a para beijá-la.

“Permite-me falar com ela se isso não acontecer, Maiko-chan?”

Corando violentamente, a japonesa olhou em volta, procurando olhares reprovadores das pessoas que viam a cena cavalheiresca. Aquelas gentilezas aqueciam-lhe o coração, mas o loiro teimava em não conter-se na presença dos outros (se bem que a cara de ciúmes das meninas era quase que uma vitória sádica).

“Claro que não! Você ainda vai matar a minha chefia do coração de fizer esses galanteios pra cima dela!” – resmungou, ainda vermelha.

“...Então, eles só são pra você?” – sorriu mais.

“Exato! E nem sonhe em usá-los com outra!” – fez-se se ofendida, mas agarrou-se no braço livre dele (já que a outra mão tinha várias sacolas de compras).

O anjo também envolveu seu braço como podia, e riu.

“Sim, senhora. Eu sou todo seu, já entendi.”

Depois de terem feito mais um pouco do trajeto até a estação do metrô, repentinamente, Himitsu parou. Maiko percebeu-o tenso, como um animal de ouvidos aguçados percebendo algo estranho no ambiente. Instintivamente segurou firme, ainda mais, seu braço.

E, repentinamente, aquele som. O som do farfalhar de asas.

Aquele que ela conhecia muitíssimo bem.

Descendo dos céus sem se importar com os comentários e o susto alheio, uma figura de cabelos loiros pálidos pousou próxima deles, abrindo espaço com suas asas escarlates como o sangue.

Em suas mãos, uma foice de pedras azuladas, ricamente decorada, assustadoramente ameaçadora.

“Sehriel.” – foi quase que uma saudação, com seu sorriso torto. – “Finalmente achei você. Nunca mais se esconda desse jeito.”

Himitsu deu um passo para trás, receoso.

“Remliel, você sabe o que acabou de fazer? Você desceu dos céus, e ainda está com suas asas à mostra.” – avisou-a.

“Não me venha com essa pose de Anjo íntegro e certinho.” – resmungou, acariciando o cabo de sua arma. – “Seu covarde, estava se escondendo de mim!”

“Não estava me escondendo de você.” – sussurrou.

“Estava sim! Mentiroso! Covarde!” – ela riu. – “É incrível o que mudar de profissão faz com um Anjo! Quando Erasi, você era melhor, sabia?”

Maiko ouvia-os conversar, e ao mesmo tempo, ouvia a voz dos outros, que faziam uma receosa parada para observar aquilo. Perguntas como ‘é uma filmagem?’, ‘quando vai ser lançado o filme? Eu vou ver’ ou ‘será que essas asas e ela pousando bem direitinho são truque de CG?’, faziam-na ter vontade de responder que aquilo era tão sério quanto uma guerra.

Aquela menina aparecera, literalmente, do nada! Mas, para Himitsu, ela não era uma surpresa. Era quase como se ele já esperasse isso.

“...Vamos embora, Himitsu. As pessoas... Elas tão comentando...” – ela tentou puxá-lo, mas o anjo não se moveu.

Ao invés disso, quando a menina deu um passo ameaçador, ele deixou a sacola de compras cair no chão e abraçou o corpo dela, protetoramente.

“Aqui não, Remliel...” – pediu, sério.

“...Então, essa é a sua nova deusa? É diferente da última. A sua última foi aquela meio lésbica, né? Aquela que eu também matei.”

Maiko engoliu em seco.

‘Última deusa’? Então, aquela menininha havia matado a última humana de Sehriel? Sinceramente, olhando num primeiro instante, ela não parecia ameaçadora.

Era pequena e franzina. Não parecia ter mais de treze anos. Se muito, quatorze, como os gêmeos. Pálida como um fantasma, com cabelos loiros claríssimos até o fim das costas. Talvez o que destoasse fossem suas roupas, negras e de um estilo pós-apocalíptico ao extremo, e aquelas suas asas e a foice azulada. Não mais do que isso.

...Não, os seus olhos também. Eram olhos de um predador, de uma verdadeira assassina. Quando se olhava em seus olhos acastanhados, meio vermelhos, difíceis de definir, se entendia totalmente o porquê de Himitsu estar sendo tão cauteloso.

“Uma humana como você não tem graça.” – ela sorriu, sádica, e a japonesa percebeu, em pânico, que aquele anjo estava falando diretamente com ela. – “Eu quero mesmo é ver a cara que essa nova forma do Sehriel vai fazer dessa vez quando eu te retalhar em pedaços.”

“...Remliel, por favor.” – ele pediu outra vez, dando outro passo para trás. Às suas costas, as pessoas continuavam comentando, algumas tirando fotos.

“Proteja essa humana com toda sua alma, Sehriel.” – ela passou a língua por seus lábios, deliciada com aquela expressão de pânico de Maiko. – “Eu vou ser tão impiedosa quanto você foi com meu Arda.”

Inclinando-se para frente, ela preparou-se para dar um impulso certeiro.

“...Que a caçada comece.”

E avançou, brandindo sua afiada arma.

 

[1] Mais referências diretas à “Michiyuki”, de Kaori Hikida, encerramento de “Loveless”. Espero sinceramente que não chovam processos. ¬¬

[2] Nephilim é o plural para Nephel. São os filhos dos anjos caídos e das filhas dos homens, mencionados no Gênesis.

[3] Há certas lendas que dizem que Golias era um descendente de Nephilim.

[4] Tradução direta de “Misa no Uta”, cantado por Aya Hirano, insert song do anime “Death Note”. Considerando a ENORME diferença de tempos, é apenas um toque dramático o fato da música estar ali. XD

[5] “Você prometeu”, em hebreu.

[6] “Não se preocupe”, em hebreu.

[7] “Bom dia”, também na mesma língua.


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