Janela escrita por Mia Elle


Capítulo 4
Dezenove Anos




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O adolescente, agora já um homem, abriu a porta do apartamento lentamente, meio cabisbaixo. Seus olhos estavam avermelhados, parecia ter chorado. Vestia um terno preto e sapatos sociais, e seu cabelo estava um tanto mais arrumado do que o normal.

Foi direto à cozinha, largou as chaves de qualquer jeito em cima do balcão. Sem ver direito o que fazia, ele puxou uma cadeira e jogou-se nela, cruzando os braços na mesa e escondendo o rosto entre eles para não ver mais nada.

E a casa foi preenchida pelo som de seus soluços.

Ele tremia levemente, e mal conseguia respirar. Mas simplesmente não conseguia parar de chorar, não conseguia. Não conseguia sequer acreditar no que acabara de acontecer.

Ela se fora.

Em um segundo ela estava ali, ao seu lado, com seu bonito conjunto vermelho de trabalhar e um sorriso no rosto cansado, e no outro segundo aquele homem apareceu, e pediu a ela o dinheiro que ela não tinha. E ela dissera que não, e o homem atirara. E toda a vida dela simplesmente desapareceu, e tudo que o homem fez foi correr.

E tudo que Ryan fez foi gritar. Gritar e chorar.

E então alguém chamou a ambulância, e tudo pareciam borrões. E ela estava numa maca, e alguém segurava Ryan e dizia que estava tudo bem. Depois disso, ele se lembrava de estar no hospital, e de um médico de rosto cheio e olhos azuis lhe chamar em uma sala afastada e, com o semblante triste, lhe dizer que era tarde mais.

- Eu sinto muito, Sr. Ross, não houve nada que pudéssemos fazer por sua mãe. Ela morreu na hora do tiro, provavelmente.

E tudo que aconteceu depois disso, nos próximos dias, parecera um sonho. Tudo muito rápido e muito devagar ao mesmo tempo. Tudo sem som, sem cor, sem razão. O velório, os familiares o abraçando, e as lágrimas que insistiam em cair sem que ele lhes desse permissão.

A solidão.

Era tão novo, e já estava sozinho no mundo. Órfão. Chegava a sentir dó de si mesmo.

A mãe nunca estivera tão presente, mas mesmo assim. De certa forma, ela sempre esteve lá para abraçá-lo no natal e em seus aniversários, para levá-lo ao cinema quando tinha uma folga, ou para cobri-lo quando chegava tarde da noite do trabalho, e o garoto já estava dormindo.

E afinal, não era culpa dela. Ryan sabia que se ela tivesse escolha, não teria se afastado dele assim. Ela simplesmente precisava trabalhar para dar ao garoto aquilo que ela não tivera: estudo. E funcionara. Ryan se graduara com honras no colégio no ano anterior, e fora aceito na faculdade de direito de uma universidade pública local (já que ele nem sonhava em poder pagar uma grande faculdade). Ele estudava a noite, e trabalhava durante o dia, e a vida deles consideravelmente melhorara.

Ela estava tão feliz, e de repente ela não estava de jeito nenhum mais. Em lugar nenhum. Seu corpo jazia a sete palmos abaixo do chão.

E enquanto Ryan chorava, tudo que lhe passava pela cabeça, embora isso possa lhe parecer meio infantil, era o estranho da janela. Talvez não por que Ryan o amasse. Talvez apenas por que os tempos em que ele aparecia, eram tempos bons; de felicidade. Ou talvez por que ele fazia falta. Estava tão morto, ou ainda não nascido, quanto sua mãe. Duas pessoas com quem ele se sentia bem em estar. As duas mais longe do que ele podia alcançar.

Quando já não havia mais o que chorar, Ryan levantou-se e foi até a janela.

Afastou a cortina lentamente, e encarou o concreto.

- Cadê você? – perguntou tolamente – onde é que você está quando eu preciso de você? Onde?

As lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto, e, num surto de raiva, ele começou a bater com as mãos na parede, como se esperasse que, de alguma forma mágica, ela se abrisse para ele.

- Onde está você? – gritou para o nada – Onde é que está você quando eu malditamente preciso tanto de você? Eu preciso de você, merda!

Chorou mais ainda, e bateu mais ainda no concreto. Nada aconteceu. Caiu de joelhos no chão, escondendo o rosto nas mãos e chorando ruidosamente, emitindo soluços que ecoavam pela casa vazia. Para sempre vazia.

Ou talvez não.

Ryan não saberia dizer por quanto tempo ele apenas chorou ali no chão, as mãos doendo por tantos socos dados no concreto. Ele só sabia que, de repente, como que vindo do nada, ele sentiu mãos tocando seu cabelo.

Num susto, ergueu o rosto, e viu a face que tanto queria ver, na janela, dando-lhe um grande sorriso. Pôs-se de pé num pulo, afastando-se da parede. Brendon pulou para dentro do aposento, agora talvez estivesse mais habilidoso, por que não caiu ou fez barulho algum.

Ainda sorria, mas quando olhou para Ryan deve ter percebido seu rosto inchado e seus olhos vermelhos, por que seu semblante tornou-se preocupado numa fração de segundo, e ele dirigiu-se ao outro rapidamente, e o abraçou, acariciando seus cabelos, enquanto o outro chorava com o rosto na curva de seu pescoço. Ainda que agora tivesse que se inclinar para isso, pois passara a altura de Brendon nos últimos anos.

- O que foi, Ryan? Que aconteceu? – perguntou, baixinho, depois de um tempo.

Ryan se afastou, limpando o rosto molhado de lágrimas nas costas da mão, como uma criança, e disse, a voz embargada:

- Minha mãe.

Brendon pareceu ter entendido, por que não perguntou mais nada. Apenas abaixou os olhos, parecendo constrangido. Ryan, porém, parecia querer se agarrar a qualquer maneira de mudar de assunto, e perguntou prontamente:

- Por que voltou? Por que demorou tanto? Onde é que você esteve? Você me ouviu chamar? Você não ia fechar a droga da passagem?

Brendon esticou a mão e tocou os lábios do outro, fazendo-o se calar.

- Ryan, sempre fazendo muitas perguntas – sorriu pequeno – foram só dois minutos, eu juro pra você. Pra mim foram só dois minutos. Eu cheguei lá – ele apontou para a janela – e eu toquei os meus lábios, e eu percebi que eu não podia nunca mais ver você. Eu estava pronto pra fazer a coisa certa e fechar a maldita fenda, mas eu não podia ficar longe de você. Então eu voltei. Me desculpe se pra você eu demoro muito.

Ao ouvir essas palavras, Ryan esqueceu a sua dor toda. E em sua mente havia só Brendon. Dizendo que sentira sua falta, em apenas dois minutos. Sorriu, levando sua mão até a mão do outro, que tocava seu rosto.

- Eu te chamei – ele disse, meio baixinho, ainda segurando a mão do outro – eu precisava tanto de você nesse momento. Eu te chamei, e você veio.

Brendon sorriu, e moveu sua mão para trás da nuca de Ryan, puxando-o mais para perto, e selando seus lábios docemente. Depois disso, eles só se abraçaram por um momento. Curtindo aqueles instantes que eles podiam ficar um perto do outro.

Mas de repente, aquele perto não era o bastante. Precisavam ficar mais próximos, muito mais próximos.

Ryan levou seus lábios até os de Brendon, e beijou-o com urgência. Como jamais beijara alguém na vida. Suas mãos passeavam pelo corpo de Brendon, tocando suas costas, e sua nuca, e seus cabelos, e suas coxas e logo as mãos do outro faziam o mesmo no corpo dele.

Ofegantes, mas nunca descolando os lábios, foram se livrando das roupas que impediam suas peles de se tocarem. Sempre buscando ficarem mais próximos, cada vez mais próximos. Uma trilha de camisas, e calças, e casacos foi se formando pela casa, até o quarto de Ryan, onde, na cama, eles finalmente ficaram tão próximos quanto poderiam ficar um dia.

Depois do êxtase, ainda meio vermelho, suado e sem ar, Ryan não podia parar de sorrir. Ele não queria pensar na dor que a perda da mãe lhe causava, ou se Brendon teria que ir embora daqui a pouco. Ele evitava, com todas as suas forças, pensar nisso.

Por que tudo que ele queria pensar era em Brendon, que estava ali, tão vermelho, suado e sem ar quanto ele. Tão sem conseguir parar de sorrir quanto ele. Ryan não conseguia nem se quer questionar se isso era certo. Sabe, estar com outro homem. Era uma história tão absurdamente surreal, que Brendon ser do mesmo sexo que ele era o de menos. Afinal, ele surgia de uma janela fechada por concreto, e nem sequer havia nascido naquela época, quem ligava para pecados ou preconceitos numa hora dessas?

Quando as respirações e os batimentos cardíacos foram voltando ao normal, Ryan ergueu seus olhos para observar o rosto de Brendon, deitado ali ao seu lado, tão próximo naquela tão pequena e estúpida cama de solteiro.

Sorriu, e recebeu aquele tão maravilhoso sorriso de volta.

- Eu não entendo – disse Brendon num quase sussurro.

- O que?

- Ora, você me conhece há doze anos, certo? Tudo que você sente é normal, é de se esperar. Mas eu, Ryan, eu te conheço há algumas horas – ele disse, sorrindo – por que é que eu gosto tanto de você, me diz? Que é que você fez comigo?

Ryan sorriu, corando levemente, e inclinou-se para selar os lábios nos do outro, sem saber o que poderia responder para isso.

- Eu também gosto muito de você – limitou-se a dizer.

Os segundos são traiçoeiros, eles gostam de passar mais rápido do que deveriam quando a gente está feliz, está se divertindo. Enquanto eles apenas ficaram deitados ali, conversando, e sorrindo, e curtindo a presença um do outro, horas se passaram. Mas para eles foi um tempo muito curto. O sol se pôs, e, quando nasceu novamente, um Brendon dormia tranqüilamente no peito de Ryan, que, já acordado, acariciava seus cabelos. 

Agora, de manhã, passado todo o calor do momento, todos os pensamentos que ele vinha evitando pareceram encher a sua mente de uma vez. A sua mãe, a dor, a saudade, as contas a pagar, Brendon. Principalmente Brendon. Ele achara um máximo o outro ter aparecido no dia anterior, e feito-o esquecer a dor.

O problema é que não fora bem isso. Ele só adiara a dor, só isso. E agora seriam duas dores para superar, e sozinho. Sua mãe se fora, e Brendon iria também, ele sabia. Estava apenas adiando o momento em que teria que acordar o outro, ou que ele acordaria por conta própria, e então diria que fora tudo muito bom, obrigado, mas preciso voltar para o meu lindo e perfeito século XXI.

Maldito século XXI.

Uma lágrima escorreu do seu olho pelo seu rosto.

- Ryan, está chorando? – ouviu a voz de Brendon perguntar, enquanto se levantava apoiado nos cotovelos para olhar o rosto do outro, que sorriu triste e limpou a lágrima, encolhendo os ombros como se pedisse desculpas.

- Você tem que ir, não é? – perguntou com uma voz meio rouca e meio embargada.

- Você quer que eu vá?

- É claro que não – e virou-se para encarar Brendon mais de perto – mas você tem, não é mesmo?

Os lábios de Brendon se projetaram para baixo, e ele assentiu, triste, desviando do olhar do outro. Ficaram em silêncio por um momento, cada um curtindo sua própria tristeza e saudade antecipada. Até que um sussurro do mais magro cortou o silêncio:

- Eu não posso ir com você?

Brendon ergueu os olhos, assustado, como se nem sequer tivesse considerado essa hipótese antes.

- Você está louco? – exclamou – seria muito bom se pudesse, Ry, mas não dá.

- Por que? – choramingou.

- Você tem que ficar aqui. Viver sua vida, e fazer as coisas que você tem que fazer. Se eu te tirar daqui, muitas coisas vão deixar de ser feitas, e então... sei lá, o mundo vai se tornar incrivelmente diferente no futuro. Eu não posso acabar com tudo só por que eu preciso ficar perto de você, é muito egoísmo – ele disse isso, como se fosse um professor ensinando a uma criança.

- Eu não me importo, eu não consigo ficar aqui sozinho, agüentar tudo isso sozinho. Não consigo – as lágrimas voltavam a rolar pelo rosto de Ryan, que logo viu-se abraçado por um Brendon que exibia um quase desespero em sua face.

Era tudo verdade, mas ele sabia que não havia nada a ser feito. Ele devia ser forte, como sempre fora. Brendon não pertencia a ele, ou então eles teriam nascido na mesma época. Eles se conhecerem tinha sido um acidente, e ele teria de superar isso. Esquecer e seguir em frente.

Brendon ainda ficou por algumas horas, mas elas passaram meio rápido, e, na verdade, por mais que tudo que ele quisesse fosse ter Brendon ao seu lado, o garoto queria que tudo isso acabasse de uma vez. Ele não sabia explicar, era contraditório. Ele só achava que se o outro se fosse logo, ele podia começar a se convencer que tudo fora uma fantasia logo.

Então o momento finalmente chegou. Lá estava Brendon de pé ao lado da janela, pronto para ir. E lá estava Ryan, agarrado às suas mãos, a testa colada na dele, e lágrimas rolando pelo seu rosto.

- Não vai – choramingou mais uma vez, inutilmente.

Brendon sorriu, piedoso.

- Ryan, eu juro, se houvesse alguma chance de eu poder te levar comigo eu levava. É tudo que eu mais quero. Mas não dá. Me desculpa – disse, sincero, erguendo uma das mãos para limpar as lágrimas do outro – só me promete que você vai ser um grande homem. E que vai sempre se lembrar de mim.

- Prometo – sussurrou o outro, agarrando-se a mão dele.

Brendon passou uma perna pela janela, e depois a outra. Depois o corpo todo e então só sobrava sua mão agarrada à de Ryan. Então ela se foi também. E a luz apagou. E Ryan estava sozinho novamente. Permanentemente.


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Notas finais do capítulo

O próxima parte é a última. Oh, será que o Brendon vai voltar? OIHSDH



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