Janela escrita por Mia Elle


Capítulo 3
Dezesseis Anos




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A casa estava silenciosa, como uma casa de família deveria estar a essas horas da noite. O único habitante era um adolescente deitado em sua cama e coberto até o pescoço, olhando para o teto, sem conseguir dormir.

Estava sozinho mais uma vez, sua mãe fora viajar a trabalho. Era sexta à noite, e ele podia muito bem ter saído com os garotos de seu colégio para algum bordel de esquina, ver as garotas dançarem usando máscaras e roupas curtas, e beber alguma coisa que ele nunca havia colocado na boca e que o deixaria rindo a toa e falando coisas que não deveria por algumas horas. E que o faria esquecer da realidade. Ninguém ia saber. Ninguém sequer se importaria.

Mas ele se importava. Por algum motivo ele se importava. Alguma coisa não o deixara sair de casa aquela noite, e alguma coisa não o deixava dormir.

Ouviu Brendon, o gato negro, descer da cama, onde dormia com o garoto, e ir até a cozinha, onde ficava sua caixa de areia, da qual a mãe do garoto tanto reclamava quando estava em casa. Ouviu o gato mexendo na areia com suas patinhas pequenas.

Depois, ouviu um miado do animal vindo da sala. Outro. E mais outro.

- Que há, Bren? ‘Tô tentando dormir! – Ryan disse, a voz saindo meio rouca de sua boca e ecoando pela casa.

O animal continuou a miar. Ryan achou estranho, o gato normalmente não fazia barulho, nem mesmo se quisesse comida, ou água, ou leite. Suspirou, tentando-se convencer de que não era nada, e virando-se de lado na cama.

Foi então que um estrondo quebrou o quase silêncio da casa. Um barulho que Ryan já ouvira uma vez.

Sem nem perceber o que estava fazendo, o adolescente jogou as cobertas para o lado, e saiu derrapando com suas meias pelo chão de madeira, para chegar o mais rápido que pudesse à sala. Acendeu a luz, sentindo o coração disparado em seu peito.

E lá estava ele, parecendo não ter envelhecido se quer um dia nos últimos nove anos.

- Oh – ele exclamou, passando a mão pelos cabelos e desajeitando-os ainda mais – me desculpe, eu est-

- Brendon? – Ryan perguntou, meio apreensivo.

- Eu conheço você? – perguntou o outro, franzindo o cenho – desculpe, mas Ryan não está aí? – então, provavelmente sentindo algo se entrelaçar em suas pernas, baixou os olhos e viu o gato – Oh! Aí está você, seu gato malvado, que é que você veio fazer aqui? – a voz com que dizia isso era meio severa, meio divertida.

- Brendon, sou eu. Ryan – o garoto disse, quase num sussurro – por que demorou tanto?

O homem ergueu os olhos, a feição meio assustada.

- Não seja idiota, Ryan é só uma criança e voc- Aaaaah! – o rosto dele se abriu no sorriso amplo que o adolescente já vira uma vez, parecendo ter acabado de entender alguma coisa – Aaaah! Agora eu vejo!

Desvencilhou-se do gato, que ainda ronronava, se esfregando em suas pernas, e caminhou rapidamente até Ryan, que não estava entendendo mais nada, passando as mãos pelo seu rosto.

- Interessante – disse, ainda sorrindo – muito interessante.

- Que é? – Ryan disse, se afastando do toque do outro – que é interessante? Por que você disse que já voltava e não voltou? Por que deixou essa coisa aberta? Não era perigoso? Esse gato aí, ele é seu? Que está acontecendo.

- Oh, vejo que você é o mesmo Ryan, não perdeu essa mania de fazer perguntas – disse, virando as costas e sentando-se no sofá como se estivesse em sua própria casa – acontece, Ryan, que eu não demorei muito. Passei, se muito, quinze minutos daquele lado da janela – disse, apontando para a parede – mas aqui parece que já se passaram muitos anos, não é? Quantos?

- Nove – respondeu Ryan, andando para sentar-se ao lado do outro no sofá – Nove anos e você nunca mais voltou. Eu tinha me convencido que era imaginação, até o... Brendon aqui – disse ele, apontando para o gato, constrangido pelo nome que lhe dera – aparecer pela janela uns cinco anos atrás.

- Brendon? – disse o outro, rindo tanto que sua gargalhada ecoava pela casa vazia – Você colocou o meu nome no gato? – o gato agora pulava silenciosamente para cima do sofá e se acomodava no colo do antigo dono, que, distraidamente começou a coçar atrás de suas orelhas.

- Não é engraçado – Ryan pontuou.

- Está certo, não é mesmo – o verdadeiro Brendon ficou sério de repente – já disse, essa fenda aí não é segura. Foi o gato que passou, mas poderia ter sido qualquer outra coisa. Algo que poderia mudar o mundo.

Ryan permaneceu em silêncio.

- Bom, eu só voltei aqui pra buscar o gato mesmo. Já descobri como fechar isso aqui, e é do outro lado que eu preciso estar – disse, levantando-se com o gato no colo e indo para a janela.

- Espera! – Ryan disse, levantando também.

- Que é?

- Quer dizer que eu nunca mais vou ver você? – disse, numa voz meio triste.

Era estranho. Nem mesmo conhecia o homem direito, vira-o duas vezes em sua vida toda. Mas existia uma coisa dentro dele que ele não podia controlar. Conhecia Brendon desde que era criança; ele fora seu amigo imaginário e agora estava ali de novo, na sua frente. Era real. E não podia ir embora.

- Bom, é – disse Brendon, parecendo meio triste também, e largando o gato no chão – a não ser que você espere até o tempo passar o bastante para que eu já tenha nascido.

- Isso é tão estranho – disse Ryan, sem pensar.

- Que?

- Você aí, parado na minha frente, parecendo pelo menos uns cinco anos mais velho do que eu, e me dizendo que nem sequer nasceu ainda, e se você parar pra pensar eu devo ser uns cinqüenta anos mais velho que você, na verdade.

Brendon sorriu, mas era um sorriso meio triste.

- Você se acostuma.

Então ele se abaixou e pegou o gato no colo novamente, e fez menção de ir até a janela.

- Por favor, não vai! – Ryan disse, e quando deu por si estava segurando o outro pelo braço, quase que implorando para que ele ficasse.

Brendon sorriu amplamente de novo. Era um sorriso tão espetacularmente bonito, Ryan percebeu de repente.

- Ora, seria muito perigoso ficar por aqui. Deixar a fenda sem ninguém cuidando, uma sorte de coisas ruins poderia acontecer – pontuou ele, virando-se para Ryan, os dois muito próximos agora.

- Por favor – pediu o adolescente de novo, desviando do olhar do outro para encarar seus próprios sapatos, tentando encontrar dentro de si mesmo a resposta do porquê queria tanto que Brendon ficasse.

- Ou talvez possa não acontecer nada – sussurrou Brendon, parecendo que falava para si mesmo. Ryan pode sentir em seu rosto o ar quente que saia da boca do outro – E, se você quer saber – continuou, agora aumentando o tom de voz e parecendo bem mais animado – eu sempre quis saber como é que os anos 50 se parecem. Acho que posso ficar mais um pouco.

Ryan ergueu os olhos, que agora brilhavam, deixando escapar um sorriso tímido, que Brendon correspondeu com um de seus grandes sorrisos, enquanto se abaixava para largar o gato no chão.

- Vamos dar uma volta! – ele disse, animado, puxando Ryan pelo braço em direção a porta.

- Mas não é perigoso deixar essa coisa aberta? – o adolescente perguntou, relutando em andar.

- Não vai acontecer nada – afirmou Brendon ainda insistindo em puxá-lo para a porta.

Ryan se desvencilhou da mão do outro, batendo o pé:

- Você disse que era perigoso!

- Eu digo muitas coisas – retrucou Brendon, impaciente, virando-se para o outro – agora vem, eu quero ver como é lá fora.

- Ok, ok – concordou Ryan, dando-se finalmente por vencido – mas eu estou de pijamas, espere um pouco. E não saia daqui, por favor!

Brendon concordou, rindo, e voltou-se a sentar no sofá, seguido pelo felino, que logo voltou ao seu colo em busca de carinho. Ryan correu ao seu quarto, os ouvidos atentos à sala. Vestiu-se o mais rápido que pode, pois queria voltar logo para a companhia do outro.

Primeiro, por que tinha medo que Brendon estivesse enganando ele, e que quando voltasse lá ele tivesse sumido pela maldita janela novamente e desaparecido pra sempre, o que de maneira nenhuma podia acontecer. E depois, por que quando ele estava longe de Brendon, sentia como se tudo aquilo fosse irreal. Enquanto o homem misterioso que surgia pela janela estava na sua frente, ele era obrigado a acreditar que tudo aquilo era de verdade, por que a prova estava na sua frente. Mas se não estava, era difícil se convencer que tudo não passava de um truque da sua mente.

Assim que vestiu uma calça e uma camisa qualquer, e pegou sua jaqueta de couro, ele voltou à sala. Para sua surpresa, Brendon continuava ali, acariciando as orelhas do gato homônimo. Sorriu amplamente ao ver Ryan novamente, e disse:

- Você cresceu muito, Ryan, nem parece o mesmo garoto. Está muito bonito – e levantou-se do sofá, indo ao corredor, como se homens dizerem que outros homens são bonitos fosse a coisa mais normal desse mundo.

Ryan já ouvira coisas assim de amigas da sua mãe, e isso costumava incomodá-lo. Mas com Brendon era diferente. Ele sentiu seu rosto corar, e baixou os olhos para disfarçar o ocorrido, seguindo o outro e o ultrapassando para mostrar onde ficava a porta de saída da casa.

O vento lá fora estava um pouco gelado, fazendo com que o menino logo escondesse as mãos nos bolsos da jaqueta. Percebeu que Brendon fez o mesmo, parecendo muito elegante com o longo casaco preto que vestia por cima de seu terno muito bem alinhado e de gravata preta. Apesar disso, calçava tênis all star, assim como Ryan.

- Essas coisas ainda estão na moda? – perguntou o adolescente, tentando começar um assunto enquanto eles desciam a calma rua em que o menino morava – quero dizer, vocês não deviam usar roupas metálicas e essas coisas no futuro?

Brendon riu.

- As coisas não são tão diferentes lá do que daqui, sabe? – disse, divertido – os carros são mais modernos, os telefones são móveis e a televisão é colorida. Mas é só isso.

- Os carros não voam então? – perguntou o mais jovem, meio desapontado.

- Não – o outro riu novamente – são mais rápidos, mas não voam não.

O assunto sobre o futuro preencheu o silêncio entre os dois por muitas quadras, embora Brendon não quisesse falar muito, por que insistia que se falasse demais, poderia acabar mudando a história. E Ryan insistia que ele era confiável, e que não ia tentar inventar a tal Internet sozinho, de qualquer forma. Mas Brendon achava o passado tão interessante quanto Ryan achava o futuro, e logo eles estavam falando sobre os acontecimentos daquela época tão entusiasticamente quanto vinham falando sobre os da época do outro.

Não foram a nenhum lugar especial, e não fizeram nada demais. Só caminharam juntos pelas ruas da cidade, conversando. Conversando e conversando. O assunto entre eles não parecia acabar, mesmo que eles fossem em tantos aspectos diferentes. Mesmo com toda aquelas coisas separando-os. Não havia, realmente, nada de especial naquela noite. Mas Ryan poderia ter dito com convicção que fora a melhor de sua vida até agora.

Ryan estava evitando ao máximo o momento em que teriam que voltar à sua casa, pois ele sabia que seria o momento que Brendon teria que ir embora. Sabia que o outro não poderia ficar ali para sempre com ele, infelizmente. Mas quando se deu por conta, eles já estavam na rua em que o menino morava, novamente. Ryan sentiu algo estranho em seu estômago. Percebeu que Brendon parecia mais sério também.

Em silêncio, eles cumpriram a distância que ainda os separava da casa. Entraram em silêncio, foram até a sala em silêncio. Ryan sentiu algo em suas pernas e soube que era o gato; abaixou-se para pegá-lo.

Por um segundo, que pareceu durar uma eternidade para ele, Brendon apenas o encarou. Eles ficaram ali, o menino com o gato no colo, o homem com as mãos nos bolsos. Os dois com um aperto de despedida no coração, sem nem mesmo saber por que estavam tão ligados um ao outro.

- Então – Brendon cortou o silêncio – eu acho que é isso.

Ryan concordou, decidido a não insistir mais para que o outro ficasse. Se tinha que ir, então que fosse.

- É, acho que é isso – então virou o gato no colo, segurando-o por baixo das patas dianteiras como fizera um dia – você foi um bom amigo, gatinho – disse, em voz infantil, para depois erguer os olhos para Brendon e perguntar – você tem mesmo que levá-lo?

Brendon ergueu uma das sobrancelhas.

- Ele é meu gato, Ryan. Meu. Você quem o roubou de mim – e depois sorriu.

Ryan sorriu também.

- Eu não roubei nada, ele é quem veio pra mim – depois, olhou para o gato mais uma vez, e entregou-o a seu verdadeiro dono, que acariciou sua cabeça ao recebê-lo nos braços.

- É, então eu já vou indo – disse Brendon, meio sem jeito – foi bom conhecer você, Ryan. Muito bom. Você é um garoto muito legal, vai se dar bem na vida.

- É, talvez – murmurou, sorrindo meio triste.

Brendon sorriu também, e virou de costas.

- Você vai primeiro – disse, abrindo as cortinas e colocando o gato para o outro lado da janela, voltando-se para o adolescente em seguida – Tchau, Ryan.

- Espera!

Ryan não conseguiu se controlar. Mais rápido do que achou que podia, estava de pé, muito próximo a um Brendon boquiaberto. Lentamente, ergueu as suas mãos até a bochecha do outro, acariciando a barba um tanto por fazer, e, meio num impulso, cumpriu a distância que os separava, unindo seus lábios em seguida.

Os lábios de Brendon eram macios e quentes. E maravilhosos. Aqueles, por incrível que pareça, não eram os primeiros lábios que o jovem Ryan experimentava, mas eram, com certeza os mais perfeitos. Os mais experientes. Brendon se rendeu rápido, levando uma de suas mãos ao cabelo do menino, e puxando de leve. Sua língua pediu passagem pelos lábios do outro, que cederam rapidamente. O beijo era doce, e delicado, mas ao mesmo tempo quente e sedutor. Logo os dois estavam lutando por ar, e tiveram que se afastar.

Com a testa colada na de Brendon, Ryan sorriu largo. O sorriso mais largo que já dera até ali, arriscava dizer. O outro sorriu de volta, a mão se movendo do cabelo do menino para suas bochechas. Ficaram assim por alguns segundos, apenas se olhando. Até que...

- Adeus, Ryan, foi muito bom conhecer você. Tenha uma boa vida! – e, dizendo isso, Brendon deu um passo para trás, virou-se de costas e desapareceu pela janela, que deixou de emitir luz.

Ryan suspirou, não conseguindo evitar de, mais uma vez, afastar as cortinas para ver o concreto. Mas sorriu.

Era esse o fim, mas pelo menos tudo aquilo acontecera. Fora real, e agora ele sabia. 


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